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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.51 São Paulo jul./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.23925/2175-3520.2020i51p11-21 

ARTIGOS

 

O encontro de piaget com o teste de inteligência de Cyril Burt: uma revisão narrativa

 

Piaget meeting with Cyril Burt's intelligence test: a narrative review

 

El encuentro de Piaget con el test de inteligencia de Cyril Burt: una revisión narrativa

 

 

André Elias Morelli RibeiroI; Leonardo Lemos de SouzaII

IUniversidade Estadual Paulista (UNESP, Assis) - São Paulo - SP - Brasil; andre.elias.morelli@gmail.com
IIUniversidade Estadual Paulista (UNESP, Assis) - São Paulo - SP - Brasil; leo.lemos.souza@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente estudo tem por objetivo principal desenvolver uma narrativa que mostre a influência do teste de inteligência de Cyril Burt na criação do método clínico de Jean Piaget, auxiliando na composição de conhecimentos deste assunto pouco estudado. Piaget estudou em Neuchâtel, Zurique e Paris antes de integrar o Instituto Jean-Jacques Rousseau em Genebra, no qual lançou seus primeiros livros, que o levaram a lugar de destaque na psicologia mundial. O presente trabalho faz uma comparação entre os dados disponíveis na literatura para recompor essa trajetória até o ponto decisivo de mudança no trabalho experimental de Piaget, que aconteceu em Paris, onde estudou o teste de inteligência de Cyril Burt. Conhecer os elementos da criação do Método Clínico é importante para compreender os fundamentos ontológicos e epistemológicos dos dados gerados por ele e suas consequências teóricas. Do contato com esse teste, Piaget sofreu três impactos determinantes para sua vida e obra. A primeira está ligada à tradução do teste, que ressaltou questões sobre parte/todo na linguagem das crianças. O segundo é a possibilidade de Piaget de observar dezenas de amostras do raciocínio explicado das crianças por elas mesmas, o que permitiu o ingresso das técnicas de observação da zoologia em sua psicologia. Por fim, as possibilidades de modificação e adaptação do teste, sua primeira experiência original em psicologia experimental, técnica que carregaria sua vida toda na constituição de seu Método Clínico.

Palavras-chave: História da psicologia; História da psicologia experimental; História de Jean Piaget; História da epistemologia genética.


ABSTRACT

The main objective of this study is to present a narrative that shows the influence of Cyril Burt's intelligence test in the creation of the clinical method used Jean Piaget, helping in the composition of knowledge on this subject. Piaget studied in Neuchâtel, Zurich and Paris before joining the Jean-Jacques Rousseau Institute in Geneva, where he launched his first books that took him to a prominent place in the field of psychology. The present work makes a comparison between the data available in the literature to recompose this trajectory until the turning point in Piaget's experimental work, which happened in Paris, where he studied the Cyril Burt's intelligence test. Knowing the elements of the creation of the Clinical Method is important to understand the ontological and epistemological foundations of the data generated by this method and its theoretical consequences. From contact with Cyril Burt's test, Piaget suffered three determinant impacts on his life and work. The first is linked to the translation of the test, which highlighted questions about the notions of part-whole in the children's language. The second is the possibility for Piaget to observe dozens of samples of the children's reasoning explained by themselves, which allowed the introduction of zoology observation techniques in his psychology. Finally, the possibilities of modifying and adapting the test, which is his first original experience in experimental psychology, a technique that he would carry his entire life in the constitution of his Clinical Method.

Keywords: History of Psychology; History of Experimental Psychology; History of Jean Piaget; History of Genetic Epistemology.


RESUMEN

El objetivo principal de este estudio es desarrollar una narrativa que muestre la influencia del test de inteligencia de Cyril Burt en la creación del método clínico de Jean Piaget, ayudando en la composición del conocimiento acerca deste tema poco comprendido. Piaget estudió en Neuchâtel, Zurich y París antes de unirse al Instituto Jean-Jacques Rousseau en Ginebra, donde lanzó sus primeros libros que lo llevaron a un lugar destacado en la psicología mundial. El presente trabajo hace una comparación entre los datos disponibles en la literatura especializada para recomponer esta trayectoria hasta el punto de inflexión en el trabajo experimental de Piaget, que sucedió en París, donde estudió el test de inteligencia de Cyril Burt. Conocer los elementos de la creación del Método Clínico es importante para comprender tanto sus fundamentos ontológicos y epistemológicos cuanto los datos generados por él y sus consecuencias teóricas. El contacto con este test, Piaget sufrió tres impactos determinantes en su vida y su trabajo. El primero está vinculado a la traducción del test, donde analizó las preguntas sobre parte / todo en el idioma de los niños. La segunda es la oportunidad para Piaget de observar docenas de muestras del razonamiento de los niños explicadas por ellos mismos, lo que permitió la introducción de las técnicas de observación de zoología en su psicología. Finalmente, las posibilidades de modificar y adaptar el test, su primera experiencia original en psicología experimental, una técnica que llevaría toda su vida en la constitución de su Método Clínico.

Palabras clave: Historia de la psicología; Historia de la psicología experimental; Historia de Jean Piaget; Historia de la epistemología genética.


 

 

Introdução

Em sua autobiografia (Piaget, 1976/1980), Piaget faz um belo relato sobre seus dias de estudo em Paris. Ele havia se mudado para a cidade em 1919 para estudar na Sorbonne, depois de se decepcionar um pouco com a psicologia que estudara em Zurique. Os dias de Paris certamente foram mais animados para o então zoólogo de Neuchâtel. Lá, pôde estudar lógica e filosofia da ciência com dois dos grandes nomes da época no assunto, Lalande e Brunschvicg. Indo além, estudou também psicopatologia com Dumas, Piéron e Delacroix, alguns dos nomes mais importantes da psicologia francesa da época. Aprendeu também a entrevistar pacientes psiquiátricos na Sainte-Anne, na época sob a coordenação de Dumas, afirmando em algumas de suas obras iniciais ter aí tomado valiosas lições. Enfim, Piaget estava inserido no que havia de melhor da psicologia francófona.

