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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.51 São Paulo jul./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.23925/2175-3520.2020i51p1-10 

EDITORIAL

 

Em defesa da educação inclusiva

 

 

Mitsuko Aparecida Makino AntunesI; Ruzia Chaouchar dos SantosII; Luciana de Oliveira Rocha MagalhãesIII

IPontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil; miantunes@pucsp.br
IIPontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil; ruziachauchar@hotmail.com
IIIPontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil; lucianam11@hotmail.com

 

 

Apresentamos o número 51 de nossa Revista, o primeiro de três que serão publicados com a data de 2020, ano insólito, cujas consequências ainda não são previsíveis, embora já se possa dizer que este será lembrado como um ano trágico para o mundo. Atravessamos este ano com uma pandemia que já deixou mais de 5 milhões de pessoas infectadas e mais de 150 mil mortos no Brasil. Mas não foi só isso, a ciência foi atacada, desqualificada e negligenciada. Assim como o foi a educação, a cultura, a saúde e o meio ambiente.

Quando este número da Revista estava sendo concluído, mais um ataque à educação; desta vez, a educação inclusiva, que vem sendo construída com muito esforço e buscando superar tantos obstáculos, corre o risco, pelo Decreto n° 10.502/2020, de ser minada em seus princípios mais caros.

Assim, a Comissão Editorial desta revista entende ser importante deixar explícito seu posicionamento acerca desse Decreto. A Revista Psicologia da Educação da PUC-SP reafirma aqui seu compromisso histórico ombreado às pessoas com deficiência na luta por seus direitos. É com pesar e com espírito combativo que elencamos alguns pontos que devem ser trazidos à tona em relação a este decreto e todo um conjunto de expropriações dragadas por ele.

Criteriosamente engendrado, este decreto mostra a que veio: trazer uma falsa consciência da realidade da Educação Especial-Inclusiva. Palavras e expressões que são próprias da nossa luta misturam-se a outras, de caráter ideológico; escondendo sua verdadeira face e, sobretudo, faltosas na ética! Ao longo do texto vamos sendo tomados de assalto pela ameaça às conquistas históricas tão caras às pessoas com deficiência. O título do decreto não o faz ser equitativo e inclusivo. Outra expressão, "aprendizado ao longo da vida", maliciosamente colocada no decreto, parece à primeira vista algo coerente com uma perspectiva de educação integral, permanente e inclusiva. Contudo, sabemos que se propõe uma escolarização segregada, em instituições particulares, porém mantidas pelo poder público, que estarão de portas abertas e cujos interesses são, no mínimo, duvidosos. Isso sem mencionar as escolas especializadas, que voltam à baila, bem organizadas por "tipo" de deficiência, ou seja, radicalmente segregatórias.

Trata-se de um discurso falacioso, que promete recursos, serviços e ações que soam, para ouvidos ingênuos, como avanço na educação de educandos com deficiência. No Capítulo V elencam-se esses serviços e recursos, como centros especializados, centros de apoio, centros de atividades, centros de capacitação profissional, classes especializadas, classes e escolas bilíngues, escolas especializadas, escolas-polo de atendimento especializado, materiais didáticos acessíveis e tecnologia assistiva disponíveis, salas de recursos, núcleos de acessibilidade, serviços variados de atendimento especializado. E quem oferecerá tudo isso? Eis aí uma das formas de expressão do caráter eminentemente privatista deste decreto, que abre não só brechas, mas valas enormes para a iniciativa privada e seus interesses mercantis com a transferência para seus cofres do dinheiro público destinado à educação especial/inclusiva.

No próximo número desta Revista, será publicada a conferência dada por Carla Biancha Angelucci, para o evento Implicações do Decreto n° 10.502 no desmonte das políticas públicas da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, convidada pela Faculdade de Educação da PUC-SP e seus quatro programas de pós-graduação (Educação: Currículo; Educação: Psicologia da Educação; Educação: História, Política e Sociedade e Educação: Formação de Formadores), com a participação de gestores, docentes e discentes (que foram os organizadores principais do evento). A análise apresentada pela conferencista reafirma nosso posicionamento e o aprofunda e complementa, com especial destaque para a interpretação da inconstitucionalidade do referido decreto.

