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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.49 São Paulo jul./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.5935/2175-3520.20190017 

ARTIGOS

 

Escuta histórico-cultural de dificuldades de aprendizagem: multiplicidade da experiência habitada no discurso

 

Historical-cultural listening of learning difficulties: multiplicity of experience inhabited in discourse

 

Escuchar dificuldades de aprendizaje hitórico-culturales: multiplicidad de la experiência habitado em el habla

 

 

Pedro Vasconcelos Corrêa

Faculdades Integradas Aparício Carvalho, Porto Velho/RO - Brasil

 

 


RESUMO

Esse artigo visa compartilhar ações realizadas frente à demanda de dificuldades de não aprendizagem escolar no aspecto de escuta e intervenção à queixa escolar, em crianças atendidas em um Serviço de Psicologia Aplicada - SPA de uma IES de Porto Velho/RO. Foram acompanhadas experimentalmente cinco crianças, ao longo do segundo semestre de 2017. O trabalho avançou ao tentar romper com o olhar de análise clínico institucionalizado e na desconstrução da queixa escolar com o sujeito, família e escola. Evidenciou-se que no discurso da queixa escolar muitos significados das tensões não possuem sentido individual e a que a consciência sobre essa relação emergiu sem laço e com desencontros no discurso anunciado.

Palavras-chave: Queixa escolar; Escuta clínica; Psicologia histórico-cultural.


ABSTRACT

This article aims to share actions in response to the demand for school non - learning difficulties in the aspect of listening and intervention to the school complaint, with attended children at Applied Psychology Service - SPA in Porto Velho/RO. Five children were experimentally monitored during the second half of 2017. The work progressed in trying to break with the institutionalized clinical analysis look and in the desconstruction of the school complaint with the subject, family and school. It was evidenced that in the speech of the scool complaint many meanings of the tensions do not have individual sense and that the consciousness about this relation emerged without tie and with disagreements in the proclaimed speech.

Keywords: School complaint; Clinical listening; Historical-cultural psychology.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo compartir las acciones adoptadas para cumplir con la demanda de las dificultades de aprendizaje no escolar em la escucha aspecto y la intervención a la angustia de la escuela em niños atendidos en un Servicio de Psicología Aplicada - SPA de Porto Velho/RO. Experimentalmente fueron acompañados por cinco niños, durante la segunda mitad de 2017. El trabajo há avanzado para tratar de romper com el aspecto de análisis clínicos institucionalizada y la deconstrucción de la queja escolar con el sujeto, la familia y la escuela. Era evidente que en el discurso de las quejas de la escuela muchos significados de las tensiones no tienen sentido individual y la conciencia de esta relación surgido sin derecho a fianza y los desacuerdos en el discurso anunciado.

Palabras clave: Problemas en la escuela; Escucha clínica; La psicología histórico-cultural.


 

 

O processo de escolarização no Brasil apresenta inúmeros desafios para a Psicologia como ação prática e elaboração teórica. Dentre estes, emergem como demandas situações de não aprendizagem de conteúdo escolar. As crianças que se apresentam nessa condição são apontadas no território escolar, enquadre que demanda por intervenções específicas e pontuais que possam repensar significados nesse processo.

O não aprender é um aspecto da cena fracasso escolar, conceituado por Patto (2010) como uma produção inscrita no tempo e no espaço; fato que demanda por ações que olhem para o engendramento dessas crenças, por meio de interseções verbais e não verbais, olhares cristalizados de preconceitos (Machado, 2014).

Intervir em Psicologia Escolar fomentando ação protagonista em territórios fortalece o enfrentamento frente ao reducionismo e medicalização da vida (Moysés & Collares, 2013), o que ocasiona a necessidade de significar e ressignificar compreensões pessoais e científicas para essa problemática.

A experiência do não aprender por parte de crianças é veiculada cientificamente na temática dos transtornos e distúrbios, em que processos de categorização por meio dos conceitos científicos emergem como "transtornos específicos da aprendizagem" (DSM-5, 2014, 66). Deste modo, anunciam-se condições especiais de dificuldades no uso de habilidades acadêmicas e com prejuízos particulares para o indivíduo, verificadas por meio do diagnóstico especializado. Do outro lado dessa cena encontra-se um processo composto por relações e tramas subjetivas que, ao ser elevado como instrumento de análise, revela faces dessa problemática, tais como a necessidade de escuta e os diferentes agentes discursivos desse cenário.

