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Psicologia da Educação

Print version ISSN 1414-6975On-line version ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.49 São Paulo July./Dec. 2019

http://dx.doi.org/10.5935/2175-3520.20190023 

ARTIGOS

 

Da fantasia à realidade: os contos de fadas no contexto escolar

 

From fantasy to reality: fairy tales in school context

 

De la fantasía a la realidad: los cuentos de hadas en el contexto escolar

 

 

Larissa Santos Gomes; Cláudia Yaísa Gonçalves da Silva

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul/MS - Brasil

 

 


RESUMO

É sabido que os Contos de Fadas desde muito tempo se fazem presentes na vida das crianças, transcendendo todo o aparato tecnológico que a atual conjuntura impõe. Nesse sentido, a razão pela qual os Contos antigos ainda se mantêm populares no meio infantil, pode estar relacionada à influência que exercem na vida dos que têm o privilégio de mergulharem em seu mundo fantástico. Em contrapartida, essa influência será significativa à medida que tais histórias forem propagadas pelos adultos que permeiam a vida dessas crianças e, para que isso ocorra naturalmente, é importante também que os profissionais da Educação compreendam os benefícios que esses Contos podem produzir subjetivamente. Partindo desse princípio, o estudo trata de uma pesquisa de campo qualitativa, que tem como objetivo central investigar qual o valor atribuído aos Contos de Fadas por professores da Educação Infantil de uma escola do município de Paranaíba - MS. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os educadores, sendo a análise dos dados feita com base no referencial teórico psicanalítico. Por conseguinte, por meio de rodas de conversa, foi explorada a importância dos Contos para o desenvolvimento emocional infantil, viabilizando discussões e o contato com diferentes histórias. Os resultados apontaram que, em geral, a utilização dos Contos é associada essencialmente a conteúdos pedagógicos, evidenciando, por outro lado, o desconhecimento da sua repercussão no psiquismo infantil. Nesse sentido, através do contato com os professores, buscou-se contribuir indiretamente com as crianças, facilitando para que a internalização dos Contos pudesse acontecer de forma significativa.

Palavras-chave: Contos de Fadas; Psicanálise; Fantasia; Educação infantil.


ABSTRACT

It is well known that Fairy Tales have long been present in the lives of children, transcending all the technological apparatus that the current conjuncture imposes. In this sense, the reason why ancient tales are still popular with children may be related to their influence on the lives of those privileged to plunge into their fantastic world. By contrast, this influence will be significant as such stories are propagated by the adults who permeate the lives of these children, and for this to occur naturally, it is also important that education professionals understand the benefits that these Tales can produce subjectively. Based on this principle, the study deals with a qualitative field research, whose main objective is to investigate the value attributed to Fairy Tales by teachers of early childhood education in a school in the city of Paranaíba - MS. To this end, semi-structured interviews were conducted with the educators, and data analysis was based on the psychoanalytical theoretical framework. Therefore, through conversation circles, the importance of Tales for children's emotional development was explored, enabling discussions and contact with different stories. The results showed that, in general, the use of Tales is essentially associated with pedagogical contents, evidencing, on the other hand, the lack of knowledge of its repercussions on the child psyche. In this sense, through contact with the teachers, we sought to indirectly contribute to the children, so that the internalization of the Tales could happen in a significant way.

Keywords: Fairy Tales; Psychoanalysis; Fantasy; Child Education.


RESUMEN

Se sabe que los Cuentos de Hadas, desde hace mucho tiempo, están presentes en la vida de los niños, trascendiendo todo el aparato tecnológico que la actual coyuntura impone. En ese sentido, la razón por la cual los Cuentos antiguos aún se mantienen populares en el medio infantil, puede estar relacionada a la influencia que ejercen en la vida de los que tienen el privilegio de sumergirse en su mundo fantástico. En cambio, esa influencia será significativa, a medida que tales historias sean propagadas por los adultos que permean la vida de esos niños, y para que esto ocurra naturalmente, es importante también que los profesionales de la Educación entiendan los beneficios que estos Cuentos pueden producir subjetivamente. A partir de ese principio, el estudio se trata de una investigación de campo cualitativa, que tiene como objetivo central investigar cuál es el valor atribuido a los Cuentos de Hadas por profesores de Educación Infantil de una escuela del municipio de Paranaíba - MS. Para ello, se han realizado entrevistas semiestructuradas con los educadores, teniendo como baseel referencial teórico psicoanalítico para el análisis de los datos. Por lo tanto, a través de ruedas de conversación, se exploró ha explorado la importancia de los Cuentos para el desarrollo emocional infantil, permitiendo discusiones y el contacto con diferentes historias. Los resultados han señalado que, en general, la utilización de los Cuentos se vincula esencialmente a contenidos pedagógicos, evidenciando, por otro lado, el desconocimiento de su repercusión en el psiquismo infantil. En ese sentido, a través del contacto con los profesores, se ha intentado contribuir indirectamente con los niños, facilitando para que la internalización de los Cuentos pudiera suceder de forma significativa..

Palabras clave: Cuentos de hadas; Psicoanálisis; Fantasía, Educación infantil.


 

 

A literatura tem um privilégio: ela ultrapassa o lugar e
o momento atuais para se colocar na
periferia do mundo e como no fim dos tempos,
e é dali que fala das coisas e se ocupa dos homens.

Maurice Blanchot

Já dizia Fernando Pessoa que "a leitura é uma forma servil de sonhar"; e algo subjetivo como o sonhar baseia-se num verbo capaz de configurar etapas da infância. Partindo desse pressuposto, é de extrema importância que o adulto, que adquire o caráter de mediador na relação da criança com o mundo em seus anos iniciais, possibilite a ela os suportes necessários para esse "sonhar". Nessa direção, também o papel que um profissional da Educação Infantil ocupará na vida das crianças tornear-se-á a mediação das mesmas com o mundo, incidindo ainda na qualidade do seu desenvolvimento emocional. Foi pensando nisso que surgiu o interesse em identificar, neste trabalho, qual o valor atribuído aos Contos de Fadas por professores da Educação Infantil de uma escola do município de Paranaíba-MS.

Nesse sentido, compreende-se que, de alguma forma, os Contos são capazes de oportunizar o "sonhar", da mesma ordem do "fantasiar", já que existem desde a Antiguidade e até hoje sobrevivem, fazendo-se presentes e populares no âmbito infantil, seja em sua forma lida, narrada ou assistida. Isso leva a supor que, de algum modo, essa sobrevivência pode estar relacionada à influência que exerce no psiquismo das crianças.

Sendo assim, vale enfatizar e esclarecer, no decorrer da pesquisa, de que forma se dá a influência desse gênero literário em seu caráter positivo e no que isso pode vir a implicar na vida do infante, partindo de explicações calcadas na abordagem psicanalítica.

Inicialmente, será apresentada uma revisão de literatura com a finalidade de oferecer um panorama sobre a evolução e olhares acerca dos Contos de Fadas. Apresenta-se a origem dos Contos de Fadas e as mudanças em torno do seu conteúdo, de acordo com as alterações socioculturais da sociedade ocidental. Em seguida, será abordada a importância dos Contos de Fadas para o desenvolvimento emocional infantil, de acordo com autores da Psicanálise. Posteriormente, será destacada a relevância da transmissão oral do referido gênero literário.

Por fim, será apresentada a perspectiva de profissionais da Educação acerca dos Contos de Fadas como um instrumento capaz de transcender o seu valor pedagógico, uma vez que a hipótese que se levantou é a de que, de forma geral, os professores da Educação Infantil tendem a utilizar os Contos de Fadas essencialmente como um recurso lúdico complementar à tarefa pedagógica, desconhecendo, muitas vezes, que essas histórias, tão frequentemente utilizadas no contexto escolar, também podem ter influência no inconsciente das crianças, repercutindo positivamente no desenvolvimento emocional.

Para a revisão da literatura foram utilizados livros e artigos de periódicos científicos, sendo grande parte da bibliografia de autoria de psicólogos psicanalistas e educadores.

A presente pesquisa também contou com uma proposta interventiva de levar novas reflexões e ideias práticas para os professores que circundam o âmbito da Educação Infantil, o que, por consequência, pode vir a contribuir para a atuação dos mesmos. A intervenção proposta ainda buscou reforçar a importância do contato entre universidade e comunidade escolar, uma vez que este trabalho foi desenvolvido no espaço acadêmico, porém não se restringiu apenas a ele.