Contudo, o genebrino ainda tinha uma importante dúvida. Como cientista vindo das ciências naturais, sentia falta da experimentação. Ele já havia tentado trabalhar com psicologia experimental em Zurique (Ducret, 1990), mas não se adaptara bem aos métodos que aprendera. Foi quando teve uma ótima oportunidade, evento que ele mesmo classificou como de "extraordinária sorte" (Piaget, 1976/1980, p. 135). Recomendado a Simon, o célebre médico e psicólogo que auxiliara Binet no desenvolvimento do primeiro teste francês de inteligência, Piaget foi trabalhar no laboratório instalado na rua La Grange-aux-Belle. A tarefa designada era adaptar para crianças parisienses o teste de inteligência desenvolvido além do Canal, por Cyril Burt. Seu envolvimento com esse teste modificaria para sempre a psicologia da criança.

O presente trabalho utiliza por método a análise documental ou revisão narrativa. Nela, os autores não pretendem descrever exaustivamente toda a bibliografia existente sobre o assunto, mas coletar seletivamente as informações disponíveis na bibliografia conforme um objetivo específico. Um dos objetivos específicos desta coleta é fundamentalmente histórico, ou seja, reconstituir as primeiras cenas de Jean Piaget na psicologia experimental até o momento em que o genebrino iniciou seus trabalhos com o teste de inteligência de Cyril Burt, ressaltando os elementos que poderiam estar relacionados com a origem do método clínico. Isto foi alcançado a partir da comparação de diferentes fontes sobre a história da vida e da obra de Jean Piaget.

Deste ponto em diante, o levantamento muda seu estilo e passa a analisar elementos da produção acadêmica de Piaget relacionados com o teste de Burt, comparando-a com textos do próprio britânico utilizados por Piaget para produzir uma narrativa acerca da microgênese do método clínico, objetivo principal do trabalho. Ademais, utiliza-se também como base uma tese de doutorado que utilizou por material os primeiros protocolos de pesquisa de Jean Piaget coletados nos Archives Jean Piaget. Em suma, organizou-se uma narrativa histórica que combina elementos da história, dos textos de Piaget, dos textos de Burt e uma fonte secundária sobre os protocolos de pesquisa originais.

A bibliografia utilizada inclui os primeiros trabalhos de Piaget em psicologia experimental, duas biografias do genebrino, uma autobiografia, os trabalhos originais de Burt, um estudo com os protocolos originais de Piaget, publicações na área de história da psicologia, entre outras publicações. Todas as referências, que foram cruzadas e comparadas, resultaram na narrativa que descreve a influência da formação acadêmica de Piaget em Paris e da experiência do genebrino no laboratório da rua La-Grange-aux-Belle na criação de seu método clínico, fortemente impactado pelo contato de Piaget com o teste de inteligência de Burt.

 

Piaget em Zurique

Quando chegou em Zurique para estudar psicologia, em 1918, Piaget tinha 22 anos. Ele já havia publicado vários artigos na área da biologia e malacologia e também acabara de obter seu título de doutor em ciências. Contudo, aquele não era seu primeiro contato com os estudos em psicologia. Piaget já havia estudado o assunto com dois de seus mais influentes mestres em Neuchâtel, Raymond e Bovet (Harris, 1997).

Conforme sua autobiografia, o objetivo era trabalhar em um laboratório de psicologia. O objetivo foi cumprido, pois realizou pesquisas nos laboratórios de Gottlob Friedrich Lipps e Arthur Wreschner (Piaget, 1976/1980). Infelizmente, não foram encontradas muitas informações sobre esse momento e quase não existem fontes primárias sobre o assunto.

O primeiro contato com o trabalho experimental em psicologia trouxe para Piaget percepções ambíguas (Piaget, 1976/1980). Sentiu, a princípio, que aquele era seu caminho, mas ao mesmo tempo sentia-se perdido. Ele viu o potencial do trabalho em psicologia experimental exatamente para um dos problemas que mais atormentavam seu espírito, as questões de estrutura de parte/todo (Piaget, 1976/1980), presentes desde seu romance autobiográfico de adolescência, Recherche (Piaget, 1918). Imaginou que poderia mesclar a experimentação psicológica com os hábitos que adquirira em zoologia.

Lipps era filósofo e psicólogo, tendo sido nomeado diretor do Instituto de Psicologia da Universidade de Zurique em 1911. Seus trabalhos se concentravam em psicofísica e estatística. Wreschner, por sua vez, trabalhava com psicofísica e tinha formação kantiana, mas aderiu à psicanálise, tendo escrito um livro sobre a origem da fala das crianças (Wreschner, 1912).

Com base nestas informações, é possível que Piaget tenha aprendido nos laboratórios de psicologia de Zurique algumas das técnicas de coleta e organização estatística das falas da criança, presentes em algumas das obras mais iniciais, como A Linguagem e o Pensamento da Criança (Piaget, 1923/1989). É o próprio Piaget quem afirma, em sua autobiografia, que utilizou métodos da estatística de Lipps em pesquisas posteriores sobre biometria da variabilidade dos moluscos da terra em função da altitude (Piaget, 1976/1980), o que indica o contínuo envolvimento do genebrino com ao menos partes desses ensinamentos no que toca às técnicas de estatística.

Um outro encontro zuriquenho também é importante, o de Piaget com a psicanálise. Harris (1997) informa que vários dos mais proeminentes psicanalistas da cidade já haviam rompido com Freud na ocasião da estadia piagetiana, principalmente os dois nomes mais relevantes, Bleuler e Jung, que já não estavam mais vinculados à Associação.

