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Psicologia da Educação

Print version ISSN 1414-6975On-line version ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.50 São Paulo Jan./June 2020

http://dx.doi.org/10.5935/2175-3520.20200014 

RESENHA

 

O cérebro aprendiz: neuroplasticidade e educação

 

 

Rodrigo Hohl

Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF – Minas Gerais – MG – Brasil; hohlrodrigo@gmail.com

 

 

"Dentre as várias disciplinas que podem estabelecer vínculos com os problemas da Educação, talvez a que tem maior potencialidade de repercussão conceitual e prática é a Neurociência" (Lent, 2019, p. 7; doravante, apenas números de páginas serão referenciados). A afirmação sintetiza a tese do livro O cérebro aprendiz: Neuroplasticidade e Educação, 148 páginas, editado em 2019, do autor Roberto Lent, médico formado em 1972 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Titular de Ciências Biomédicas da UFRJ, Pesquisador do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino, e Coordenador da Rede Nacional de Ciência para Educação. O contexto de produção do livro é apresentado nas páginas VII-VIII por três de seus orientandos de doutorado: Daniel Menezes Guimarães, Diego Szczupak e Kleber A. Neves, os quais são referenciados no prefácio (do próprio autor) como revisores do texto original em colaboração com Patrícia Garcez, professora adjunta do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ e Cilene Vieira Lent, editora. O prefácio e a contracapa recomendam a leitura do livro por professores, estudantes de pedagogia e das diversas licenciaturas, psicólogos, psiquiatras, pediatras e gestores educacionais.

Ainda no prefácio, Roberto Lent preocupa-se em apresentar ao leitor o recorte neurobiológico relacionado com a educação que pretenderá esmiuçar nas páginas seguintes: a neuroplasticidade, a "propriedade do sistema nervoso que está na raiz da educação" (p. IX). Se por um lado tal afirmação denota a relevância do tema para o autor, por outro, Lent apresenta uma narrativa ao longo do livro que visa atenuar uma possível interpretação reducionista sobre a relação neuroplasticidade e educação. Nesse sentido, ele se mostra cauteloso ao escrever que deixou de lado "(...) precavidamente, os polos (o molecular, de um lado, e o social do outro)" (p. IX) com planos de abordar numa publicação futura, contando com a contribuição de especialista de outras áreas, ambos os polos.

Em sua introdução, (capítulo 1), Lent propõe uma política de pesquisa translacional na educação, análoga às práticas da área da saúde, e cita Stokes (1997) como referência propositiva de uma pesquisa inspirada pelo uso, isto é, quando o produto da ciência é fruto da síntese da descoberta de conceitos fundamentais com a utilidade prática. Nesse sentido, Lent aponta como incipiente a tentativa de conectar a ciência produzida nas universidade e institutos de pesquisa com a sala de aula, em oposição ao que vem ocorrendo na área da saúde, segmento em que a pesquisa básica progride para a pesquisa aplicada e para a inovação em busca de maior eficiência nas intervenções médicas. Todavia, o autor preocupa-se em conscientizar o leitor sobre o risco de a neuroeducação (i.e. a neurociência aplicada à educação) transformar-se em "neuromoda", isto é, uma panaceia oriunda do "(...) alto poder sedutor das explicações reducionistas (...)" (p. 8) para fenômenos cognitivos, psicológicos ou psicofisiológicos cuja "(...) mágica sedução (...)" (p. 8) costuma atingir o público leigo impressionado pelas imagens coloridas de cérebros em atividade funcional publicadas na mídia convencional.