A origem dos Contos de Fadas

Assim como a poesia, o conto tem um valor grande e
exatamente humano. Expressa, por meio simples, as
imagens e os sentimentos que vive a humanidade inteira.

Van Gennep

A origem da palavra Conto advém do latim e o seu significado se resume em oralidade e ficcionalidade, ou seja, os Contos não precisam necessariamente dispor de aspectos da realidade (Barbosa, 1991 apud Hillesheim & Guareschi, 2006), pelo contrário, os mesmos utilizam o "maravilhoso" como elemento para o entretenimento e projeção dos problemas humanos. Cabe ressaltar que os Contos de Fadas dispõem do que o filósofo e linguista Todorov (1980/1981) denominou como fantástico e maravilhoso. O fantástico "ocupa o tempo da incerteza" (p. 15) e pode ser definido a partir da relação entre realidade e fantasia, compondo elementos de ordem do mundo natural com componentes sobrenaturais, já que esses Contos são carregados de conteúdos que fogem das leis do mundo real, ao mesmo tempo em que carregam certa similaridade com ele. Nas palavras de Todorov: "Há um fenômeno estranho que pode ser explicado de duas maneiras, por tipos de causas naturais e sobrenaturais. A possibilidade de vacilar entre ambas cria o efeito fantástico" (p. 16) e o maravilhoso pode ser definido a partir da necessidade de se reconhecer "novas leis da natureza" (p. 24), capazes de explicar um determinado fenômeno.

Os Contos de Fadas, da maneira como são conhecidos na atualidade, referem-se a histórias direcionadas ao público infantil, contendo personagens encantados de origem folclórica, como fadas, sereias, animais falantes, anões, elfos, bruxas e uma infinidade de outros personagens mágicos. Além disso, podem ser reconhecidos pela problemática lançada em seus enredos que, na maioria das vezes, é solucionada pelo(a) protagonista da história, que, de diferentes formas, a depender do Conto, será capaz de "triunfar sobre o mal" (Schneider & Torossian, 2009, p. 135).

Não se sabe ao certo sua origem exata, apenas que essas histórias existem desde a Antiguidade, e foram passadas de geração a geração; a princípio, em sua forma oral e direcionada essencialmente ao público adulto, em função do conteúdo que carregavam, que explicitava cenas de traição, mortes, incestos, canibalismo e diversos elementos que faziam parte do contexto dos adultos (Schneider & Torossian, 2009). Uma de suas finalidades, de acordo com Kehl (2006), era de "nomear os medos" (p. 16) que assolavam camponeses; sendo assim, os Contos poderiam consistir em um auxílio no que dizia respeito ao enfrentamento das noites frias de inverno no contexto europeu.

Em meados do século XVII nasceu o escritor e poeta francês Charles Perrault (1628-1703), considerado o pioneiro dos Contos de Fadas em sua forma mais censurada, já que seu nascimento permeou a conjuntura de uma "Moral Vitoriana" (Schneider & Torossian, 2009, p. 135), quando se reprimiam questões relacionadas à sexualidade. O autor pôde registrar uma infinidade de histórias, calcado nas narrativas populares de sua época, as quais ia adaptando e censurando fragmentos de cunho sexual, considerados imorais dentro de seu contexto. Especialmente em 1696, Perrault expressou sua intenção de direcionar sua literatura também ao público infantil, o que se consolidou em 1697, com a publicação do livro "Contos da mamãe gansa", cujo título original era "Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades" (Lajolo & Zilberman, 1999 apud Hillesheim & Guareschi, 2006, p. 109). Essa literatura reuniu uma coletânea de histórias que, além do entretenimento que proporcionava às crianças, evidenciava o conteúdo moral nos Contos, cuja finalidade abarcava a formação da moralidade infantil (Hillesheim & Guareschi, 2006, Schneider & Torossian, 2009).

Faz-se importante salientar que os Contos de Fadas se configuraram, ao longo dos anos, com base nos diferentes entendimentos acerca da infância (Hillesheim & Guareschi, 2006), e mesmo que Perrault seja considerado o pioneiro dos Contos de Fadas, tal gênero literário ainda não tinha sido estruturado ao público infantil da maneira como o são na contemporaneidade.

Com o passar do tempo, entre os séculos XVIII e XIX, um novo sentido foi atribuído à infância, uma vez que se instaurou a organização da família nuclear (Kehl, 2006). Essa mudança implicou em um espaço diferente conferido às crianças, as quais foram separadas do mercado de trabalho no período da Revolução Industrial e, com a ascensão do modelo de produção capitalista (Radino, 2003), um novo valor também foi concedido a elas, o que repercutiu na garantia de seus direitos próprios de proteção e educação.

Por essa influência, os Contos que antes erram direcionados especialmente ao público adulto - partindo do princípio de que "adultos e crianças encontravam-se ainda misturados" (Hillesheim & Guareschi, 2006, p. 110) - passaram a fazer parte, essencialmente, do universo infantil. Tais histórias começaram a ser contadas por governantas ou cuidadoras de crianças, as quais, dentre outras funções, também deveriam propagar essas histórias, originadas com base na cultura popular (Schneider & Torossian, 2009).

Posteriormente, os Contos de Fadas sofreram uma série de transformações; alguns dos responsáveis por elas foram os irmãos Grimm. Nascidos na Alemanha, nos anos de 1785 e 1786, Jacob Ludwing Carl Grimm (1785-1859) e Wilhelm Carl Grimm (1786-1859), contemporâneos de Perrault, também se dedicaram à elaboração dos Contos de Fadas. Os autores adaptaram partes dos Contos de Charles Perrault e criaram os seus próprios, influenciados pela mudança cultural e pelo movimento romântico, dando a essas histórias um novo sentido, voltado à "solidariedade e amor ao próximo" (Schneider & Torossian, 2009, p. 136). Ressalta-se que esses Contos não perderam por completo a sua essência, mas passaram por um processo de eufemismo, a tomar como exemplo o esperado final feliz - elemento que não se fazia tão presente nas histórias originais de Perrault.

Outra figura importante surgiu por volta de 1835-1872. Trata-se de Hans Christian Andersen (1805-1875), autor dinamarquês que foi considerado o pai da literatura infantil ou, nas palavras de Radino (2003), "O príncipe da Infância", já que se preocupou em escrever diretamente para crianças, baseando-se nas histórias que ouvia de seu pai e em sua própria vivência (Radino, 2003, Schneider & Torossian, 2009).

Por ser de origem extremamente pobre, Andersen retratou aspectos baseados nas percepções que tinha de seu contexto, em que se acentuava a desigualdade social. Muitos de seus Contos são tristes e ao mesmo tempo repletos de sensibilidade, mas também se caracterizam pelo enfoque que dá às crianças, permitindo que as mesmas ocupem lugares importantes em sua trama (Schneider & Torossian, 2009), ainda que julgadas por seus desejos e muitas vezes incompreendidas. Corso e Corso (2006) acrescentam que:

Andersen reinventou o conto de fadas para os novos tempos. A sociedade que passou a valorizar a infância presta atenção à construção da vida de cada indivíduo, agora levando em conta seus pensamentos, suas convicções, seus desejos e principalmente suas particularidades (Corso & Corso, 2006, pp. 32-33).

Levando em consideração a trajetória dos Contos de Fadas, assim como os processos de modificação que os permearam, fazendo com que até hoje se fizessem presentes no âmbito infantil, se fará pertinente destacar, a seguir, o impacto desses Contos na vida e desenvolvimento emocional das crianças, a partir da perspectiva teórica de autores psicanalistas.

A importância dos Contos de Fadas para o desenvolvimento emocional infantil

uma vida se faz de histórias - a que vivemos,
as que contamos e as que nos contam.

Corso & Corso

A partir da ascensão da Psicanálise, no final do século XIX, os Contos de Fadas, como uma das diversas produções humanas, também passaram a ser estudados de maneira mais estruturada por essa vertente teórica. Bruno Bettelheim (1903-1990) foi o pioneiro no estudo desse gênero literário em uma perspectiva psicanalítica, com sua obra "A psicanálise dos Contos de Fadas" (Gonçalves & Braga, 2015). Sendo assim, a Psicanálise foi uma das primeiras teorias a se dedicar ao estudo dos Contos de Fadas e a reconhecer a importância dos mesmos para o mundo interno do ser humano (Gutfreind apud Gonçalves & Braga, 2015).