Piaget estudou com os dois. De Jung, tomou principalmente lições em palestras e conferências, mas nenhuma fonte indica claramente que o genebrino fora efetivamente aluno do psicanalista suíço. Já com Bleuler, o contato foi mais próximo. Piaget foi efetivamente aluno dele, e assistiu algumas de suas aulas com pacientes psiquiátricos, conforme atestam alguns documentos disponíveis nos Archives Jean Piaget. Harris (1997) afirma que vem de Bleuler o conceito de autismo que Piaget viria a usar em alguns de seus trabalhos posteriores, ainda que a expressão já estivesse presente em Recherche (Piaget, 1918). Possivelmente, essa noção de autismo seria substituída por egocentrismo, mais afeita às ideias piagetianas.

O contato com a psicanálise não se limitou a aulas e palestras com ex-freudianos. Por meio de leituras da então recém-criada revista Imago, Piaget também travou contato direto com textos de Freud, que o impressionaram. Contudo, a figura psicanalítica mais influente para Piaget em Zurique foi o pastor e psicanalista Oskar Pfister, o único grande freudiano que restara na cidade.

Pfister não apenas se manteve leal às ideias de Freud, mas também ao próprio Freud. Com o austríaco, desenvolveu próxima amizade e intensa troca de cartas, o que incluiu confidências e descrições de cenas domésticas. O pastor também foi próximo de Piaget, pois foi com ele que o genebrino discutiu a neurose de sua mãe, e quem também o introduziu no movimento existente em Paris, criado por Binet e Simon (Ducret, 1990).

Apesar de alguns bons encontros, Piaget cansou-se rapidamente da vida intelectual de Zurique, que ele classificou como carregada de um risco autista que preferia evitar (Piaget, 1976/1980). A afirmação tem algo de enigmático. O que significaria este risco de autismo? Envolvido com psicanálise e experimentação simultaneamente, ele teria oportunidades de trabalho de acordo com seus interesses. Contudo, como alerta em sua autobiografia, os experimentos conduzidos com Lipps e Wreschner não tocavam os problemas mais importantes e a psicanálise não poderia oferecer grandes contribuições no estudo das formas de pensar (Ducret, 1990).

 

Piaget em Paris

Era outono quando Piaget foi para Paris, no ano de 1919, e a psicologia florescia na cidade. Em la Salpetrière, instituição pela qual já tinham passado Freud, Charcot e Binet, Wallon dirigia o laboratório de psicologia. No Collège de France também já existia uma cadeira ligada à psicologia experimental, que fora ocupada por Ribot (Nicolas, 2002), mas que estava nas mãos de Pierre Janet. Outras instituições também apareciam e a cidade era lar de muitos dos grandes nomes da psicologia da época.

É para a Sorbonne que Piaget se dirige para realizar seus estudos. No local existia desde 1889 um laboratório de psicologia experimental, criado pela influência de Ribot e Beaunis. Ali também já se editava uma revista especializada no assunto, a Année Psychologique (Nicolas, 2002).

Piaget teve aulas com vários dos nomes mais expoentes da psicologia de língua francesa, como Piéron, Dumas e Delacroix. O primeiro sempre esteve bastante envolvido com o movimento psicológico francês. Fora aluno de Ribot no Collège de France e de Pierre Janet na Sorbonne, sendo seu secretário na Salpetrière (Carroy, Ohayon & Plas, 2006). Colaborou também com Lévy-Bruhl e Edouard Toulouse no asilo de Villejuif, depois de um período de colaboração com Binet. Naquele momento, Piéron desenvolvia uma psicologia experimental combinada com observações clínicas em hospitais (Poirier, Clarac, Barbara & Brousselle, 2012). No mesmo ano que Piaget deixou Paris, em 1921, Piéron fundou o Instituto de Psicologia da Sorbonne.

Mas são os outros dois que parecem ter deixado marcas mais importantes em Piaget naquele momento. Ele relata em sua autobiografia (Piaget, 1976/1980) que aprendeu a fazer entrevistas psiquiátricas com Dumas enquanto trabalhou no hospital Sainte-Anne. Juntamente com Pierre Janet, o psiquiatra havia criado em 1904 o importante Journal de Psychologie Normale et Pathologique. Seus cursos na Sainte-Anne tiveram forte impacto em vários pensadores da época, como Aron, Sartre, Canguilhem, Lagache, Nizan, entre outros (Nicolas, 2002). Contudo, não é clara qual teria sido a influência de Dumas no pensamento ou no método piagetiano, pois este preferia as análises biogenéticas em detrimento das psicogenéticas, tão caras ao genebrino (Poirier et al, 2012). Mesmo assim, o contato com essa modalidade psiquiátrica próxima da biologia não deve ter sido ignorada por Piaget.

Foi também em Sainte-Anne que Piaget recebeu a seguinte orientação de Delacroix, seu outro professor de psicopatologia: "Variez vos éprouves" (Harris, 1997), conselho que ele executou no mesmo local, conforme atestam os protocolos oriundos do hospital (Ribeiro, 2018). Esse era um momento de efervescência na avaliação psicológica na França, devido ao grande sucesso do teste de Binet, já avaliado em outros países (Harris, 1997). É possível que Delacroix tivesse percebido o talento de observação e de análise de Piaget e encorajou seu aluno a não se ater aos procedimentos já padronizados, aventurando-se mais na pesquisa.

Harris (1997) afirma que Piaget também tomou lições de psicologia com Janet, informação que não consta em sua autobiografia (Piaget, 1976/1980), mas apenas em publicação posterior (Amann-Gainotti, 1992). Janet era uma figura bastante influente na França da época, pois já tinha dirigido o laboratório da Salpetrière, fora secretário do IV Congrès International de Psychologie, em 1900, e tinha sucedido Ribot no Collège de France.

O genebrino menciona seu relacionamento com Janet em um artigo sobre Binet (Amann-Gainotti, 1992), no qual declara que o francês fora seu verdadeiro mestre em psicologia quando, na adolescência, tomou contato com seus escritos. Entre 1919 e 1921, Janet deu várias palestras sobre a evolução psicológica da personalidade num posicionamento construtivista e genético, que possivelmente teve Piaget por expectador. Mas mesmo o estudo de Amann-Gainotti (1992) sobre o assunto não é conclusivo acerca dessa influência.