Estamos, pois, diante da prova cabal da intenção deste decreto. Caminho inverso, inconstitucional, incoerente, irresponsável, que desconsidera a concepção social de pessoa com deficiência, colocando-a retrogradamente sob a égide do modelo médico e patologizante, priorizando o biológico, a falta, o defeito, em detrimento da pessoa como ser humano concreto. É preciso que se interprete o dito decreto à luz da luta histórica pelos direitos da pessoa com deficiência. Não dá mais para aceitar ingênua e passivamente nos argumentos banais e aligeirados que teimam em repetir que a educação inclusiva não dá certo, que a escola não está preparada, que professores não estão preparados! Estas são falsas questões! É o beco sem saída onde querem nos colocar! É mais um passo na direção de um "novo" projeto para uma educação elitista, privatista, acrítica e excludente de todas as formas expressas de diversidade e diferença.

Entretanto, o ataque à educação inclusiva é apenas uma face da moeda.

Os desdobramentos expressivos da ordem dominante vigente fundada em movimentos de privatização e subordinação às leis do mercado, reverberam entre outros campos da vida social, em leis e decretos orientados para dar curso ao aprofundamento do desmonte dos direitos sociais e trabalhistas, que passam a ser justificados e legitimados socialmente por um discurso falacioso e reforçado pela situação dramática de crise sanitária que assola o mundo e, muito particularmente, o Brasil, naturalizando as desigualdades sociais, econômicas, étnico-raciais e de gênero, como forma de manutenção da opressão e das injustiças sociais.

Diante disso, pode-se ilustrar os retrocessos na política nacional de saúde mental, álcool e outras drogas, proposta pela portaria de n° 069/2020, do Governo Federal, que aparentemente intenciona mitigar os efeitos da pandemia, ao pressupor o atendimento oferecido à população em situação de rua por comunidades terapêuticas em tempos pandêmicos. Todavia, é necessário interpretar esse movimento em suas contradições, haja vista que essa suposta medida de acolhimento oculta em seu bojo o processo de mercantilização dos fenômenos da vida social que se ancoram na ideologia de "guerra às drogas", constituídas por princípios proibicionistas, manicomiais e de higienização social forjados nas e pelas relações de dependência servil aos modelos hegemônicos do capital. Entender esse movimento e sua relação com o desmonte da educação inclusiva é tarefa que se nos impõe.

Esse processo, em articulação com a lógica lucrativa de leitos de internação psiquiátrica privados, entre outras formas trágicas de expressão de desumanização dos sujeitos, colocam-se na contramão da efetivação dos pressupostos históricos da Reforma Psiquiátrica e do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial, que compõem a política de Saúde Mental brasileira, em defesa dos direitos de cidadania que subsidiaram/subsidiam os movimentos de luta e resistência enredados por forças coletivas em prol das redes de atenção à saúde, delineadas em consonância com os fundamentos de intersetorialidade, integralidade e universalização que orientam a reabilitação psicossocial da população usuária dos serviços de saúde mental no território brasileiro, tal como preconizado pela Lei nº 10.216/2001.

Vale mencionar que o recrudescimento de proposições forjadas pela lógica de privatização do Sistema Único de Saúde, sustentam-se em tendências lucrativas e segregacionistas que se expressam, especialmente, em processos de exclusão social, estigmatização e naturalização do extermínio da população jovem negra periférica, moradores de rua, povos tradicionais e quilombolas, entre outros grupos sociais mais vulneráveis, enfocados sob o prisma da periculosidade, incapacidade e/ou moralismo, que alicerçam os regimes de contenção, vigilância, disciplinarização e ajustamento ao status quo. Em tempo, ainda que carecendo de estudo e análise rigorosa, acabou de ser publicado o Decreto n° 10.530/2020, que transfere para o Ministério da Economia determinações relativas à política de atenção primária à saúde, prevendo parcerias com o setor privado.