Kehl (2006) acredita que a razão de os Contos de Fadas se fazerem atuais na vida das crianças "consiste em seu poder de simbolizar e '"resolver' os conflitos psíquicos inconscientes que ainda dizem respeito às crianças de hoje" (p.16). Bettelheim (1976/2011) considera que os Contos de Fadas são literaturas enriquecedoras, tanto para a criança, quanto para o adulto, mesmo que muitas dessas histórias pouco tenham relação com a contemporaneidade, já que foram criadas séculos antes. Porém, através delas é possível compreender problemas e encontrar soluções para os conflitos que assolam, além do indivíduo, a sociedade.

Corso e Corso (2006) constatam que familiares e crianças conseguem preservar essas histórias tão antigas "porque elas são um retrato das primeiras lágrimas, daquilo pelo qual choramos antes, muito antes de saber o significado do amor" (p.32). Freud (1913/1969) já reconhecia a importância dos Contos de Fadas na vida mental infantil e adulta, já que, de acordo com o autor, os Contos favoritos de alguém vêm a ocupar o lugar das recordações de aspectos da infância.

Bettelheim (1976/2011), motivado a entender quais seriam as experiências capazes de fornecer significado à vida dos infantes, constatou que a influência dos pais e de outras pessoas que permeiam suas vidas, assim como a cultura transmitida por elas, tratam dos aspectos mais essenciais da vida. Não obstante, ressaltou que é a literatura que será capaz de conduzir de forma mais adequada tais experiências. Sendo assim, para a literatura impactar a vida da criança, ela "deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções" (p. 11).

Justamente porque a vida é com frequência desconcertante para a criança, ela necessita mais ainda que lhe seja dada a oportunidade de entender a si própria nesse mundo complexo com o qual deve aprender a lidar. Para que possa fazê-lo, precisa que a ajudem a dar um sentido coerente ao seu turbilhão de sentimentos. Necessita de ideias sobre como colocar ordem na sua casa interior, e com base nisso poder criar ordem na sua vida. Necessita - e isso mal requer ênfase neste momento de nossa história - de uma educação moral que, de modo sutil e só implicitamente, a conduza às vantagens do comportamento moral, não por meio de conceitos éticos abstratos, mas daquilo que lhe parece tangivelmente correto, e, portanto, significativo (Bettelheim, 1976/2011, p. 12).

Os Contos de Fadas também são reconhecidos por seu valor terapêutico, uma vez que um indivíduo é capaz de descobrir soluções emblemáticas através da reflexão que o conteúdo manifesto da história pode acrescentar em sua vida, relativo aos seus conflitos mais íntimos (Bettelheim, 1976/2011).

Radino (2003), baseada em seu estudo sobre a importância da fantasia no desenvolvimento psíquico, ressaltou que a abordagem psicanalítica contribuiu com esse conceito, uma vez que evidenciou que, para a psique, não interessa se comunicamos verdades concretas ou fantasias, "a própria Psicanálise rompeu com o velho conceito de verdade pura, mostrando que toda apreensão da realidade é permeada pelo inconsciente, pelo desejo" (p. 115).

De acordo com Carreira (2009), o conceito de fantasia se fez de grande relevância a partir do momento em que Freud começou a tratar histéricas e delimitou a diferença entre realidade fatual e psíquica. A autora ressalta que esse tipo de realidade não poderia ser vista como uma mentira, "mas como ficção que dá estrutura à verdade (p. 158)". Ainda acrescenta que a fantasia realiza um desejo, sem realizá-lo efetivamente.

Radino (2003) considerou que as fantasias inconscientes são projetadas nos Contos de Fadas e se relacionam aos conflitos ligados ao processo de desenvolvimento. Por essa razão, eles podem ser considerados como "representações de acontecimentos psíquicos" (p. 26). Nesse sentido, é através da criação de fantasias que o indivíduo se permite nomear, projetar e externalizar seus desejos, angústias e medos e, os Contos de Fadas, particularmente na vida das crianças - mas também na dos adultos -, por serem "metáforas de processos que elas vivem inconscientemente" (p. 117), auxiliam na transformação de seus anseios, receios e apreensões, possibilitando sua compreensão.

Marilena Chauí (1984) retrata o funcionamento dos Contos de Fadas como uma "espécie de rito de passagem antecipado" (p. 32), considerando que além de auxiliarem as crianças a lidarem com o presente, podem habilitá-las ao ingresso no mundo adulto. Além disso, chama a atenção para um dos caráteres dos Contos, considerando sua vertente lúdica e libertadora, já que são como um suporte dos "desejos, fantasias e manifestações da sexualidade" (p. 32) da criança, possibilitando a ela os meios para elaborar os conteúdos desses Contos em seu inconsciente.

A partir dessas considerações de diferentes autores, fica claro que os Contos de Fadas compõem elementos que vão muito além da simples finalidade direcionada ao entretenimento de seu público alvo. Por essa razão, é importante que essas histórias sejam difundidas de forma significativa, no sentido de proporcionar às crianças os recursos que os Contos dispõem para a estimulação da imaginação, elaboração de conflitos, clareza das emoções, condução de novas experiências, entre outros aspectos. Faz-se fundamental, também, ressaltar a importância do ato de narrar esses Contos de Fadas no meio educacional, justamente por ser a escola um dos ambientes mais frequentados cotidianamente por crianças de todas as idades.

Era uma vez... o ato de narrar como um meio de acesso à individualidade infantil

Ler não se faz só com os olhos e o cérebro; mas por meio
dos ouvidos, do corpo, do olfato, da imaginação e do afeto.

Glória Radino

Radino (2003), ao se preocupar em estudar como os Contos de Fadas são abordados no âmbito da Educação Infantil, considerou que o momento em que as crianças são inseridas no meio escolar pela primeira vez suscita um certo sentimento de angústia relacionada à separação dos pais e às novas imposições sociais. Por essa razão, é importante que os conflitos resultantes dessa parte do processo de desenvolvimento infantil sejam externados de algum modo. Nesse sentido, considera que os Contos de Fadas podem se converter em um instrumento de auxílio, que possibilite à criança o reconhecimento e a elaboração de seus conflitos, para um desenvolvimento emocional mais saudável. Em contrapartida, a autora observou que a escola tende a reconhecer exclusivamente o caráter pedagógico da literatura, "sua função alfabetizadora" (p. 37), o que implica uma subestimação da função da oralidade, do próprio ato de narrar.

Caldin (2002), condizente com a ideia de Radino, acrescenta que, quando a leitura se coloca como um ato mecânico, deixa de adquirir uma função estimuladora, tanto em relação ao desenvolvimento intelectual, quanto emocional da criança. Por essa razão é que Radino (2003) se faz congruente ao considerar que o ato de ler, "como um processo cultural e social" (p. 37), deve possibilitar à criança a leitura do mundo através das várias formas de comunicação possíveis, o que inclui, certamente, a narrativa.

Uma vez que se considera o momento crucial em que a criança se insere no meio educacional, é importante ter clareza de que "a criança, em idade pré-escolar, adquire a maior parte dos seus conhecimentos por meio da transmissão oral. Os adultos com quem convivem são os que a introduzem no uso da palavra" (Radino, 2003, p. 25).

Benjamin (1985/1987) considerou a função da narrativa como algo peculiar, no que diz respeito às interpretações subjetivas do ouvinte; para ele, a forma como as narrativas sobre ensinamentos iam passando, de geração em geração, compunham as experiências pessoais através do próprio ato de narrar. O autor procurou mostrar a natureza da narrativa, considerando seu papel de ensinar valores, seja através de provérbios ou normas, e concluiu que "o narrador é um homem que sabe dar conselhos" (p. 200).

A conservação dos Contos na nossa sociedade pode ser entendida como consequência do próprio exercício tradicional da oralidade, pois, através da transmissão oral dos Contos, estes perpassaram por muitos séculos. Deste modo, o narrador adquiriu um papel primordial nesse processo, uma vez que "transformava sua função em um cerimonial em que não só o que era transmitido importava, mas a ritualização de sua transmissão" (Radino, 2003, p. 38).