Essa realidade despertou como demanda no Serviço de Psicologia Aplicada - SPA de uma faculdade de Porto Velho/RO, instituição que funciona há quatro anos ofertando serviços de psicoterapia para a comunidade. Diante disso, como atender essas queixas escolares? O que ouvir e com qual objetivo?

Um dos recursos utilizados frente a essa demanda foram acompanhamentos para as queixas, realizados por alunos das disciplinas de Psicologia Escolar e Problemas de Aprendizagem II, cujo olhar elucidativo focou na atenção à desconstrução da queixa escolar apresentada (Lerner et al, 2014) e ressignificação das questões escolares pelo indivíduo e por sua família, a partir de um olhar Histórico-Cultural (Vygotsky, 2000). Deste modo, esse artigo visa compartilhar efeitos obtidos frente à demanda de dificuldades de não aprendizagem escolar no aspecto de escuta da queixa e intervenções processuais, em crianças atendidas em um Serviço de Psicologia Aplicada - SPA de uma IES de Porto Velho/RO.

 

A ESCUTA DE EXPERIÊNCIAS DE DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM

A Psicologia Histórico-Cultural, como teoria de aprendizagem e desenvolvimento humano, versa sobre os fatores sociais e cultuais que incidem sobre a subjetividade de um indivíduo (Veer & Valsiner, 2014). Fatores estes que no veículo da linguagem apresentam a possibilidade de entendimento dos processos de categorização da experiência. Abordamos aqui o princípio segundo o qual a ação encontra na palavra os recursos de expressão.

O homem é concebido nessa teoria como produto e produtor das relações sociais que o constitui (Vygotsky, 2001). Deste modo, nas tramas do vivido é possível entender os processos de aprendizagem e seu vínculo com o desenvolvimento humano, nos meandros da linguagem; em especial, na unidade de sentido e significado (Vigotsky, 2009), pois, nessas relações, a consciência humana se evidencia e proporciona acesso ao mundo do outro, por meio de interlocuções focais.

O processo de relação do eu com o outro atua para a constituição psíquica superior. É na mediação, em que o outro é tido como condição nesse processo, que a experiência ecoa. A mediação simbólica caracteriza a passagem da cena interpessoal para o intrapsíquico (Vigotsky, 2009). Nesse processo, o produto psicológico emerge como algo novo, em que o instrumental, signo da linguagem, atua como componente do controlar e conduzir a consciência (Luria, 1981). O laço1 intersubjetivo atua por meio da internalização de significados que passam a ser sentidos.

A semiótica como processo de interação entre externo e interno apresenta no conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal a chave para explicação do universo pessoal. Para Franco e Davis (2014, 55), esse conceito corresponde "(...) às mediações que se manifestam como ações partilhadas e significadas, que permitem a formação de um plano interno - subjetivo - do sujeito". Assim, o sujeito desponta como produto de diferentes relações, as quais possuem o poder de retroagir sobre si próprio e mobilizar afetos e emoções. Infere-se, então, que a subjetividade humana é tecida nas tramas discursivas em que as palavras possuem poder de ação.

Assim, olhar para a queixa escolar por meio de palavras outras é agir para repensar a condição de instituinte inscrita na expressão "crianças que não-aprendem-na-escola" (Moysés, 2001, p. 9). Em especial, acredita-se que em uma zona de interação é possível lançar um olhar avaliativo para o processual e qualitativo (Possidônio & Facci, 2012) e, com isso, ressaltar a potencialidade dos sujeitos.

Deste modo, partindo de uma atividade prática oferecida em duas disciplinas de Psicologia Escolar (60 horas/aula), foi possível desenvolver o treino de escuta da queixa escolar em um modelo teórico histórico-cultural, com estimulação da habilidade dos alunos de psicologia em romper com representações e categorizações limitadoras da experiência total do indivíduo e, com isso, gerar sentidos outros para a problemática da queixa escolar em um Serviço de Psicologia Aplicada, sendo esta experiência praticada para além de uma análise unívoca e reducionista.