Nessa direção, convém assinalar também que a suposta ingenuidade presente em pressuposições que objetivam assegurar a amplificação de uma educação democrática em diferentes níveis, está circunscrita na lógica empresarial subsumida aos interesses do capital estrangeiro, tal como indicado nas raízes das acepções da portaria de nº 434/2020, que propõe a sistematização de Grupo de Trabalho fundada sob formulações que visam subsidiar a elaboração de estratégias orientadas para a ampliação da oferta dos cursos para o ensino superior em modalidade de educação a distância nas universidades federais. Tais medidas de aceleração do ensino EAD em instituições públicas, por sua vez, comprometidas com a expansão e consolidação do processo de mercantilização do ensino por conglomerados internacionais se expressam na massificação da "educação bancária" (Freire, 1970/1987), que se manifesta na acentuação dos ordenamentos formativos normatizadores, méritocráticos e produtivistas, que acirram as condições de precarização dos processos de ensino-aprendizagem, tornando as atividades docentes cada vez mais alienadas. Com efeito, tais aspectos reforçam o esvaziamento da função social do ato de ensinar que deve primar por sua intencionalidade em propiciar aos/as educandos/as instrumentos e signos culturais que lhes permitam a apropriação dos conhecimentos sistematizados historicamente e coletivamente pela humanidade, que são bases fundantes para o compromisso ético e político com a transformação da realidade, revelando-se como retrocesso histórico que atingem, sobremaneira, a expressiva parcela da população pobre brasileira.

Ademais, neste número, está publicado o artigo Contribuições da Pós-graduação sobre educação para o trânsito, que faz uma revisão das pesquisas nesse campo, dada a importância do tema e a necessidade do empreendimento de esforços para a diminuição da morbo-mortalidade no trânsito no país. Em tempo, há pouco o Código Nacional de Trânsito foi modificado, afrouxando as penalidades para infrações que põem em risco a vida de seres humanos.

Mais uma vez não podemos deixar de destacar a colaboração de muitas pessoas, entre elas mestrandas, doutorandas e ex-alunas, hoje doutoras e pós-doutorandas, do nosso PED: Ruzia Chaouchar dos Santos, Bárbara Palhuzi, Cíntia de Fátima, Jaqueline Nery, Daniele Kramm, Luciana Magalhães, Alessandra Olivieri, Regina Prandini, Marcus França Lopes, Sandra de Oliveira, Jéssica Silva, Priscila da Costa, Aline Matos, além do assistente de coordenação do Programa, Edson Aguiar. Sem cada uma/um de vocês, a concretização desta Revista não seria possível.

Agradecemos, também, aos muitos colegas pesquisadores que, numa situação tão excepcional, encontraram tempo para contribuir com as avaliações dos artigos submetidos à Revista.

Reconhecemos, especialmente, a importância do Programa PIPEQ, da PUC-SP, que tem financiado esta publicação, assim como aos demais profissionais da Universidade, em especial Waldir Alves, que nos têm dado um apoio profissional de excelência.

 

Referências

Freire, P. (1970/1987). Pedagogia do oprimido. 17ª Edição. São Paulo: Paz e Terra.         [ Links ]

Brasil. (2020). Portaria nº 069, de 14 de maio de 2020. Aprova recomendações gerais para a garantia de proteção social à população em situação de rua, inclusive imigrantes, no contexto da pandemia do novo Coronavírus, Covid-19. Diário Oficial da União. Recuperado: 22 out. 2020. Disponível: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-69-de-14-de-maio-de-2020-257197675        [ Links ]

Brasil. (2020). Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020. Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao longo da vida. Diário Oficial da União. Recuperado: 20 out. 2020. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10502.htm        [ Links ]

Brasil. (2020). Portaria nº 434/2020, de 22 de outubro de 2020. Institui Grupo de Trabalho com a finalidade de subsidiar a discussão, a elaboração e a apresentação de estratégias para a ampliação da oferta dos cursos de nível superior, na modalidade de educação a distância - EaD, nas universidades federais. Diário Oficial da União. Recuperado: 24 out. 2020. Disponível: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-434-de-22-de-outubro-de-2020-284699573        [ Links ]

Brasil. (2020). Decreto nº 10.530, de 26 de outubro de 2020. Dispõe sobre a qualificação da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada. Diário Oficial da União. Recuperado: 27 out. 2020. Disponível: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.530-de-26-de-outubro-de-2020-284999568        [ Links ]

 

 

Recebido: 27 de outubro de 2020
Aprovado: 28 de outubro de 2020

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