Além disso, é através da narrativa que o mito sobrevive. É assim que contar histórias se caracteriza como um ato dinâmico, uma vez que permite, ao mesmo tempo, preservar o mito e adaptar as histórias às circunstâncias, transmitindo novos valores. Portanto, para se conduzir uma narrativa é relevante que seja considerado, no discurso oral, a entonação da voz, os gestos, bem como as expressões, pois, a partir disso, o narrador é compreendido pelo ouvinte, que também está livre para participar, atendendo, ambos, a "essência da oralidade" (Caldin, 2002, p.28). Kehl (2006) também reconheceu a relevância da transmissão oral dos Contos de Fadas ao considerar que: Contar histórias não é apenas um jeito de dar prazer às crianças: é um modo de ampará-las em suas angústias, ajudá-las a nomear o que não podia ser dito, ampliar o espaço da fantasia e do pensamento. (Kehl, 2006, p. 18).

A narrativa vai proporcionar à criança a submersão no Conto, o que, por consequência, tende a produzir a meditação sobre determinada história: "A audição cria uma atmosfera de intimidade que favorece a conversação posterior, levando à reflexão e oferecendo possibilidades de enriquecimento emocional e intelectual" (Caldin, 2002, p.34). A narrativa de uma história é, de certa forma, intrínseca ao ouvinte. O seu cerne discorre sobre a vida e seus mistérios, o que justifica sua importância na vida humana, tal como a sobrevivência dos Contos de Fadas durante os séculos (Radino, 2003).

Benjamin (1985/1987) problematizava a ausência de bons narradores. O autor acreditava que a transmissão oral de histórias estava se extinguindo, o que, de fato, em sua época (ascensão do nazismo), fez sentido e, na realidade atual, faz mais ainda, ao se considerar o modelo de sociedade vigente, na qual a tecnologia, de certa forma, está ocupando sutilmente o lugar dos contadores de histórias. Benjamin ainda assinalou que, por consequência das transformações do mundo exterior e ético, a tendência é que o valor que antes fora atribuído à narrativa, diminua cada vez mais: Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências (Benjamin, 1985/1987, p. 198).

Tendo em vista o papel primordial da transmissão oral para que os Contos de Fadas e outras histórias chegassem até a idade contemporânea, assim como a sua influência e benefícios acarretados na vida das crianças, é importante que essa cultura, além de reconhecida, seja exercida em ambientes propícios, como a escola. Esse espaço deve ter como um dos objetivos centrais oferecer diversos componentes que estimulem a imaginação e desenvolvam emocional e intelectualmente as crianças de maneira lúdica.

Pode-se, portanto, afirmar que a utilização dos Contos de Fadas no contexto educacional é capaz de conduzir a uma série de proveitos; sua transmissão oral poderá abrir as portas da imaginação das crianças e, de acordo com Kehl (2006), possibilitar a elas, através da escuta de histórias, a aquisição de recursos "para desenhar o mapa imaginário que indica seu lugar, na família e no mundo" (p.18).

Perspectivas da Educação acerca dos Contos de Fadas: transcendendo o valor pedagógico

A arte ajuda o ser no processo de identificação com a vida
do outro, incorporando em si aquilo que ele ainda não é,
mas que pode vir a ser: um ser humano "total".

Luiz Fernando de Souza

A habilidade em explorar os Contos e diferentes histórias, abstraindo dos mesmos conteúdos que transcendam a sua relevância pedagógica, no âmbito escolar, nem sempre é uma prática recorrente. Ainda existe certa resistência em romper com o método de ensino tradicional, evidência que é apontada por alguns pesquisadores da Educação, os quais se direcionam a implantar iniciativas inovadoras, como apresentado neste subtópico.

Peixoto e Viana (2002) consideram que os Contos de Fadas vêm sendo muito utilizados como um recurso pedagógico no âmbito escolar e, por essa razão, é importante que se tenha compreensão de seu significado. Os autores não deixam de considerar a dupla face dos Contos, sendo uma de caráter repressivo e moralista1 e outra que abarca todo o seu significado positivo que contribui para o desenvolvimento emocional e educacional da criança. Apesar dessas colocações, os autores declararam que um dos aspectos em que os Contos de Fadas devem ser analisados consiste na compreensão da interpretação realizada pelo público ao qual é direcionado, assim como seus efeitos.

Para além do campo pedagógico, Peixoto e Viana reconhecem o caráter lúdico dos Contos, no sentido de liberarem "a imaginação da criança, abrindo-a para o inesperado, o imprevisível ou, em outras palavras, para o novo, a possibilidade de mudança, a utopia" (p. 56- 57).

Souza e Bernardino (2011) acreditam que a transmissão oral de histórias infantis, aos poucos, vem sendo restaurada pela Educação com a finalidade de desenvolver tanto a linguagem oral das crianças, quanto a linguagem escrita. Ainda acrescentam que vêm sendo implantadas novas propostas para formação que capacitem os educadores a contarem histórias. Em contrapartida, tais concepções ainda se encontram distantes da realidade de muitos professores da Educação Infantil. Segundo as autoras, as escolas ainda se mostram resistentes diante do ato de contar histórias, pois essa ideia se mantém alheia aos métodos de avaliação tradicionais e "não se pode medir notas ou conceitos quando contamos ou ouvimos um conto, e a escola tem dificuldades em trabalhar com aquilo que não pode ser avaliado" (p. 236).

Souza (2008) propôs um trabalho com os Contos de Fadas para alunos de uma creche por meio de narrativas e encenações, considerando que essa literatura possui "um profundo valor antropológico, social e histórico" (p. 177) e possibilite, assim, às crianças, meios para desempenhar a criatividade e situar-se em seu contexto social, bem como desenvolver a linguagem e a própria consciência. De acordo com ele, a Arte Cênica, articulada à utilização dos Contos, pode proporcionar o desenvolvimento do imaginário e da linguagem corporal infantil. Conclui que há uma necessidade de dar espaço para a encenação desses Contos, uma vez que o contato com os mesmos, por meio da Arte Cênica, possibilita a estruturação de novas alternativas que contrapõem a Educação tradicional que, por sua vez, se direciona, em especial, ao conhecimento científico, em detrimento de outras propostas e métodos que também proporcionam à criança a leitura do mundo "como algo a ser modificado no presente, posto que tem um passado, que pode ser revisto" (p. 177).

De acordo com o autor, no contexto da Educação Infantil, o objetivo se restringe à educação e ao cuidado, e é através deste meio que a linguagem artística pode adentrar o âmbito educacional, pois, por meio dela, a aproximação com as crianças se torna mais fácil. A partir da apropriação dessa linguagem, as crianças passam a:

compreender o mundo a sua volta, as relações sociais que regem a sua vida, iluminando as complexas questões internas que ela vivencia sem possuir ainda a maturidade necessária para entendê-las, cumprindo essa tarefa pela ação da magia, do encantamento e do sensível, inserindo-se na cultura, à qual é submetida pelo nascimento, influindo nela e sendo por ela influenciada (Souza, 2008, p. 179).

Partindo desse pressuposto, é esperado que a escola passe a dar espaço a novas propostas que considerem a importância da Arte, esteja ela voltada ao exercício da narrativa, teatro ou qualquer outro tipo de manifestação, uma vez que, de acordo com Souza (2008), é importante que a estrutura escolar seja renovada, "tornando-a menos reprodutiva de ideologias que visam restringir a liberdade de pensamento e ação, que é a mola que conduz o ser humano em busca de seu futuro e de sua felicidade" (p. 196).

 

MÉTODO

A presente pesquisa caracteriza-se de modo mais amplo como uma pesquisa qualitativa. Compreende-se que na pesquisa qualitativa, a partir de análises e observações, poderão ser identificados aspectos capazes de explicar ou discorrer acerca de uma problemática (Sabadini, Sampaio & Koller, 2009). O estudo constitui-se de uma pesquisa exploratória que, de acordo com Gil (2010), objetiva apropriar-se do problema, de maneira que o mesmo venha a se tornar mais evidente e passível de construções de hipóteses.

Ao se planejar uma pesquisa exploratória é importante ter flexibilidade, pois será relevante considerar os diversos aspectos do fenômeno que virá a ser estudado. Em relação à coleta de dados, o método seguiu os moldes de um estudo de campo, em que o pesquisador participa de maneira direta no que diz respeito à conjuntura que circunda a problemática em questão, o que tende a resultar em respostas mais fidedignas por parte dos participantes (Gil, 2002).

Local da Pesquisa

A pesquisa foi realizada em uma escola municipal, que possui cerca de 610 alunos matriculados, e é caracterizada como rural em função do público que atende. As séries contidas na escola contemplam a educação infantil (Jardim II e III), ensino fundamental II (6º ao 9º ano) e Educação de Jovens e Adultos (EJA), totalizando assim, 21 turmas.