Não foi só psicologia que Piaget estudou em Paris. Ele também dedicou-se a estudos em lógica e filosofia da ciência. A lógica já era um antigo interesse de Piaget desde os tempos de Neuchâtel, por influência do filósofo e seu professor Raymond. Em Paris, os dois professores mais marcantes foram Lalande e Brunschvicg.

Fiando-se na autobiografia de Piaget (1976/1980), alguns autores (Kesselring, 1993; Ducret, 1990), afirmam que Brunschvicg teve enorme influência sobre Piaget por meio de seu método histórico-crítico. Esse método, como pode ser visto em uma obra publicada em 1912 (como citado em Ducret, 1990), propõe uma investigação das etapas do pensamento matemático no indivíduo.

Nesse livro, utilizando por método praticamente a pura especulação, Brunschvicg imagina a forma como a criança compreende as noções da matemática ao longo de seu desenvolvimento e convoca pesquisadores a se debruçarem sobre o problema. O matemático também defendia uma análise histórica da ciência para mostrar um paralelo entre a percepção coletiva dos fenômenos científicos e o modo como cada momento histórico entendeu o funcionamento da causalidade (como citado em Ducret, 1990).

Brunschvicg propôs também uma hipótese que parece ser um tipo de teoria da recapitulação da história da matemática na mente da criança. Nela, as etapas da história da aritmética e da geometria estariam expressas na produção espontânea da criança, mas que se propagariam na sociedade por meio da razão e da experiência combinadas. Contudo, para provar quaisquer de suas ideias, seria necessário realizar investigações no campo da psicologia.

É certo que Piaget ao menos comunicou ao seu mestre algumas de suas descobertas no campo da psicologia (Piaget, 1921a) e que tiveram alguma influência na obra de Brunschvicg (Ducret, 1990), mas seu método faz mais propostas do que apresenta quaisquer dados ou mesmo qualquer abordagem experimental com crianças. As ideias de Brunschvicg certamente têm uma notável semelhança com as teorias de Piaget; contudo são apenas hipóteses, e não certeza, de existir alguma influência na constituição de seu método. Não foi possível encontrar outras fontes para compreender o assunto que não as citações do autor nas publicações de Piaget.

É mais provável que Piaget, ao ler esses livros de lógica, tenha ganhado confiança para realizar seu trabalho experimental e tirar certas conclusões baseadas no evolucionismo - o que realmente ganharia força em momentos posteriores. Contudo, Brunschvicg não era o único autor lido por Piaget a defender ideias do gênero evolucionista e adaptacionista, como visto com o próprio Janet. De qualquer forma, a exata relação entre Brunschvicg e Piaget permanece por ser estudada.

Outro professor na área da lógica importante para a obra piagetiana foi Meyerson, que já havia sido estudado por Piaget em sua juventude. O polonês foi o fundador da "epistemologia realista", que identifica a epistemologia à história das ciências, o que coincide com a noção de epistemologia do próprio Piaget (Ducret, 1990). Ademais, para o filósofo, a mente humana se confronta com a realidade em busca de leis gerais que seriam expressas nas leis das ciências, principalmente no que toca à noção de causalidade.

Em Identidade e Realidade (como citado em Ducret, 1990), Meyerson afirma que a análise dos conceitos científicos implica a análise simultânea tanto de sua lógica interna quanto de sua psicologia implícita, de modo que, na pesquisa epistemológica, "(...) l'unique principe a priori qui dirigerait la pensée serait la recherche de l'identique." (Ducret, 1990, p. 78). Da mesma forma que fez com Brunschvicg, Piaget enviou à Meyerson resultados de algumas de suas pesquisas (Piaget, 1921a), o que mostra colaboração entre os dois, mas não influência cruzada.

Em Paris, Piaget vivenciou a psicologia, a lógica, a filosofia e a história das ciências, uma combinação que se encontra ao longo de sua obra. Lá também tomou contato com ideias que aprendeu ou fortaleceu, e que também aparecem em muitos momentos posteriores. Estes aportes teóricos foram importantes na modulação do pensamento piagetiano e possuem semelhanças e diferenças com suas ideias.

Mas como um pesquisador pendente ao empirismo, precisava de uma abordagem experimental que evitasse o erro de "autismo" que encontrara em Zurique e que o fizera deixar a cidade. Assim, além da aprendizagem e estudo de diferentes temas pertinentes, é em Paris que aparece um aspecto prático para a carreira de Piaget que foi determinante para sua obra.

Na Sorbonne, Piaget estudou o teste de inteligência de Binet-Simon, uma grande sensação no pensamento psicológico da época. Ele foi indicado por Bovet para estudar com Th. Simon a padronização para crianças francesas de um dos testes de inteligência criados pelo psicólogo britânico Cyril Burt. Assim, Piaget foi trabalhar no laboratório criado pelo próprio Alfred Binet, no colégio da rua La Grange-aux-Belle. A princípio não se entusiasmou com o convite. Ali via apenas uma oportunidade de carreira, mesmo porque carregava uma frustração com a psicologia experimental que conhecia. Contudo, seu interesse cresceu (Piaget, 1976/1980), o que provocou uma mudança em sua vida e obra.

 

Cyril Burt e seu teste de inteligência

Sir Cyril Lodowic Burt nasceu em Stratford-upon-Avon, Warwickshire, Inglaterra, em 1883. Estudando na Jesus College, de Oxford, descobriu a obra de Galton e, em 1902, passa a focar seus estudos em psicometria, seguindo a sugestão de McDougall. Trilhando o caminho da psicologia psicométrica, em 1907 passa a trabalhar numa pesquisa nacional, conduzida pelo governo britânico sobre as características físicas e mentais dos cidadãos do seu país. Nessa empreitada conhece Charles Spearman e Karl Pearson, que influenciaram Burt em seu uso da estatística para construção e interpretação de seus experimentos. Burt aceita o "g" de Spearman e passa a defender que as escolas deveriam ser estratificadas conforme o nível de inteligência dos alunos (Hergenhahn, 2000).