O Capítulo 2, Neuroplasticidade, o que é?, relaciona neuroplasticidade com aprendizagem e memória. Aprendizagem é definida como o processo de formação de memórias (informação registrada pelo cérebro que poderá ser utilizada para o planejamento de ações ou modificações no comportamento em benefício da pessoa). "A palavra aprendizagem, assim, envolve o indivíduo com seu cérebro, captando informações do ambiente, guardando-as por algum tempo e, eventualmente, utilizando-as para orientar o seu comportamento subsequente" (p. 13). Percebe-se certo viés reducionista-materialista reafirmado na relação aluno-professor, definida como uma "(...) interação entre dois cérebros" (p. 15). A interação entre cérebros é o estímulo que geraria mútuas modificações da matéria cerebral, ou seja, neuroplasticidade (modificação de redes celulares neurais). Para evitar uma abordagem reducionista estrita, o autor apresenta sua moldura conceitual heurística, segundo a qual a neuroplasticidade dimanaria de causas existentes nos planos biológico, psicológico e socioculturais. Portanto, seria necessário um esforço em busca da unidade do conhecimento, ou consiliência, proposta epistemológica de Edward Wilson (Wilson, 1999). A consiliência decorreria de oito níveis heurísticos da neuroplasticidade, descritos numa escala intercambiável de proposições cujos extremos seriam um polo reducionista de explicações unitárias e outro polo holístico de explicações sistêmicas, a saber (em ordem crescente): (1) memória molecular, (2) plasticidade sináptica, (3) plasticidade de microcircuitos, (4) neuroplasticidade de longa distância, (5) neuroplasticidade de redes cerebrais, (6) neuroplasticidade transpessoal, (7) interações psicológicas, (8) economia e sociologia da educação. O capítulo termina com a proposta que dará sequência ao livro: abordar os níveis heurísticos sucessivos da neuroplasticidade como mecanismos subjacentes à educação, admitindo-os como fundamentação para proposição de práticas educacionais. Conforme antecipado no prefácio, o autor não abordará neste livro os níveis (7) e (8) com aprofundamento.

O Capítulo 3, Neurônios interativos, introduz conceitos elementares da comunicação entre as células excitáveis do sistema nervosos (isto é, neurônios) e enfatiza os mecanismos moleculares da memória sináptica. Sinapse é o local onde ocorre a transmissão do impulso nervoso (isto é, comunicação) entre neurônios; memória sináptica seria a alteração perene de estruturas moleculares responsáveis pela sinapse. Tais alterações estariam diretamente relacionadas com os estímulos ambientais. "A sinapse é a sede celular da aprendizagem e da memória (...). É na sinapse que o neurônio aprende" (p. 33) e, portanto, memória seria a consolidação da informação através da plasticidade sináptica, o sítio mais reducionista do fenômeno aprendizagem. O Capítulo 4, Circuitos aprendizes, apresenta as bases moleculares da plasticidade dos circuitos neurais aprendizes, isto é, o processo de aprendizagem geraria alterações moleculares nas sinapses de vários neurônios na proporção de muitos milhares de microcircuitos possíveis. Quanto mais consolidadas certas alterações nos circuitos, mais estável se torna o arquivamento da informação pelo cérebro. O autor usa analogias e descrição de experimentos seminais para tornar atraente um tema árido para leitores não habituados aos conceitos e processos da biologia celular. Ademais, contextualiza as evidências encontradas em modelos animais que ainda carecem de confirmação em seres humanos, destacando-se a neurogênese, ou seja, a formação de novos neurônios no neocortex associada ao processo de aprendizagem espacial em roedores, mas até o presente momento não observada na aprendizagem humana. Portanto, as pesquisas apontam para a neuroplasticidade como fenômeno biológico fundamental para a aprendizagem em seres humanos, sendo a neurogênese uma possibilidade ainda sem consenso.

O Capítulo 5, Redes Dinâmicas, aborda o conceito de redes neurais de longa distância que servem como conectores de módulos cerebrais (isto é, estruturas presentes em diferentes coordenadas no cérebro), capazes de atuarem em concerto durante atividades cognitivas e comportamentais complexas como leitura, escrita e memorização. As estruturas cerebrais conectadas à distância responsáveis por leitura, escrita e memória são apresentadas com moderado grau de detalhamento, suficiente para convencer o leitor de que há um componente genético potencial compartilhado pela espécie humana a ser desenvolvido através dos estímulos ambientais. Estudos que versam sobre o domínio da leitura e da escrita são utilizados para exemplificar a associação entre neuroplasticidade e aprendizagem, relação justificada através de uma habilidosa narrativa histórica sobre os avanços dos experimentos e observações empíricas possibilitados pelo progresso tecnológico. Ademais, Roberto Lent se preocupa em contextualizar o leitor sobre os fundamentos biofísicos das técnicas de registro da atividade cerebral humana (por exemplo, ressonância magnética, eletroencefalograma e outras) que possibilitaram os experimentos e sustentam os modelos cognitivos da neurociência. O texto procura convencer que a aprendizagem é um processo que gera alterações físicas nas redes neurais, sobretudo ao demonstrar que a capacidade de escrever e o domínio da linguagem matemática estão associados a alterações na conectividade e na atividade de módulos cerebrais, as quais não seriam adequadamente justificadas por adaptações evolutivas da espécie, sendo a escrita e a linguagem matemática "(...) considerados produtos da nossa cultura e, portanto, aprendidos durante o desenvolvimento pós-natal das crianças" (p. 80).