Participantes

Os participantes desta pesquisa foram todos os professores da Educação Infantil, que lecionam para as turmas Jardim II e III, no período matutino e vespertino, em uma escola municipal da cidade de Paranaíba - MS. Ao todo, são 5 professores - quatro do sexo feminino e um do sexo masculino - dentre os quais encontram-se três regentes de turma e dois professores de Educação Física.

Instrumentos

Para a coleta de dados, realizou-se uma entrevista semiestruturada individual, cujo objetivo foi identificar o valor atribuído aos Contos de Fadas pelos professores da Educação Infantil. A entrevista compreendeu aproximadamente 10 perguntas, que nortearam o diálogo entre a entrevistadora e os participantes.

Procedimentos

Inicialmente, foram agendados com os professores, dias e horários para a realização das entrevistas individuais. Estas foram gravadas em áudio, mediante autorização dos participantes, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o Termo de Autorização para Gravação de Voz, para posterior transcrição e análise das falas, as quais foram agrupadas em categorias de análise, de acordo com os eixos temáticos mais recorrentes. Feita esta coleta de dados, o conteúdo das entrevistas foi analisado com base no referencial teórico psicanalítico.

Em um segundo momento, foi proposta uma atividade interventiva na modalidade de rodas de conversa, cujo objetivo foi proporcionar um espaço mais dinâmico, capaz de contemplar todos os participantes da pesquisa, para que pudessem dialogar livremente entre si a respeito dos assuntos que seriam abordados naquele instante. As rodas de conversa aconteceram em uma sala de aula da instituição de ensino, em três dias, com duração média de 50 minutos a cada encontro, e foram articuladas da seguinte forma:

No primeiro dia discutiu-se a importância dos Contos de Fadas para o desenvolvimento emocional infantil, de acordo com autores da Psicanálise. No segundo dia, ressaltou-se a relevância de se trabalhar os Contos de Fadas de uma forma mais livre, a fim de possibilitar às crianças os suportes necessários para o fantasiar em torno das histórias e, para isso, a finalidade dos Contos deveria transcender o seu valor pedagógico. No terceiro dia, realizou-se uma devolutiva para os professores participantes da pesquisa. Este foi o último encontro e o momento em que a roda de conversa disponibilizou um espaço onde os professores puderam discorrer sobre suas experiências particulares vivenciadas nos encontros anteriores.

É importante salientar que os dados obtidos nas rodas de conversa foram registrados no formato de diário de campo, no qual se apontou o que foi observado e discutido durante os dias de intervenção.

Aspectos Éticos

O trabalho se desenvolveu de acordo com as normas para realização de pesquisas com seres humanos, o que implicou sua submissão ao Comitê de Ética e à Plataforma Brasil. Aos professores entrevistados foram dados nomes fictícios e todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

RESULTADOS

Os resultados da pesquisa foram estruturados em duas partes. A primeira parte contempla a análise das entrevistas realizadas, cujos conteúdos estão divididos em duas categorias principais: "A valorização do lúdico e o uso dos Contos de Fadas", e "O que faz uma história se tornar tão interessante?". A segunda parte apresenta os resultados da atividade interventiva realizada com os professores nas rodas de conversa.

A valorização do lúdico e o uso dos Contos de Fadas

Esta primeira categoria aborda a compreensão dos professores acerca da utilização de recursos lúdicos no âmbito da Educação Infantil e seus principais objetivos nesse contexto, sejam eles pedagógicos ou não. Além disso, será dado um enfoque maior aos Contos de Fadas como um desses recursos, no sentido de compreender qual o valor atribuído a essas narrativas; quais, dentre elas, são utilizadas pelos professores e qual a finalidade dessa utilização.

De modo geral, a partir das entrevistas com os professores da Educação Infantil, foi perceptível a existência de uma grande valorização do exercício de atividades lúdicas no contexto educacional (brincadeiras infantis, histórias, dramatizações), uma vez que é unânime, entre eles, a crença de que apenas por meio do lúdico é possível ensinar crianças na idade pré-escolar. Seguem abaixo algumas falas:

Entrevistadora: "Você costuma utilizar recursos lúdicos para trabalhar em sala de aula?"

Laura: "Sim, uso muito. É o que prende a atenção deles. São muito concretos, visuais. Se não utilizamos os recursos visuais eles ficam dispersos. Por isso é importante trazer o concreto para as crianças".

Marta: "Sim. Eu sempre parto de uma brincadeira ou de uma história e, depois, faço um registro mais tradicional ou um desenho [...]. [...] Aí, a partir disso, que eu vou trabalhando desenho, atividades de letras, essas coisas, mas eu sempre parto do lúdico".

Paula: "Todos os dias. Todos os dias. [...] a gente trabalha com eles esse lado lúdico também né, deles serem os personagens da história, eles amam!"

Antônio: "Olha, a criança, ela gosta muito... é tudo lúdico né, tem que ser muito lúdico..."

Rose: "Aí, geralmente na quinta, são atividades lúdicas, atividades assim: brincadeira da cadeira, geralmente é na quadra, uma queimada, corre cotia, geralmente são essas as atividades".

Embora ocorra o reconhecimento da importância de atividades lúdicas no âmbito escolar, e isso inclua o uso dos Contos de Fadas - que já foi utilizado por quatro, dentre os cinco professores mencionados -, a finalidade unicamente pedagógica, no que diz respeito à aplicação dessas histórias, foi evidente no discurso de três desses professores. Aspecto que pode ser exemplificado pelos trechos abaixo:

Entrevistadora: "Você já utilizou os Contos de Fadas para outros fins, que não fossem pedagógicos?"

Paula: "Não. Sempre relacionado com o conteúdo, com intenções relacionadas a aprendizagem dos alunos."

Antônio: "[...] Então, assim, não tem muita coisa. O que tem é os 3 Porquinhos, que é a questão da respiração do Lobo Mal, a musicalidade deles, de repente vira alguma coisa. [...] Mas, nunca fui falar assim "ah, montei uma aula em cima da Branca de Neve, em cima da Bela Adormecida", não dá. Agora, se for fazer alguma coisa... fantasias e em cima das fantasias fazer movimento, talvez consiga, mas não dá muito... Nunca vi. [...] [...] Mas aí se conta as histórias e se quer mostrar exemplo de um tipo de movimento, você conta "lembra daquele desenho..." mas aí, contos de fada em si, era muito... igual João e Maria, os cara ficava perdido; então, você pode de repente fazer um mapa, de se encontrar, fazer localização, é uma interação que dá para fazer."

Entrevistadora: "Você diz que nunca usou os Contos, mas se houvesse uma proposta, você estaria aberto a utilizar?"

Antônio: "Sim, sim, desde que a proposta esteja dentro da atividade comum: como trabalhar atividade física..."

Entrevistadora: "E você acredita que o uso dos Contos, necessariamente, deve ser feito atrelado com a disciplina, com a prática pedagógica, com a Educação Física ou ele pode ser utilizado para outros fins também?"

Rose: "Não, é, eu acredito que ela pode estar interligada aí: Educação Física e com outras disciplinas [...]".

Em contrapartida, duas professoras entrevistadas, que afirmaram trabalhar em sala com os Contos de Fadas habitualmente, demonstraram reconhecer a importância de transcender os objetivos pedagógicos ao se utilizar tanto os Contos, quanto outros tipos de literatura, buscando proporcionar às crianças um contato inicialmente livre com as histórias:

Entrevistadora: "Você já fez uso dos Contos de Fadas como proposta de alguma atividade pedagógica?"

Marta: "Então, os Contos de Fada, primeiro eu gosto de trabalhar o conto pelo conto. Não usar o conto pra atividade em si. Eu gosto de trabalhar com a literatura, né; pelo prazer de ler [...] eu não gosto de utilizar somente para atividade pedagógica. [...] Primeiro eu gosto de apresentar para eles conhecerem o conto e ter o prazer de ler aquilo ali sem ter a obrigação da atividade, entendeu? [...]".

Paula: "[...] a gente conta história em roda ali de fora, então eu trabalho muito com eles assim, só pelo prazer da leitura mesmo, sabe? Para ir, para ter como prazer. Eu não trabalho apenas voltado para aula não, porque esse pedagógico da história acaba o encanto, né? Então é muito difícil; eu trabalho, mas é menos. Mais é pelo prazer mesmo [...]"