Em 1924 Burt ingressa na Universidade de Londres. Alguns anos depois, assume a cadeira de Psicologia na University College, onde trabalha até sua aposentadoria em 1950. Mesmo depois de aposentado, continuou conduzindo seus experimentos. Foi nos anos 1940 que passou a se interessar pela inteligência e hereditariedade, conduzindo muitos estudos sobre o assunto que obtiveram alcance mundial.

Assumiu a presidência da Sociedade Britânica de Psicologia em 1942, um dos pontos mais altos de sua carreira. Contudo, seu crédito e prestígio foram seriamente abalados por um escândalo, quando foi acusado de modificar dados para corroborar suas hipóteses (Hergenhahn, 2000). Seus estudos sobre a correlação de diversos fatores em gêmeos são considerados pioneiros no gênero (Hergenhahn, 2000).

Em 1920 Burt finalizou um livro com dezenas de testes psicológicos a serem usados em ambientes escolares, o que incluiu uma revisão completa do teste de Binet, incluindo comparações item a item sobre as diferentes versões e dúvidas tiradas com o próprio Simon sobre detalhes dos procedimentos (Burt, 1922). Nessa obra fica evidente a quantidade de trabalhos e de experimentos conduzidos pelo britânico, que era considerado uma das maiores autoridades em testagem psicológica do mundo. Fica claro também o lugar do teste de Binet-Simon: ele é a base de todo o trabalho, é de onde tirou o que denomina "habilidades intelectuais"; nesta obra Burt adiciona apenas alguns novos testes, focados em habilidades escolares, aos itens já existentes do teste de Binet.

Burt tinha um objetivo que era bastante semelhante ao dos colegas franceses - e que na verdade fora invenção deles: a criação dos testes de inteligência e habilidades a partir de escalas etárias, baseado fortemente em conteúdos escolares, com vistas a contribuir com a organização do ensino público. Enquanto Binet e Simon atuavam no sistema francês, Burt estava a cargo do sistema inglês.

Contudo, no teste que fora legado a Piaget (Burt, 1919), o britânico estava insatisfeito com a abordagem de seus colegas de Paris, e desejava desenvolver meios para estudar também os processos de raciocínio da criança, um objetivo de pesquisa revestido de notável semelhança com os objetivos de Piaget - talvez apenas objetivos posteriores ao contato com o teste.

Na busca de procedimentos científicos para o estudo do raciocínio infantil, Burt havia desenvolvido dois tipos de testes: os "testes de silogismo" e os testes por analogias, mas preferiu os do primeiro tipo no teste que deveria ser padronizado por Piaget (Burt, 1919).

Assim, o inglês construiu 250 questões em forma de silogismos e, com base nos resultados obtidos com as respostas das crianças, ordenou os silogismos em graus de dificuldade. Para promover a divisão por idade, Burt partiu do entendimento de que determinado silogismo seria adequado para avaliação de uma certa faixa etária apenas se ao menos cerca de 50% das crianças conseguissem responder adequadamente à questão. Para compor as listas de silogismos para cada idade, estas precisavam conter apenas silogismos que as crianças mais "brilhantes" conseguissem responder integralmente. Ao mesmo tempo que todas as crianças daquela faixa etária deveriam conseguir responder ao menos uma daquelas questões propostas para aquela idade, mesmo as crianças com mais dificuldades (Burt, 1919).

Contudo, Burt lamenta que seu teste possuía um erro, que possivelmente foi muito importante para Piaget. O problema estaria na repetição insistente de certos assuntos nas listas de silogismos dentro das faixas etárias. Em outras palavras, as crianças de certa idade acertavam silogismos que tratavam de determinados temas com muito mais frequência do que silogismos que abordavam outros assuntos, mesmo se os silogismos fossem construídos de forma semelhante.

Em alguns dos temas, nenhuma criança naquela faixa etária era capaz de responder qualquer silogismo, mesmo as mais brilhantes (Burt, 1919). As perguntas sobre geografia, detecção de crime, cálculos simples, formas e eliminação de alternativas pareciam dar resultados muito mais estáveis, ou seja, eram mais comuns a todas ou, pelo menos, a várias das faixas etárias com as quais Burt trabalhava.

Contudo, temas como dedução silogística, raciocínio causal ou raciocínio do particular para o geral, entre outros, não produziam resultados satisfatórios (Burt, 1919). Burt imaginava que a percepção de princípios gerais de física ou química, ou ainda o entendimento, por parte das crianças, de séries de números, seriam métodos muito bons para a avaliação da inteligência, mas os testes mostravam que isso simplesmente não funcionava como o esperado em seus silogismos. O problema persistia nos re-testes operados no laboratório de Burt, com reformulações e adaptações. O motivo desse problema permanecia, para o pesquisador, um mistério.

Onde estaria a falha do teste de Burt? Por que ele encontrava as dificuldades que lamentava em seu artigo (Burt, 1919)? Uma possibilidade está na análise da ontologia das habilidades propostas para avaliação. Suas variáveis parecem mais disciplinas escolares, como química ou matemática, ou temas de discussão e debate público, como criminalidade, do que habilidades cognitivas. O colega de Genebra, contudo, teria uma ideia bastante diferente.

 

Piaget trabalha com o teste

Se Piaget fora incumbido de padronizar o teste de Burt para crianças parisienses, certamente teve que traduzir o teste ou ao menos viu-se na obrigação de comparar o texto do teste original com uma versão em francês. Para fins comparativos, a seguir um dos silogismos do teste de Burt:

Tom said to his sisters: "Some of my flowers are buttercups." His sisters knew that all buttercups are yellow. So Mary said: "All your flowers must be yellow." Grace said: "Some of your flowers must be yellow." And Rose said: "None of your flowers are yellow." Which girl was right? (Burt, 1919, p. 73).