O Capítulo 6, Crianças: uma longa transição, se dedica a uma revisão bastante atualizada, sem ser exaustiva, sobre o desenvolvimento neuropsicológico desde o estágio intrauterino até a fase adulta, associado aos processos neurobiológicos subjacentes (por exemplo, neurogênese, formação de sinapses, morte celular programada, mielinização). Apoiando-se em bibliografia atualizada, que compreende os últimos dez anos a partir da data de publicação, a narrativa sugere que a identificação dos períodos críticos de aprendizagem (isto é, períodos em que o sistema nervoso é mais sensível a adaptar-se a certos estímulos ambientais específicos e planejados) vem passando por um período de revisão a partir do paradigma da neurociência. Essa posição do autor nos parece ilustrada na descrição de um estudo sobre a identificação do silogismo disjuntivo, uma habilidade de dedução lógica observada em crianças de 1 ano (Cesana- Arlotti et al., 2018), que representaria uma "(...) descoberta que espantaria o famoso biólogo e psicólogo Jean Piaget (...)" (p. 80 referindo-se à Piaget, 1970, p. 387), para quem o silogismo disjuntivo poderia apenas ocorrer após os dois anos de idade.

O Capítulo 7, O conectoma mutável, enfoca o esforço da neurociência em desvendar o conectoma humano: "O objetivo maior desse projeto ambicioso é revelar o mapa completo dos circuitos cerebrais (...) bem como suas funções, permitindo assim não apenas compreender melhor a natureza da mente e seu desenvolvimento orientado pela educação, como também a dos transtornos psiquiátricos (...)". (p. 89). O autor fornece exemplos de estudos seminais na área do conectoma, apresentando uma narrativa que introduz o leitor neste universo extremamente especializado e novo. Lent também aponta os desafios a serem vencidos nessa empreitada humana, destacando-se a variabilidade biológica e a neuroplasticidade específica de cada cérebro como consequência das experiências de vida de cada um. Nesse sentido, conclui que a conectividade cerebral de longa distância (isto é, mapa dos circuitos cerebrais) é suscetível a variações plásticas específicas e mutáveis desde a fase embrionária até a adulta em resposta aos estímulos ambientais, aos variantes genéticos e ao treinamento de habilidades diversas. Neste nível holístico, generalizar a conectividade cerebral em um modelo representativo da espécie humana é realmente uma tarefa desafiadora.

O Capítulo 8, Cérebros interativos: a neuroplasticidade transpessoal, apresenta ao leitor a técnica de hiperescaneamento cerebral, isto é, o registro simultâneo das atividades cerebrais de vários indivíduos em interatividade social durante uma observação naturalística. O objetivo desse tipo de desenho experimental seria "(...) compreender os mecanismos de neuroplasticidade no compartilhamento e troca de informações entre cérebros/pessoas" (p. 112). A sincronia da atividade cerebral entre pessoas vem sendo considerada uma indicação de atenção compartilhada e, portanto, um marcador neural que permitiria avaliar o engajamento coletivo sobre um mesmo alvo ou objetivo. Portanto, tal evolução técnica permitiria "(...) aferir quais intervenções do professor mostram-se mais eficazes para capturar a atenção dos alunos, motivá-los mais, e assim propiciar uma aprendizagem mais eficaz" (p. 112). Para sustentar a proposta, o autor descreve com relativo detalhamento o trabalho de Dikker et al. (2017), que realizaram um estudo de hiperescaneamento utilizando o eletroencefalograma numa sala de aula em ambiente escolar. Neste estudo, doze alunos do ensino médio passaram por onze aulas de cinquenta minutos com sequência didática idêntica: leitura em voz alta de um texto pelo professor, vídeo, aula expositiva e discussão em grupo. Para os autores deste estudo (Dikker et al., 2017), registrar a atividade cerebral em onze dias diferentes com a mesma sequência didática, essencialmente replicando o mesmo experimento onze vezes no mesmo grupo de estudantes, justificou-se em vista do rigor metodológico necessário de replicação do registro cerebral para posterior tratamento dos dados de encefalografia. É discutível o grau de aproximação desse desenho experimental (Dikker, et al., 2017) de uma sequência didática que se propõe a atingir objetivos de aprendizagem como variável dependente mais relevante. Nesse sentido, Dikker et al. (2017) apresentaram um criterioso estudo de validação técnica do método de hiperescaneamento e sincronização cerebral, mas há limitações sob o ponto de vista da pesquisa didática, visto que não houve detalhamento do conteúdo das aulas, registro qualitativo sistematizado das intercorrências e das discussões, objetivo de aprendizagem, racional da sequência didática e avaliação da aprendizagem. Não obstante, Roberto Lent aponta soluções metodológicas em curso para superar a limitação da transposição do conhecimento neurocientífico gerado em ambiente de laboratório, com rígido controle de variáveis, para o ambiente escolar, socialmente dinâmico, onde o controle (e identificação) de variáveis independentes é muito difícil.