Ainda em relação ao emprego dos Contos de Fadas, este foi pontuado por alguns professores como um dos inúmeros recursos que podem vir a ser utilizados em sala de aula. Não obstante, notou-se que poucos Contos são trabalhados.

Dentre as histórias citadas pelos participantes, estavam principalmente os clássicos: Branca de Neve e os Sete Anões, João e Maria, João e o Pé de Feijão, Bela Adormecida e o Lobo e os Sete Cabritinhos; histórias que não deixam a desejar em termos de conteúdo, e que podem impactar direta ou indiretamente a vida das crianças de maneira positiva.

Entrevistadora: "Quando você trabalhou com os Contos de Fadas, quais histórias apresentou?"

Laura: "João e o Pé de Feijão, porque dá para trabalhar um pouco ciências, explicar a plantação do pé de feijão, como eles crescem. Também ensina a não mexer no que é do outro. Também trabalhei com a história da Branca de Neve e os Sete Anões".

Antônio: "[...] Eu já cantei musiquinha da Branca de Neve, dos Anões, né, e alguns já sabem, cantei aula passada a da Branca de Neve e do Lobo Mal".

Todavia, o uso exclusivo e restrito desses Contos fundamenta a hipótese de que há certo desconhecimento - por parte dos docentes - da infinidade de Contos de Fadas existente, fato que pode estar relacionado tanto com a falta desse tipo de abordagem na formação dos professores, quanto com a ausência de experiências pessoais com essas narrativas, visto que vários deles passaram a conhecer alguns Contos somente na fase adulta, por meio de seus filhos:

Rose: "[...] a gente não lia muito, até porque até mesmo a minha mãe era muito brava. Ela coloca a gente para ralar, não tinha muito esse tempo da leitura. Mas era o dia que tinha prova, chegava, sentava e ia estudar... não tinha livros, a gente não tinha muito livros em casa para estar lendo. Então, até assim, depois que eu tive a minha filha, agora eu comprei vários livros e todo dia eu faço questão da gente, de ler um livro para ela porque eu não tinha muito esse contato quando era criança".

Antônio: "Meus filhos, hoje em dia, têm acesso mais a esses contos do que eu. A minha mulher nunca tinha escutado história até meus filhos nascerem, e ela nãoé tão... ela é mais nova que eu 16 anos."

Outro aspecto que tende a restringir a variedade de histórias diz respeito à limitação do acervo disponível aos alunos e professores. Antônio deixa este último ponto claro, ao afirmar que:

"Olha, aqui, nós estamos sem material porque é a primeira turminha que tem a tarde. Mas nós estamos montando um plano de aula de elaborar um baú de, com várias coisas dentro [...]."

Paula, por sua vez, afirma possuir um acervo dentro da própria sala de aula, confeccionado pelos alunos. Contudo, grande parte dos livros é de obras condensadas e se restringem a poucas histórias:

"[...] eles trazem um livro no começo do ano né, não são os livros assim, que a gente colocaria como ideal, mas é o que tem de real hoje para as nossas crianças, por serem crianças mais carentes, eles trazem muito aqueles livros dos 3 reais. Então, daí, tem diversas histórias: tem Joãozinho e Maria, tem Chapeuzinho Vermelho, tem Os Três Cabritinhos".

O que faz uma história se tornar tão interessante?

Por mais que essa pergunta pareça um pouco óbvia, é interessante colocá-la como título, uma vez que esta pode vir a suscitar mais reflexões e permitir que demais hipóteses sejam levantadas, partindo de princípios psicanalíticos, sobre as possíveis razões de as crianças reagirem tão positivamente aos Contos de Fadas. A presente categoria será iniciada, assim, com uma resposta de Laura, ao ser indagada sobre a reação dos pequenos perante esse gênero literário:

Laura: "[...] As crianças gostam muito. Eles se identificam com a história né? Com os personagens. A vez que trabalhei com A Branca de Neve, teve um aluno que ficou invocado nos anões [...]".

A forma como Laura trabalhou com o referido Conto, certamente suscitou grande entusiasmo entre as crianças:

"[...] A princípio não utilizei o livro, mas fiz toda uma encenação para contar a história que eles já conheciam. Eu comecei levando uma maçã para a sala e perguntando de que história eles se lembravam. Outro dia combinei com a diretora para colocar na sua foto do whats a foto da Branca de Neve para que eles achassem que a Branca de Neve estava me ligando. Eles ficaram loucos! Trabalhei uns 10 dias seguidos com esse conto, fiz as crianças escreverem bilhetes para a Branca de Neve e respondia como se fosse ela, dizendo que eles receberiam um presente. No final, uma professora do CEINF foi lá entregar a "surpresa" - era uma caixa com vários pirulitos de maçã do amor que "a Branca de Neve havia enviado para eles". A reação deles foi o máximo [...]."

Com esse tipo de atividade, Laura conseguiu possibilitar meios para que as crianças fantasiassem acerca do Conto trabalhado.

Marta, ao proporcionar aos alunos a experiência com os Contos de Fadas, ressaltou que:

"[...] eles gostam muito, eles interagem, né. Eles querem... alguns já conhecem, outros às vezes não conhecem, mas, à medida que a gente vai contando também eles vão interferindo e falando 'não, poderia ser assim ou poderia ser desse jeito', 'porque que o personagem fez isso e não aquilo', entendeu? Então eles gostam bastante, principalmente quando é com recurso".

Frente à realidade do público infantil que frequenta a referida escola municipal, designada também como rural, uma das professoras pontuou que diversas crianças, além de muitas vezes não conhecerem os Contos em si, desconheciam o próprio livro:

Paula: "[...] Tem muitas crianças que nunca vieram para a escola, então, para eles tudo isso é muito novo. Tem criança que não conhecia livro, tem crianças da fazenda que não sabia que que era livro, né; então assim, [...] eles pegam o que aparecer na frente, para eles tudo aquilo ali é novidade. Então eles gostam muito. São poucas as crianças que conhecem as histórias né, então para a maioria é tudo muito novidade."

Tal colocação reforça a importância do papel do professor como um mediador nessa relação inicial da criança com o livro, uma vez que o educador pode selecionar as literaturas que vão "aparecer na frente ", e possibilitar que, além de novidades, elas sejam de qualidade, significativas a ponto de continuarem despertando a curiosidade das crianças e, por conseguinte, enriquecendo-as cultural e emocionalmente.

Rodas de Conversa

A partir das rodas de conversa, foi possível proporcionar aos professores um ambiente mais interativo, que suscitou discussões, reflexões e trocas de experiências entre os participantes. Todos os professores tiveram uma participação ativa e contribuíram com a discussão, no sentido de relacionar o que estava sendo abordado com a própria experiência. Verificou-se que o mesmo aspecto identificado nas entrevistas semiestruturadas se repetiu: a tendência em associar o pedagógico até mesmo ao espaço da fantasia.

Notou-se que parte dos professores conhecem, valorizam e fazem o uso em sala de aula, tanto dos Contos quanto de outras atividades lúdicas, porém, atrelados à finalidade didático-pedagógica. A partir dessa constatação, foi apresentado a esses profissionais o olhar que a Psicologia - em especial, a Psicanálise - tem acerca da importância desse gênero literário para o desenvolvimento emocional infantil, uma vez que eles, como professores, adquirem um papel extremamente significativo no que diz respeito a todas as esferas do desenvolvimento das crianças em idade pré-escolar.

A forma como o primeiro dia de intervenção foi conduzido contemplou uma breve discussão sobre a origem dos Contos de Fadas, uma síntese sobre a importância da fantasia, tanto na infância quanto na vida adulta, e a reflexão que norteou este trabalho de que "é possível que a razão pela qual os Contos de Fadas se mantenham populares até hoje no meio infantil, esteja relacionada com a influência que exercem na realidade interna das crianças". Nesse sentido, os conteúdos abordados, aos poucos, foram esclarecendo essa influência.

Já no segundo encontro, foi ressaltada a importância de se trabalhar os Contos de Fadas de uma forma mais "livre", para que, a partir desse exercício, fossem proporcionados às crianças os suportes necessários para o fantasiar em torno das histórias, bem como o contato com aquilo que é autêntico em si.

De modo geral, a discussão buscou levar considerações e olhares de alguns autores de abordagem psicanalítica acerca da riqueza de se transcender a função pedagógica dos Contos de Fadas, ao mesmo tempo em que procurou enfatizar as implicações pouco proveitosas relacionadas ao hábito de explorar exclusivamente o campo pedagógico dessas histórias.