Pode-se observar no teste em inglês que existem três categorias sobre "parte" presentes no silogismo: "some" (algumas), "all" (todas), "none" (nenhuma). Esta era uma grande oportunidade para Piaget. Preocupado com o problema da estrutura parte/todo, o silogismo explorava exatamente essa questão, não talvez como imaginava, mas mesmo assim ali se apresentava uma possibilidade de estudo. Piaget, em seu artigo, traduziu o silogismo da seguinte forma:

Jean dit à ses sœurs: "Une partie de mes fleurs sont jaunes." Puis il leur demande la couleur qu'a son bouquet. Marie dit: "Toutes tes fleurs sont jaunes." Simone dit: "Quelques-unes de tes fleurs sont jaunes." et Rose dit: "Aucune de tes fleurs n'est jaune." Laquelle a raison? (Piaget, 1921a, p.450)

O primeiro ponto que chama atenção é a falta de uma das instruções de Burt. No original, os ranúnculos são apontados como todos sendo amarelos de forma textual, utilizando a palavra "all" (todas). A informação é dada textualmente à criança. Porém, Piaget substitui o nome das flores e a informação de sua cor por "fleurs jaunes" (flores amarelas). Ou seja, ele não mais afirma à criança que todos os ranúnculos são amarelos, apenas introduz a questão informando que uma parte das flores são amarelas.

Outro ponto notável é que no original, Tom (ou Jean) não faz qualquer pergunta às suas irmãs, elas apenas fazem declarações espontaneamente. Já na versão de Piaget, Jean (ou Tom) questiona a cor que pode ser encontrada em seu buquê às suas irmãs, que só então dão suas respostas.

Disposto desta forma, o silogismo valoriza ainda mais o problema das estruturas parte/todo, um dos objetos de inquietação e investigação de Piaget. No silogismo de Burt, duas informações diferentes precisam ser combinadas, que Tom tem alguns ranúnculos no buquê, e que todos os ranúnculos são amarelos. A criança precisaria integrar as duas informações no teste londrino. Na versão de Piaget, a informação é dada de maneira mais direta, e o foco da criança recai exclusivamente sobre os aspectos gramaticais da noção de parte.

Além da adaptação dos nomes, Piaget faz a seguinte correspondência para as categorias de análise: "some" se torna "une partie" e "quelques-unes"; "all" se torna "toutes"; "none" se torna "aucune". Ou seja, "algumas", ou "some", se converte em uma dupla de possibilidades, "une partie" e "quelques-unes". Ambas as opções são utilizadas na tradução de Piaget. Jean (ou Tom) se utiliza de "une partie", e Simone de "quelques-unes".

A resposta da irmã - e consequentemente a análise da criança - precisa se basear na possibilidade de correspondência entre as duas expressões francesas, "une partie" e "quelques-unes", dificuldade inexistente no idioma original do teste. Piaget explora essas possibilidades de tradução ao longo do artigo, nas variantes do mesmo item do teste em francês.

A hipótese é de que Piaget tenha conduzido perguntas utilizando as várias traduções possíveis da palavra "some", e observado que havia variações na resposta, conforme a tradução utilizada. Certamente, isto deixou claro para Piaget que a questão não estava nem em uma tradução e adaptação bem feitas, nem na fórmula do silogismo, mas no modo como a criança compreende as categorias de parte; isto estaria relacionado a um antigo problema em suas análises desde Recherche: a questão parte-todo.

Piaget (1921a) afirma que a criança seria completamente incapaz de analisar as operações lógicas de "uma parte" (une partie de) e "algumas" (quelques-unes de), pois confundem a expressão "algumas" (quelques-unes) com todas as flores no geral, e não dentro do contexto da proposta, que são as flores em um buquê.

Assim, para a criança, a resposta de Marie e Simone lhe parecem iguais, e mesmo quando a criança menciona as palavras de Simone (quelques-unes), elas têm valor idêntico ao de Marie (toutes). Para Piaget (1921a), falta na criança a classificação no geral, pois a mesma sempre observa o problema nos quesitos particulares. Este ponto estaria completamente fora do escopo de análise proposta por Burt, que anotaria algumas respostas como certas e outras como erradas, e só.

A mudança na forma de fazer a pergunta também é relevante, pois essa reorganização ressaltaria os aspectos que Piaget pretendia estudar. Isto fica mais visível em outro artigo (Piaget, 1921b), também sobre o teste de Burt. Piaget analisa as respostas da seguinte pergunta do teste de Burt: If I have more than a shilling I shall either go by taxi or by train: if it rains I shall either go by train or by bus. It is raining and I have half-acrown. How do you think I shall go? (Burt, 1919, p.72).

Na análise de Piaget, ele argumenta que uma solução para o problema não exige apenas a capacidade de compreender a sobreposição de possibilidades, ou seja, as três opções (taxi, trem ou ônibus). O genebrino aponta que a criança precisa fazer a distinção entre os dois planos: um de possibilidade e outro de realidade (Piaget, 1922b; Harris, 1997), numa manipulação também do conceito de simbólico.

Em outras palavras, a resposta precisa considerar, de forma entrecruzada, três possibilidades com dois condicionantes. Por um lado, o conjunto de três possibilidades - táxi, trem ou ônibus - e, por outro lado, a escolha atual e necessária, se ambas as declarações condicionais forem satisfeitas simultaneamente. Observa-se que Piaget não faz críticas à abordagem de Burt por seus conceitos, mas pelo modo como o colega criou a pergunta. Isto sugere uma questão de ontologia das habilidades.