No derradeiro Capítulo 9, Conclusão: pontes em construção, Roberto Lent revisita o seu propósito mais abrangente: provocar a pesquisa translacional na educação, isto é, a "(...) pesquisa inspirada pela sua utilização social" (p. 115). Para concretizar este objetivo, acredita que "(...) a neurociência, particularmente, a neuroplasticidade, desempenhariam um papel crucial" (p. 115). Embora os argumentos apresentados ao longo do livro advoguem em favor da neuroeducação, o autor denuncia que há resistência por parte da psicologia cognitiva em aceitar os benefícios práticos da neurociência aplicada a este âmbito, situação que ele caracteriza como territorialismo inútil. O calor desse debate é fomentado pelo artigo de Bowers (2016), que apresenta uma crítica à neurociência educacional, sintetizada aqui em dois pontos: (1) é mais fácil caracterizar capacidades cognitivas pela observação do comportamento do que pelo registro cerebral; (2) o importante é saber se a criança aprendeu, o que seria refletido pelo comportamento, não se o cérebro mudou, o que seria irrelevante. Roberto Lent, não obstante, finaliza o livro em tom conciliador. Ombreando com outros autores (Sigman, Peña, Goldin & Ribeiro, 2014; Weinstein, Madan & Sumeracki, 2018), aponta que o caminho ideal seria a ponte entre a neurociência e a psicologia cognitiva, com o objetivo comum de promover a consolidação de estratégias educacionais baseadas em evidências produzidas nas duas áreas de conhecimento.

O Cérebro aprendiz: neuroplasticidade e educação é uma obra que procura dar vigor ao debate acadêmico sobre métodos educacionais a partir do paradigma empírico-positivista da neurociência. O livro equilibra referências clássicas com atuais, muitas delas merecendo contextualização em notas de rodapé que, sem excessos, tornam-se um convite ao aprofundamento. O livro é didático, escrito em linguagem acessível e convidativa, ainda que algumas passagens sejam mais bem apreciadas pelo leitor iniciado em neurofisiologia e neuroanatomia. Concluindo, a ponte entre a neurociência e a educação está em construção. Roberto Lent não se precipita em construí-la, mas se propõe a desnudar alguns dos alicerces sobre um rio caudaloso.

 

REFERÊNCIAS

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Cesana-Arlotti, N., Martín, A., Téglás, E., Vorobyova, L., Cetnarski, R., & Bonatti L.L. (2018). Precursors of logical reasoning in preverbal human infants. Science, 359,1263-1266. 10.1126/science.aao3539        [ Links ]

Dikker, S.; Wan, L.; Davidesco, I.; Kaggen, L.; Oostrik, M.; McClintock, J.; Rowland, J., Michalareas, G., Van Bavel, J.J., Ding, M., & Poeppel, D. (2017). Brain-to-Brain Synchrony Tracks Real-World Dynamic Group Interactions in the Classroom. Current Biology, 27,1375-1380. 10.1016/j.cub. 2017.04.002        [ Links ]

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Piaget, J. (1970). O nascimento da inteligência da criança. (pp. 387). (Álvaro Cabral, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores.         [ Links ]

Sigman, M., Peña, M.; Goldin, AP.; & Ribeiro, S. (2014). Neuroscience and education: prime time to build the bridge. Nature Neuroscience, 17,497-502. 10.1038/nn.3672.         [ Links ]

Stokes, D. E. (2005). O quadrante Pasteur - A ciência básica e a Inovação Tecnológica. (pp. 247). (J.E. Maiorino, trad.). Campinas: Ed. da Unicamp. (Trabalho originalmente publicado em 1997).         [ Links ]

Weinstein, Y., Madan, C.R., & Sumeracki, M.A. (2018). Teaching the science of learning. Cognitive Research: Principles and Implications, 3(2),1-17. 10.1186/s41235-017-0087-y        [ Links ]

Wilson, E. O. (1999) Consilience. The Unity of Knowledge. (pp. 368). New York, USA: Vintage Books.         [ Links ]

 

 

Recebido: 29 de janeiro de 2019
Aprovado: 17 de agosto de 2020

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