A importância do estímulo à fantasia, na infância, a partir de uma variedade de histórias, também foi um dos temas abordados. Foram apresentados diversos Contos de Fadas (dos mais clássicos aos mais contemporâneos), inclusive em suas versões em PDF - visto que um dos professores havia mencionado a escassez desse tipo de material oferecido pela escola.

Foram apresentados Contos de autoria de Charles Perrault, Jeanne-Marie L. de Beaumont, Irmãos Grimm, Hans Christian Andersen, Lewis Carroll, Joseph Jacobs e James M. Barrie.

Nesse segundo encontro, o importante envolvimento dos professores foi significativamente maior. Estes, mais uma vez, relataram algumas de suas experiências em sala e reconheceram que, de fato, proporcionar uma vivência mais livre com a literatura, em especial com os Contos de Fadas, pode vir a ser importante e mais efetivo, em termos de riqueza subjetiva.

Além disso, o exercício da narrativa dos Contos de Fadas também foi um ponto considerado de grande relevância: "Eu, particularmente, já percebi que durante as aulas as crianças ficam dispersas quando a gente usa o livro, elas preferem muito mais a história contada, parece que prende mais a atenção delas ". Um dos professores ainda evidenciou que a valorização ao uso dos Contos de Fadas como um recurso importante, especialmente para o desenvolvimento emocional, deveria ser considerada, não só na Educação Infantil. De acordo com ele: "seria importante ter uma continuidade aí, mas não tem, porque aí chega lá no primeiro ano e corta tudo, não pode, não podia (sic)". O mesmo professor elogiou o trabalho que duas professoras regentes de turma desenvolveram na escola com o Conto "A Branca de Neve e os Sete Anões": "eu acho incrível o trabalho que elas fizeram com o conto da Branca de Neve; é uma pena que depois que cresce e chega lá no fundamental esse tipo de coisa acaba, eles não veem mais ".

O terceiro dia de intervenção teve como principal objetivo realizar uma devolutiva referente às atividades propostas, bem como oportunizar aos professores o relato das experiências adquiridas nos encontros anteriores, a partir de suas percepções sobre como os conteúdos abordados até ali poderiam auxiliá-los na prática. Para tanto, foi solicitado a cada professor escrever ou falar o que conseguiram extrair de mais significativo dos encontros, e o que acrescentariam como sugestões, se existissem em seu contexto outros trabalhos com direcionamento semelhante.

Um dos professores registrou que considerou de grande valor o "incentivo para inserir o Conto de Fadas ou outros na aula, de modo que o aluno possa criar e buscar o mundo da fantasia para ter sua criatividade incentivada. Através da leitura a criança pode se desenvolver bastante, associando o mundo da fantasia com o mundo real". Outro professor ressaltou ter compreendido a relevância da fantasia, que pode ser estimulada a partir dos Contos; e, mais uma vez, se mostrou inconformado com o fato de "não existir continuidade a esse tipo de incentivo para além da Educação Infantil ".

Diversas colocações, fundamentadas pelos autores citados neste trabalho, que evidenciaram a importância dos Contos de Fadas para o desenvolvimento emocional da criança, despertaram nos professores maior sensibilidade em relação ao exercício da narrativa dessas histórias para seus alunos e, consequentemente, para seus próprios filhos: "em casa eu tenho procurado contar, mesmo que o meu filho peça para eu ler sempre a mesma história, todas as vezes (sic)".

Dois professores recordaram momentos da infância em que se sentavam com a família para ouvir histórias - quer fossem Contos de Fadas ou Contos de terror -, e ainda consideraram a importância de resgatar os aspectos da infância por meio da fantasia, dos Contos de Fadas, uma vez que, no atual contexto, cada vez mais, as crianças vêm sendo expostas a conteúdos inadequados para sua faixa etária, através dos diferentes meios de comunicação: "parece que as crianças tiveram a sua infância roubada com esses programas e propagandas que andam passando na TV, então é importante resgatar essa fantasia através das histórias que podemos contar ".

Por fim, como sugestão para possíveis abordagens futuras, os professores consideraram que seria interessante realizar uma intervenção com os próprios alunos; um momento em que houvesse uma interação que lhes permitisse, coletivamente, colocar em prática as novas perspectivas aprendidas, no que se refere à utilização dos Contos de Fadas em sala de aula, utilizando, nas palavras deles, "várias técnicas para trabalhá-los ".

 

DISCUSSÃO

Frente ao posicionamento dos professores durante as entrevistas, ficou explícito que para se trabalhar com a Educação Infantil, as utilizações das atividades lúdicas são indispensáveis, uma vez que estas facilitam o trabalho, já que despertam o interesse das crianças. Essa compreensão foi generalizada entre os participantes, todavia, uma das hipóteses levantadas a partir dessa ideia, é a de que esse discurso tenha sido instituído/reforçado a partir da concepção já amplamente difundida socialmente de que o universo infantil precisa ser lúdico. Mas por qual razão?

Há registros que indicam ser provável que esse enfoque ao lúdico tenha se tornado frequente no Brasil a partir da década de 1980, período em que, de acordo com Radino (2003), as discussões em torno do universo infantil tornaram-se mais recorrentes, uma vez que a partir de então foi dada uma maior visibilidade às crianças. Nesse sentido, começou-se a observar divergências desde a formação profissional dos professores, até o método pedagógico utilizado no ensino às crianças da pré-escola. Assim, por influência de estudos da Psicologia, que levavam em consideração o desenvolvimento infantil, iniciava-se uma procura por métodos distintos que contemplassem as particularidades das crianças - fantasias, brincadeiras e atividades. A autora aponta que até mesmo o papel da escola passou a ser indagado, a partir do momento em que se concluiu que o objetivo da Educação deveria transcender a difusão do conhecimento científico, abrangendo o sujeito como um todo - como um ser ativo, social e cultural.

Nesse sentido, no discurso dos professores da Educação Infantil, é importante e possível articular os Contos de Fadas com as disciplinas que lecionam e com os conteúdos que serão abordados em sala de aula, uma vez que tais histórias são consideradas lúdicas. Logo, os Contos são tomados como uma ferramenta complementar ao ensino pedagógico.

Corso e Corso (2006) afirmam que as crianças dificilmente se prendem aos conteúdos didáticos que se pode filtrar dos Contos, uma vez que demonstram ter uma maior preferência às histórias que não possuem a finalidade de educar. O que não quer dizer que elas também não estejam suscetíveis à aprendizagem, pois os autores deixam muito claro que isso não implica em deixar de lado a educação, por meio dos conteúdos pedagógicos, mas de impedir que esse tipo de conteúdo, de maneira subliminar, atrapalhe suas provisões de fantasias, já que as crianças "parecem preferir um território livre de influências pedagógicas" (p. 304).

Dos 5 professores entrevistados, 2 consideraram a importância de transcender a função pedagógica dos Contos. A professora Paula, especialmente, ao considerar durante a entrevista que "esse pedagógico da história acaba o encanto ", corresponde ao que Radino (2003) já havia evidenciado, uma vez que considerou que enquanto o brincar e o fantasiar estiverem atrelados a finalidades pedagógicas, a ânsia de a criança conhecer o mundo através da fantasia e da brincadeira, pode ser afetada de maneira negativa, uma vez que a espontaneidade dessa ação tende a ser perdida. A racionalidade se interpõe como uma barreira diante da criança, já que "tanto o brincar como o ouvir histórias tornam-se tarefas quando objetivam o desenvolvimento de atividades pedagógicas" (p. 162).

Visto que um número restrito de Contos de Fadas é trabalhado no referido contexto escolar, faz-se relevante ainda evidenciar que Bettelheim (1976/2011) mostrou que a narrativa de poucas histórias é limitante se comparada à diversidade de Contos disponíveis, capazes de responder e levantar problemas. Além disso, quanto maior a variedade de histórias, maiores as possibilidades de fantasiar acerca das mesmas.

Bettelheim (1976/2011) ressalta ainda o valor crucial do estímulo à fantasia na infância, ao considerá-la um mecanismo capaz de moldar o inconsciente e auxiliar na construção da personalidade. Para ele, a privação desse tipo de experiência implica limitações na vida, uma vez que acredita que "sem fantasias para nos dar esperanças, não temos forças para enfrentar as adversidades da vida" (p. 173). Corso e Corso (2006) também evidenciam a importância de possibilitar às crianças uma vasta variedade de histórias. Os autores comparam os Contos a uma caixa de ferramentas, na qual "sempre temos o instrumento certo para a operação necessária, pois determinados consertos ou instalações só poderão ser realizados se tivermos a broca, o alicate ou a chave de fenda adequados" (p. 303).