Além da questão da tradução, existe outro ponto importante. Em seu artigo, Burt (1919) adiciona um procedimento que considera extremamente importante. O experimentador, ao apresentar um silogismo para a criança, não deve contentar-se com sua resposta, mas investigar os motivos dessa resposta. Se tais motivos não estiverem de acordo com o próprio silogismo, a resposta deveria ser invalidada. Este aspecto é tão importante que o psicólogo inglês chama a investigação das respostas das crianças de "a parte mais valiosa do teste" (Burt, 1919, p.71). Contudo, não apresentou nenhuma forma de avaliação ou de investigação para tais respostas.

Se Piaget utilizou com rigor as instruções de Burt - e tudo indica que sim, pois caso contrário falharia no objetivo de adaptar os testes de inteligência para as crianças de Paris certamente o genebrino frequentemente se deparou com amostras de falas das crianças revelando o modo do seu raciocínio. É exatamente esta situação de comunicação do próprio raciocínio que Piaget usa como justificativa para a inserção de inquéritos em seu método, como deixa explícito na seguinte passagem: "Cada criança tem seu mundo de hipóteses e soluções que jamais comunicou por egocentrismo ou por falta de meios de expressão, o que dá no mesmo se a linguagem é modelada pelos hábitos de pensamento [...]" (Piaget, 1923/1989, p.91).

Na atividade de manipular os elementos do teste de Burt, Piaget pôde colocar seu poder de observação para trabalhar dezenas de vezes, pois teve a oportunidade de observar o raciocínio explicado pela criança a cada aplicação do teste. Não somente em conformidade com as instruções de Burt, mas também com as variações das traduções que deve ter produzido para poder chegar ao teste no modelo parisiense, e também nas variações que ele mesmo introduziu, conforme atestam as publicações sobre o assunto (Piaget, 1922a, 1922b) no aprofundamento da investigação das respostas.

Em sua autobiografia, Piaget (1976/1980) relata que sua experiência com o teste de Burt se devia ao seu interesse pelos porquês dos erros das crianças, passando a se valer do método psiquiátrico para explorar tais erros. Talvez o relato de Piaget não seja totalmente acurado, tendo em vista que foi escrito décadas depois do ocorrido, e Piaget estudava psiquiatria ao mesmo tempo que conduzia os testes na rua La Grange-aux-Belle. Esta outra passagem parece elucidar melhor o que Piaget imaginava naqueles dias:

Isso marcou o fim do meu período "teórico" e o começo de uma era indutiva e experimental no terreno psicológico no qual sempre quisera entrar, mas para o qual até então eu não tinha encontrado os problemas adequados. Assim, minha observação de que a lógica não é inata, mas é desenvolvida pouco a pouco, parecia ser consistente com minhas ideias sobre a formação do equilíbrio em cuja direção tende a evolução das estruturas mentais. Além do mais, a possibilidade de estudar diretamente o problema da lógica vinha ao encontro a todos os meus antigos interesses filosóficos. Finalmente, meu objetivo de descobrir uma espécie de embriologia da inteligência se adaptava ao meu treino biológico. (Piaget, 1976/1980, p.136)

A chave para entender essa observação está no extenso treino biológico de Piaget. Logo antes de ir de Zurique para Paris, Piaget passou seis meses em Valais estudando os moluscos e revisando seus dados, inclusive com elementos estatísticos que aprendera no cantão suíço.

Piaget pôde observar que a lógica não era inata por causa da nova forma de abordar os problemas. Esta nova forma só poderia ter sido dada pela abordagem proposta pelo teste de Burt. É a partir da observação desses dados que Piaget passa a ter uma nova postura e sente que está finalmente no caminho experimental correto. A partir da análise deste teste e das respostas das crianças nessa situação é que Piaget localiza a abordagem experimental que julga adequada e dentro tanto de seus interesses de pesquisa quanto de seu treinamento experimental.

Mas a explicação da evolução da lógica na criança nesse momento (Piaget, 1921a) não parte de uma explicação eminentemente lógica, mas psicológica, e provavelmente inspirada nas ideias de Binet. Para Piaget, a aquisição se dá em três estágios. No primeiro, que Piaget denomina "implicite", a criança simplesmente ignora a expressão "uma parte" da fala de Jean e aplica as relações separadamente. No segundo estágio, denominado "explicite" ou "réfléchi", a criança explicitamente nota a expressão "uma parte", mas para ela a mesma parece não ter qualquer valor. No terceiro estágio, menos frequente e denominado "distraits", a criança percebe a existência de uma diferença, mas mantém a explicação, possivelmente por hábito. Disso, conclui Piaget (1921a):

L'incompréhension spéciale aux distraits est instructive. Elle consiste essentiellement à comprendre que les boutons d'or, ou les fleurs jaunes, forment une partie, mais sans chercher par rapport à quel tout. Elle consiste donc à penser la partie, sans penser le tout, ce qui donne l'apparence d'une confusion du tout et de la partie. [...] Cette explication peut être partiellement généralisée aux autres stades. (Piaget, 1921a, p.462)

Piaget redesenha o teste de Burt para ressaltar as possibilidades de observar as relações lógicas, que é o seu objeto de estudo e sua hipótese fundamental, e conduz tanto as perguntas como a análise das respostas a partir das relações entre o todo e as partes. Por tomar a lógica como guia epistemológico, o experimento é desenhado para mostrar como funciona o raciocínio lógico infantil, e todas as respostas possíveis das crianças precisam ser, necessariamente, enquadradas nesse tipo de hipótese, que está desenhada desde os primórdios de seu pensamento psicológico.