 

MULTIPLICIDADE DE EXPERIÊNCIAS

Baseado em Vygotsky (2009), o olhar lançado sobre o processo e o papel da linguagem na análise proporcionou a imersão teórica nos conceitos de aprendizagem e desenvolvimento humano, sentido e significado, afeto e cognição, e vida escolar em uma perceptiva crítica, o que constituiu o aspecto teórico da postura desenvolvida ao longo da escuta oferecida. Assim, em cada encontro individual imprimiram-se elementos para a compreensão da subjetividade por meio do amparo do cliente, dito como problema, e o tensionamento das tramas relacionais vividas. Foram acompanhadas experimentalmente cinco crianças ao longo do segundo semestre de 2017. Cada responsável assinou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, componente dos instrumentais da instituição.

Nesse serviço de psicologia, os alunos do oitavo período realizam triagens clínicas, o que se constitui como a porta de entrada para os atendimentos psicoterápicos. Essas triagens compõem um prontuário a ser utilizado conforme surge vaga para acompanhamento, que é efetivado por alunos do nono e décimo períodos, no estágio curricular obrigatório. Assim, a prática descrita aqui possui caráter experimental e emergiu como protótipo de intervenção em face às queixas escolares encaminhadas a essa instituição.

A queixa transcrita em triagens: discurso aprisionador

A seguir apresentamos um breve relato de cada criança acompanhada, descrições das triagens e que emergiram como o retrato inicial da queixa escolar atendida; para tanto, os colaboradores serão nomeados de modo fictício:

Paulo, 9 anos, em relato da mãe, apresenta problemas de aprendizagem na escola. Está lento nas atividades, é tímido, tem poucos amigos, diz não saber de nada, não consegue ler nem escrever, chora ao ter que fazer as tarefas. Está repetindo o terceiro ano do Ensino Fundamental. Pais divorciados há dois anos; reside com a mãe e o padrasto. A professora relata que ele sempre foi tímido e não tem como dar atenção especial para ele, pois são muitas crianças em sala de aula. Em relato, certa vez ficou com ele sozinho para ensinar leitura, porém, ele sentiu-se pressionado e somente chorou. A professora caracteriza-o como atrasado, que provavelmente irá repetir de ano. Conversei um pouquinho com ele e percebi que se sentiu bem incomodado, querendo se levantar, e disse que não gosta de ir à escola que não dá nada. Ele é muito tímido e seus estudos muito comprometidos.

Josué, 9 anos, tem dificuldades de memorizar as palavras e escrevê-las. No relato da mãe, aos cinco anos Josué apresentou dificuldade de aprendizagem e a psicóloga que o atendeu não verificou nenhum problema. Aos sete anos, no segundo ano, a professora relatou que ele não conseguia prestar atenção, era distraído ao olhar para o quadro. Em casa, apresenta comportamento bom e só quer brincar. Josué relata fazer as tarefas da escola com a irmã. Apresenta boa linguagem de comunicação, não sabia escrever o nome no decorrer da sessão, trocando as letras. Escreveu "rra" para a palavra carro; escrevi a palavra boneco para ver se ele sabia ler, porém, ele não conseguiu. No relatório da escola, Josué é caracterizado como tendo: dificuldade de reconhecer sílabas simples; está no processo de alfabetização matemática e linguística; não lê com fluência; não realiza cálculos. É disperso, apático, conversa muito com os colegas, porém não consegue concentração para atividades do quadro; ele se distrai. Os cadernos são desorganizados e não leva o livro para a escola. Toda essa situação já foi relatada anteriormente para sua mãe.

Tiago, 10 anos, apresenta dificuldades de aprendizagem e comportamento agressivo (relato da mãe). Possui o diagnóstico de déficit de atenção. É acompanhado por um neurologista, com uso de medicação Nootron e Ritalina, com melhora após iniciar o tratamento, segundo relato da mãe. Cursa o terceiro ano e ainda não lê e escreve pouco; apresenta histórico de reprovação, relata para a mãe que a professora não gosta dele e às vezes não ensina a tarefa em sala de aula. Tiago se mostrou tímido e com dificuldade para se expressar, ficando o tempo todo com cabeça baixa.