Por essa razão, na intervenção realizada com os educadores, foram pensadas estratégias que possibilitassem às crianças, por meio dos professores, uma variedade de "ferramentas" que pudessem se adequar às suas necessidades, proporcionando assim o incentivo à fantasia, sem o enfoque único das finalidades didático-pedagógicas. Para isso, além de ressaltar aos professores, por meio das rodas de conversa, a importância dos Contos de Fadas para o desenvolvimento emocional infantil, nos encontros foi proposto que direcionassem um tempo da aula para a leitura, narrativa e discussões dos Contos de Fadas.

A respeito do conteúdo abordado na segunda categoria de análise, Bettelheim (1976/2011) diz que o que torna os Contos de Fadas encantadores para as crianças consiste no fato destes oferecerem um suporte aos seus conflitos mentais, uma vez que ao identificarem-se com uma determinada história, independente de qual seja, o final é sempre feliz e reconfortante. A professora Laura pontuou que, ao trabalhar com o Conto "A Branca de Neve e os Sete Anões", "teve um aluno que ficou invocado nos anões". Diante dessa afirmativa, várias suposições poderiam ser levantadas, considerando a maneira particular sobre a qual cada Conto será interiorizado pelas crianças.

Alguns psicanalistas, dentre eles, Corso e Corso (2006) e Bettelheim (1976/2011), extraíram o significado de alguns Contos de Fadas específicos em seus livros e os analisaram com base no referencial psicanalítico. Especialmente Corso e Corso (2006) explicitam um aspecto importante que circunda a presença dos anões no Conto da Branca de Neve. Segundo eles, "essas figuras funcionam como ganchos de identificação mais diretos para as crianças" (p. 81), uma vez que a imagem dos anões, em especial, pode vir a ser facilmente associada a crianças, já que estes "são representados como adultos em miniatura" (p. 81). Nesse sentido, por meio da fantasia as crianças podem vir a se identificar com certa facilidade com determinadas personagens.

Para Radino (2003), "a fantasia é o nosso combustível interno" (p. 116). De acordo com a autora, a sobrevivência psíquica está estritamente ligada à capacidade de criar fantasias, que são realmente primordiais para auxiliar na elaboração de nossas angústias, para as quais os Contos de Fadas contribuem positivamente.

Corso e Corso (2006) afirmam que "uma mente mais rica possibilita que sejamos flexíveis emocionalmente, capazes de reagir adequadamente a situações difíceis, assim como criar soluções para nossos impasses" (p. 303). Os autores ressaltam que isso depende dos estímulos recebidos na infância. Entretanto, por mais ricos que sejam esses estímulos em termos de fortalecimento emocional, os problemas e angústias advindas deles, sempre existirão. "Bem, essa é a hora em que uma boa caixa de histórias é de grande valia" (p. 303). "Uma boa caixa de histórias" pode se fazer repleta de significados e beneficiar de maneiras diferentes, através das fantasias criadas em torno delas, quem quer que tenha um acesso mais amplo a ela.

Radino (2005) salienta que a Psicologia tem destacado a importância das atividades expressivas para um desenvolvimento emocional mais saudável. Tais atividades podem ser desempenhadas por meio dos Contos de Fadas, música, brinquedo, teatro, dentre outras manifestações artísticas. Entretanto, o fato de esse tipo de atividade compor o Projeto Político Pedagógico da escola não implica que estas estejam sendo trabalhadas de maneira adequada e significativa com as crianças. A autora ainda frisa que "mais do que preencher a criança com tarefas, responsabilidades e compromissos, é preciso assegurar seu direito maior, de ser simplesmente criança" (p. 161). Direito este que pode ser adquirido tanto na família e na comunidade, quanto na escola.

Além de Radino, Winnicott (1965/1983) já considerava o valor das experiências culturais, da imaginação e da brincadeira, uma vez que elas conseguem possibilitar um certo sentimento de segurança. Paula reconhece essa questão ao descrever que a reação das crianças frente ao momento da história, é: "fantástica! Eles amam! Eles ficam esperando por aquele momento da leitura do livro né, quando, assim, tem vez que a gente vê que a aula está indo rápido e aquele momento está ficando, eles falam 'tia não, mas agora é a hora do número 5, olha lá tia, é a hora dos livros', então eles não deixam passar. Pode ser assim, que a gente até queira, tem vez que a gente tem que terminar uma atividade, mas aí a gente tem que parar e ir para os livros porque aquilo ali pra eles é algo muito importante [...]."

Importância esta que pode vir a ser reconhecida pelos adultos e sentida pelas crianças, uma vez que forem abordadas de uma maneira significativa. Assim, cabe finalizar parafraseando Corso e Corso (2006), que concordaram que por mais que a ficcionalidade que envolve os Contos de Fadas e outros tipos de literatura não tenha o poder de salvar o mundo, ela ao menos poderá enriquecê-lo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diversos pesquisadores, dentre eles psicanalistas, consideram a importância do estímulo à fantasia para o desenvolvimento infantil. Inclusive Bettelheim (1976/2011), que disse que "as fantasias da criança são seus pensamentos". De acordo com ele, os pensamentos dos pequenos não funcionam de uma maneira organizada como o pensamento dos adultos, pois a criança, na tentativa de compreender a si e as outras pessoas que permeiam sua vida, cria fantasias diante de suas demandas. Entretanto, no contexto escolar, nem sempre esse entendimento é difundido entre os professores. Durante a pesquisa, foi observado que as exigências e cobranças direcionadas aos professores, por resultados que envolvam a apropriação do conhecimento científico pelas crianças, se faz quase sempre frequente, o que muitas vezes impossibilita esses educadores de fornecerem a elas os estímulos necessários que oportunizem a fantasia, que pode ser oferecida por meio dos Contos de Fadas, quando são abordados de uma maneira mais livre e natural.

O escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, em 1943, já dizia que "todas as pessoas grandes foram um dia crianças, mas poucas se lembram disso". Não obstante, identificar o valor que as "pessoas grandes" atribuíam aos Contos de Fadas e posteriormente ressaltar sua importância para o desenvolvimento emocional das crianças, de certa forma, pode despertar aquilo que as responsabilidades da vida adulta, por vezes, as obrigam a esquecer: as singularidades da infância. Os resultados foram bastante satisfatórios, uma vez que tal questão se efetivou durante as rodas de conversa, nas quais julgou-se relevante aguçar a sensibilidade dos professores acerca do universo infantil, englobando as necessidades das crianças no que diz respeito a uma vivência mais espontânea com a literatura, especialmente com os Contos de Fadas, já que os conteúdos desse gênero literário podem fornecer subsídios importantes para a fantasia e consequentemente para o desenvolvimento emocional infantil.

Por fim, é importante salientar que esta pesquisa não se esgota aqui. Tendo em vista a dimensão que tanto os Contos de Fadas, quanto a fantasia, podem ocupar na vida das crianças na idade pré-escolar, certamente ainda há muitas questões a serem exploradas diante da temática; tais questões podem, inclusive, ser trabalhadas a partir de outros enfoques, objetivos e perspectivas, de maneira que mais reflexões sejam suscitadas em torno da afirmativa de Corso e Corso (2006), de que não só as crianças, mas todos precisamos de fantasia, haja vista que não é possível viver sem escape. "Para suportar o fardo da vida comum, é preciso sonhar". Eis o encanto da magia intrínseca ao ser humano, ainda que não percebamos.

 

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Larissa Santos Gomes Universidade Federal de Mato Grosso do Sul campus Paranaíba, Departamento de Psicologia desta mesma universidade, Mato Grosso do Sul, MS, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5323-9988
E-mail: larissagomeslsg@gmail.com
Cláudia Yaísa Gonçalves da Silva é doutoranda em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Clínica, São Paulo, SP, Brasil.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7337-5917
E-mail: claudia@psico.life.

 

 

1 É importante que se tenha a clareza de que nem todos os Contos infantis possuem essas características. Os próprios autores reconheceram isso no decorrer do capítulo ao acrescentarem que: "Devemos reconhecer, tal como o fez E. Fromm, o aspecto ideológico dos contos de fadas expresso no seu "moralismo". Mas nem todos eles são "moralistas". (Peixoto & Viana, 2002, p. 55).

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