Mas, nesse momento, Piaget não busca uma teoria própria, mas funda-se no paralelismo lógico-psicológico, no sentido de ele ser lógico por se embasar nas formas lógicas de parte-todo, e psicológico no sentido da forma da explicação das fases. Não é o modelo de Brunschvicg e Lalande, mas mais próximo da explicação de Janet e da biologia na técnica. Ele assim explica esse momento:

Analisei os dados, psicologicamente e também logicamente, aplicando o princípio do paralelismo lógico-psicológico ao meu método de análise: a Psicologia explica os fatos em termos de causalidade, enquanto que a Lógica, quando interessada no verdadeiro raciocinar, descreve as formas correspondentes em termos de um equilíbrio ideal. (Piaget, 1922a, p.137)

A explicação psicológica habita a personalidade da criança, "implicite", "réfléchi", "distraits", na forma como adquire a habilidade lógica, um modo de operação do normal em que o erro é explicado pelo aspecto subjetivo enquanto se coloca na busca do objetivo, proporcionado pela lógica adulta, paradigma do equilíbrio ideal. Essa forma de explicação ainda está próxima das formas de explicação da primeira fase de Binet (Silva, 2011), que mesclam interpretações psicológicas da personalidade com a análise da evolução da inteligência.

Contudo, Ribeiro (2018) mostra que essa forma de interpretação, apesar de constar nas primeiras publicações, já estavam obsoletas no próprio programa de pesquisa de Piaget na época, pois os protocolos de pesquisa do período mostram um Piaget muito mais próximo das teorias publicadas em meados dos anos 1920 do que o que consta no paralelismo lógico-psicológico.

 

Considerações finais

O presente estudo buscou trilhar os caminhos de Piaget até seu encontro com o teste de inteligência de Cyril Burt. A narrativa foi constituída de modo a ressaltar eventos importantes na culminância desse encontro. Por sua vez, a experiência de Piaget com o teste foi determinante para que Piaget encontrasse a sua própria modalidade de experimentação psicológica, fundamentando aquele que viria a ser o seu Método Clínico. Esta pesquisa coloca-se de modo diferenciado no debate atual sobre as origens do método piagetiano, ressaltando que foi o processo de assimilação e acomodação do teste de Burt que deu início à diferenciação gradual das técnicas já então existentes para uma nova modalidade de investigação psicológica.

O estudo das origens de métodos e testes psicológicos, que constitui uma parte relevante dos estudos em História da Psicologia, tem restaurado a historicidade das técnicas psicológicas, contribuindo para reduzir a percepção de naturalidade dos dados assim obtidos e inserindo as técnicas e dados psicológicos em suas condições de produção que envolvem contextos sociais mais amplos e complexos. Entendemos que a narrativa produzida pôde fazer emergir alguns dos elementos que compõem as redes envolvidas na produção do método clínico, visibilizando o processo de pesquisa e de produção de fatos na Psicologia Genética e, por sua vez, na Epistemologia Genética, de Jean Piaget. Sendo assim, os efeitos dessa narrativa produzida sobre o Método Clínico envolvem provocar outros caminhos possíveis no desenvolvimento de pesquisas em psicologia, por exemplo, sobre o desenvolvimento cognitivo.

A estadia em Zurique não trouxe contribuições maiores para o pensamento piagetiano. Salvo alguma influência da psicanálise em seu início de carreira, as técnicas aprendidas na cidade e a psicologia desenvolvida no local naquele momento foram rapidamente substituídas, por Piaget, pelos ensinamentos recebidos em Paris, que se alinharam mais claramente às ideias desenvolvidas em sua cidade natal, Neuchâtel.

A estadia em Paris foi muito mais significativa, por três circunstâncias. A primeira é a aprendizagem da própria psicologia parisiense, notadamente Dumas, Janet, Delacroix e Piéron, em proporções diferentes, o que não exclui outras influências, como a de Blondel. A segunda é o contato com alguns dos mestres da filosofia e histórica das ciências, com destaque para Lalande e Brunschvicg, importantes interlocutores para a consolidação de seu ingresso na psicologia experimental. A terceira e mais decisiva foi a oportunidade de trabalhar no antigo laboratório de Binet, com uma abordagem de pesquisa que acabou por se mostrar mais próxima de seus interesses e mais própria para as técnicas que já acreditava.

Os dados da literatura de Piaget sobre o teste de Burt, a literatura sobre o período e uma análise do próprio teste combinados, sugerem que o teste de Burt foi determinante para a criação do método clínico. Disto elaboram-se três hipóteses principais.

A primeira é a de que o processo de tradução do teste, especialmente no que se refere às categorias lógicas de parte/todo - uma preocupação filosófica importante para Piaget naquele momento - na linguagem, comparando os itens na mudança dos idiomas, levou Piaget a analisar as formas como as crianças percebiam e lidavam com esses analíticos lógicos, aliados à análise das respostas infantis. Piaget viu ali uma oportunidade de realizar testes que estivessem de acordo com seus interesses filosóficos e de pesquisa, que compartilhou com seus mestres e colegas de Paris e Genebra.

A segunda hipótese é de que a observação sistemática das respostas das crianças sobre os temas propostos por Burt, que Piaget teve a oportunidade de realizar deu-lhe a oportunidade de analisar sob outros ângulos os problemas temáticos encontrados por Burt no processo de criação do teste. Piaget coletou dezenas de amostras do raciocínio infantil sobre determinados temas fixos, o que permitiu que a atitude observadora adquirida de seu treinamento em biologia pudesse ser utilizada na psicologia da criança.

A terceira é a possibilidade de fazer alterações no teste de forma análoga ao que Piaget havia feito na tradução dos operadores lógicos de linguagem em alguns dos testes. Piaget provavelmente observou a possibilidade de alterar e até de propor novas formas de avaliação do raciocínio infantil, observando o potencial da abordagem que estava adotando naquele espaço. Contudo, o Método Clínico ainda não é isso que Piaget fazia nesse período, ainda que certos aspectos, como um questionário mais livre, fosse uma característica comum de Piaget nos dois momentos.

Todas estas hipóteses e sugestões de pesquisa estão sendo estudadas a partir da análise dos protocolos de pesquisa originais de Piaget dos anos 1920, que serão publicadas futuramente.

 

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Recebido em: 15 de fevereiro de 2018
Aprovado em: 12 de outubro de 2020

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