Matheus, 6 anos, tem queixa de dificuldade de aprendizagem na escola. Não consegue copiar do quadro para o caderno, não gosta de escrever e conversa bastante em sala de aula, tirando a atenção dos outros colegas. Cursa o primeiro ano. O caderno está em branco. A mãe relata que a gravidez foi de risco e delicada. O aluno relatou que não gosta de escrever porque perde as letras ao ver o quadro e isso é chato. No relato da escola, Matheus é apresentado como apresentando grau elevado de dificuldade em aprendizagem e comportamento.

Tomé, 12 anos, apresenta comportamento agressivo na escola, timidez, rebeldia em casa e dificuldades de aprendizagem. Na escola, Tomé, com os amigos, amarraram uma aluna com fio de energia, enrolando-o ao corpo da menina. Foi realizado boletim de ocorrência e encaminhamento para medida socioeducativa.

As descrições retratadas nas triagens apresentam diferentes motivos de encaminhamentos. A demanda inicial é recebida por meio do contato verbal, lúdico e do enquadre clínico predominante. Observa-se que não há uma sensibilidade na escuta direcionada para investigar a vida escolar e o processo de escolarização; assim como as categorias descritas indicam predomínio do discurso do outro sobre a experiência individual do sujeito, que não é inserido na construção discursiva.

Esses relatos, típicos de um modelo tradicional de escuta psicológica, mostram que a conceituação e a interpretação emergem em detrimento do contato intersubjetivo, movido para o contato com a potencialidade do ser, o que nos leva a questionar a formação dos alunos quanto à distinção entre discursos que aprisionam e humanidade acolhedora, presente na cena de compreensão e intervenção frente à queixa apresentada. Nesse processo, ao escrever essas categorias descritivas em triagens, aprisionam-se as possibilidades de problematizações iniciais da queixa e, automaticamente, o decorrer desse processo será o efeito estigma, tal como visualizado em outros contextos (Patto, 2010). Este fato revela um proceder realizado nas tramas do impedimento do próprio discurso especializado, em que a ciência é posta como instrumento na compreensão do problema. Essa realidade mostra um proceder que constrói uma visão clínica e individualizante do processo.

O contato com o ser: discurso múltiplo

O enquadre apresentado aqui buscou ouvir em profundidade e sem julgamento o ser presente nos discursos. No decorrer de seis encontros realizados (total de 13 encontros, com sete ausências sem justificativa), Tomé relatou que a escola é boa, pois conhece muita gente lá. Disse não ter participado dos eventos de agressão na escola e que só queria esquecer esse episódio, pois, embora estivesse presente na hora, não participou. Ele relatou sobre a queixa com seriedade e com sentimento de tristeza. Posteriormente, evidenciou empenho em mudar a situação na escola e disse que teve boas notas em português e que seu nome foi retirado do processo ocorrido. A dificuldade em matemática permaneceu ao longo dos relatos e interações realizadas.

O caso de Tomé revela a relação presente entre escola e família, muitas vezes disfuncional (Lima & Chapadeiro, 2015). Em especial, nesse caso, o diálogo da mãe com a escola esteve presente no intuito de efetivar a mediação adequada frente ao evento de violência ocorrida. No discurso da estagiária, constante do relatório entregue após a prática no SPA, esta enfatiza que realizou uma boa prática clínica e que as ausências do seu cliente ocorreram em virtude da dificuldade de locomoção. Algo nas relações interpessoais vividas concorreu para as ausências do cliente aos atendimentos. A postura de passividade da estagiária frente ao caso revelou, também, outra face da formação em psicologia no mundo contemporâneo: é institucionalizado no sujeito um lugar de pressuposto saber. Logo, o especialista não se vê como fomentador das ausências. A expiação da culpa recai sobre o "outro problemático", no caso de Tomé, a família dita ausente.

Com Matheus utilizaram-se recursos lúdicos: brinquedos pedagógicos e educacionais e jogos estimuladores para investigação da queixa. Foram realizados dez encontros, com uma falta. Nas sessões abordaram-se temas da vida escolar que, a partir do relato das triagens, foram problematizados e questionados com o sujeito. Foram extraídas a versão de Matheus e o florescer de uma reflexão sobre o que ocorria em sua vida. Observou-se que ele não apresenta os problemas de aprendizagem relatados nas triagens. Ele mostrou-se ativo e de fácil aprendizado diante de incentivos e quando a atividade despertou sua atenção. Nas brincadeiras, observou-se concentração diante de situações que eram de seu interesse. Essa situação aponta para a pluralidade de olhares frente a uma experiência (Patto, 2010) e a necessidade de atentar-se para os constituintes dos sentidos pessoais frente aos significados presentes nos conceitos anunciados sobre a ação humana (Vygotsky, 2001). Assim, o dito grau elevado de dificuldade apresentado no relatório da escola sobre Matheus, tornou-se um elemento do exagero e da categorização lançada ao ser que não acompanha o dito padrão esperado como normalidade.

Tiago apresentou atenção, potencialidades para atividades matemáticas e necessidade de acompanhamento pedagógico para alfabetização. Não foi verificado comprometimento cognitivo e em aspectos da linguagem. No decorrer dos acompanhamentos, ele mostrou-se interativo e com interesse em aprender a ler. Na habilidade de leitura, Tiago apresenta dificuldades para textos complexos.

João apresentou ter atenção e capacidade de memorização. Falou sobre a importância da vida para ele. Nos jogos, demonstrou habilidades de criação de estratégias e planejamento no efetivar da brincadeira. No caso de João, materializou-se a visão de que o problema de "não aprendizagem" situa-se somente no indivíduo (Moyses e Collares, 2013). Deste modo, avançou-se na desconstrução da queixa inicial, por meio de métodos lúdicos e da reconstrução de significados, nos quais a criança apresentou ter cognições adequadas para o desenvolvimento dessas funções nas atividades. João passou a valorizar a escola como instrumento para seu desenvolvimento social, cognitivo e como espaço de aprendizagens.

Paulo relatou gostar de fazer contas, jogar bola e quebra-cabeça e uma necessidade acentuada de mudar de professora e escola, pois não gosta de ambas. Paulo, assim como João, materializa a individualização da queixa. Em sua triagem há o discurso da professora encaminhando-o para atendimento; em seu relato, ele refere-se a um episódio em que foi obrigado a ler um texto em voz alta, situação na qual chorou e tremeu. Na visita à escola, a professora apresentou crenças de que o problema de João é TDAH, ou seja, a culpa foi direcionada a João. Tiago, João e Paulo despontam como sujeitos não significados nas relações vividas, eles são vistos apenas por meio do olhar acusador. Foram destituídos de participação e encanto com o que a vida escolar pode ser.

Para dialogar com outras vozes presentes nas queixas, montou-se um grupo com os pais dos clientes atendidos. O objetivo do grupo foi analisar e refletir sobre vida escolar e sentimentos diante dos problemas apresentados, assim como a necessidade de uma saudável relação entre família e escola. Inicialmente, os pais foram entrevistados individualmente e, posteriormente, participaram dos grupos agendados previamente.

No relato da mãe de Tomé prevaleceu o sentimento de que a vida escolar dele é estável, que o filho é um bom aluno e sem problemas de aprendizagem. A timidez foi entendida como uma manifestação diante do não compreender o conteúdo escolar. Relata que somente ficou sabendo do problema da violência um mês após o ocorrido, ao conversar com a coordenadora escolar.

A mãe de João relatou que os professores informaram, quando ele tinha 5 anos, que ele não lembrava das letras e não estava se desenvolvendo, pois seu único interesse era brincar. Na escola, diante dos episódios de não aprendizagem, foi orientada a procurar ajuda com especialistas. Nos dois relatos, a comunicação entre família e escola aparece mecanizada, com procura de culpados e responsabilização unívoca da família.

No relato da mãe de Paulo ocorreu preocupação com assuntos familiares em detrimento aos da escola. O fator reprovação pela terceira vez emergiu como normatizado, diante da presença de dificuldades de aprendizagem e concentração. Fatores familiares prevaleceram também no discurso da mãe de Tiago, em que foram narradas cenas de violência doméstica presenciadas pelo filho. A mãe de Tiago reviveu o episódio em que teve que fugir de casa com o filho para escapar do marido violento. Nesse discurso, evidencia-se um aceitar do dizer da escola sobre o filho e aceitação de que ele precisa de acompanhamento psicológico.

Na verbalização da mãe de Matheus, sempre que possível, ela acompanha o filho em sua vida escolar. Diz dialogar sobre as dificuldades, porém, o filho não se abre para falar de suas necessidades. Relata em tons de decepção, chora e diz não entender a situação do filho.

As cinco mães ouvidas receberam o convite para comparecer ao grupo direcionado ao suporte familiar de crianças atendidas por problemas de aprendizagem. Os pais não estiveram presentes e todas as mães trabalhavam para sustentar a família.

No primeiro grupo compareceram duas famílias. Nesse encontro eles verbalizaram as queixas de maneira retraída, porém, confirmatória do que foi relatado nas entrevistas iniciais e prevaleceu o conteúdo das condições de trabalho dos professores e condições de vida de cada um que, mesmo com dificuldades, se esforçavam para acompanhar a vida escolar.

No segundo encontro compareceu apenas uma família. O relato mostrou consciência da realidade escolar do filho, mesmo que na iminência da reprovação. A culpabilização foi a tônica dos relatos, em que estess se viam como tendo falhado no processo de desenvolvimento dos filhos. E a escola retificava esse sentido dos pais, quando apresentava conceitos rotuladores e enquadrativos.

Foram agendados um total de quatro encontros. Os grupos ocorreriam de maneira estruturada e com temáticas específicas sobre a vida escolar. Porém, a adesão da família possibilitou apenas dois encontros com foco na queixa relatada nas triagens.

A experiência de atendimento com as crianças mostrou-nos que o possível (Tanamachi & Meira, 2003) é o melhor espaço de ação para a escuta da queixa escolar. Os diferentes fatores culturais inscritos no desenvolvimento humano emergiram como os significados para a experiência vivida e, nesses encontros, viu-se que muitos sentimentos depreciativos, desacreditados e sem esperança, compunham a trajetória da vida escolar dessas crianças. Os significados se anunciam por meio dos conceitos (Vygotsky, 2000) e, nessa realidade, a complexidade das tramas apontam para um sujeito plural e de difícil mensuração em categorias prévias. Essa realidade necessita de uma postura crítica (Machado, 2014), qualitativa e processual (Possidônia & Facci, 2012). Aqui, evidencia-se que essas habilidades emergiram como elementos de uma conduta desafiadora ao ser exercida.

Na análise habita outra paisagem

A paisagem do descaso público com a educação é evidenciada em diferentes trabalhos na área da psicologia e educação. Compreender o desenvolvimento humano a partir de uma análise mediatizada (Luria, 1981) é entender o papel dos diferentes sujeitos no discurso. Todos falam conforme configuram sua experiência. Nessas tramas de simbolismos e sentidos pessoais nos inserimos como especialistas.

O caminho outro anunciado, praticado por teóricos como Patto (2010), Machado (2014), Lener et al (2014) e Franco e Davis (2014), indicam rupturas; por mais irrisórias que possam aparentar, despontam como energia lançada em práticas possíveis. A ação descrita aqui é uma tentativa em um universo povoado pela prevalência da psicoterapia clínica, em que a escuta predominante é movida por meio da conceituação do caso e da interpretação. Lançar tensionamento nessas práticas recai sobre a estrutura curricular de um curso de Psicologia dessa IES, na qual a configuração da prática está amarrada com esse modo de proceder, sendo o espaço de entrada para as problematizações, materializado nesse texto: espaços possíveis. Aqui, uma ruptura no funcionamento esperado do SPA para a inserção de uma atividade prática de disciplinas de Psicologia Escolar, que almejam ser semente plantada e cultivada pelo tempo necessário a reais ações de conscientização e mudança em um espaço.

Se partirmos da concretude da experiência para pensar mecanismos de escape, o modelo histórico-cultural (Veer & Valsiner, 2014) apresenta como possibilidade de rupturas e, também, como indicadores dos sentidos a serem observados: cada família possui uma configuração e cada sujeito uma história de vida; logo, a queixa escolar emerge como expressão além de uma simples categorização classificatória e necessidade de estimulações para aquisição de habilidades ausentes. Emerge como imperativo problematizar o sentido de ser. Nesse, o olhar qualitativo e processual possibilita entender os marcadores de uma sociedade, em seu aspecto econômico e de suas reais exigências para o existir (Vygotsky, 2009). Aqui, as mães falam pelas famílias configuradas de distintas maneiras e, a escola, comunica sua compreensão dessa realidade, por vezes sem se ver como parte ou sentir a realidade do outro.

Nessa trama simbólica acredita-se haver avanços no enunciar da complexidade. Talvez não seja suficiente, porém, para a realidade descrita aqui, revelou-se como protótipo o sentido de ser habita práticas possíveis.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho avança pouco ao tentar ampliar a consciência para o entendimento do olhar clínico institucionalizado em um Serviço de Psicologia Aplicada. O acompanhamento, nesse espaço, de queixas escolares por meio de uma teoria crítica possibilitou depositar a semente. Essa instituição é recente e caminha na consolidação de um proceder; em longo prazo, há expectativas e esperanças de um efeito maior dessas intervenções.

Os acompanhamentos individuais, aqui relatados, não deram conta de romper com o reducionismo presente nas triagens. Avançamos na desconstrução de algumas cristalizações, porém, insignificante diante do problema da queixa escolar como compreensão teórica e prática concreta. O olhar de transformação lançado aos alunos e o desafio do exercício de uma postura crítica e com compromisso também emergiu como semente. Observa-se que na ausência de um olhar de supervisão presenciado e de testemunho, incorre-se em uma prática rotulada de crítica, porém, com ações individualizantes e despercebidamente preconceituosas. O desafio é, no agora, fazer com que cada participante do discurso possa se ver como parte e, juntos, tecer o caminho da mudança; caminho este afetivo e com potência no pensar.

A simbologia presente na linguagem é essencial. O laço de amor sobre o real e concreto é possibilidade de ação que instiga os alunos que irão se deparar com essa realidade. Assim como, no decorrer das problematizações com os que a efetivaram, cultivou-se a solidariedade e o valor ecológico do agir. Logo, verifica-se a necessidade de doar-se no processo de supervisão e ação interventiva, o que nos faz questionar as condições de trabalho no nível superior, em que ao professor de estágio curricular na faculdade privada recai a habilidade de supervisionar cinco alunos, cada um com cinco clientes; realidade que está além dos cinco casos aqui descritos. A realidade de ausência de tempo para a reflexão crítica das ações contamina a todos. O outro lado, movido a esperança, é uma tônica com pouca ressonância.

A multiplicidade das realidades presentes nos problemas escolares aponta para o papel do psicólogo escolar diante das mediações das experiências. Nesse cenário, acredita-se que é fator constitutivo da identidade desse profissional escutar além do discurso, habitando também os espaços das queixas; porém, aqui não conseguimos alcançar esse nível e nossas incursões nas escolas ocorreu por meio de apenas uma visita inicial e outra de entrega do relatório construído nessa experiência. Não ocorreu espaço para a confirmação da leitura do mesmo por parte dos atores escolares, assim como dos efeitos decorrentes.

Os grupos foram pensados, no âmbito da idealização do planejamento, como rede que abriria espaço para as possibilidades de discussão. Acreditamos que os dois encontros foram uma conquista e que esse possa ser o caminho a ser persistido no futuro: olhar para as reais ações que habitam o ser, no dispositivo grupo: face da intersubjetividade constituinte e criadora da potência em cada um.

A postura teórica aqui apresentada possibilitou-nos a tentativa de ir além dos reducionismos do mundo contemporâneo, sem que pudéssemos cair na relativização da queixa. A escuta olhou para o qualitativo e processual e as representações emergiram como possibilidade de interseções frente ao subjetivo fragmentado do século XXI.

 

REFERÊNCIAS

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Pedro Vasconcelos Corrêa é mestre em Psicologia e especialista em neuropsicologia. Atuação profissional com a docência no ensino superior, Faculdades Integradas Aparício Carvalho, Porto Velho/RO - Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0340-5145
E-mail: pedrovasconceloscorrea@hotmail.com.

 

 

1 Utiliza-se essa palavra com o sentido de cuidado e amor oferecido no encontro de um ser outro.

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