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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.51 São Paulo jul./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.23925/2175-3520.2020i51p51-62 

ARTIGOS

 

Pela voz do outro: a construção social da deficiência na escola

 

From the voice of the other: the social construction of disability in school

 

Por la voz del otro: la construcción social de la discapacidad en la escuela

 

 

Andrea Soares WuoI; Daniela LealII

IUniversidade Regional de Blumenau - FURB - Santa Catarina - SC - Brasil; wuoandrea@gmail.com
IICentro Universitário Moura Lacerda - CUML - Ribeirão Preto - SP - Brasil; dannylegal@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo teve por objetivo analisar o processo de construção social da diferença na escola, em especial da deficiência - diferença estigmatizada, inferiorizada e historicamente marginalizada - e os modos como a pessoa com deficiência vivencia a realidade escolar. A pesquisa, de abordagem qualitativa, foi realizada em uma escola de ensino médio do município de Blumenau, utilizando-se, como técnica de produção dos dados, a observação do cotidiano escolar, a análise documental e entrevistas com uma gestora, uma professora e uma estudante cega. Com base no modelo social da deficiência e considerando a importância da participação das pessoas com deficiência na construção do conhecimento sobre sua realidade, os resultados buscaram evidenciar a narrativa e as perspectivas da estudante sobre sua trajetória escolar. Com isso, foi possível observar que os processos de inclusão/exclusão escolar dependem dos modos como os diferentes atores concebem e lidam com a deficiência que, por sua vez, constrói-se a partir das interações entre a estudante e os outros.

Palavras-chave:Deficiência; Ensino médio; Escola; Inclusão; Educação especial.


ABSTRACT

The present article aimed to analyze the process of social construction of difference in school, especially that of disability - stigmatized difference, inferiorized and historically marginalized - and the ways in which people with disabilities live the school reality. The research, with a qualitative approach, was carried out in a high school in the city of Blumenau, using the daily school observations as data production technique, as well as documentary analysis and interviews with a school coordinator, a teacher and a blind student. Based on the social model of disability and the importance of the participation of people with disability in the construction of knowledge about their own reality, the results sought to highlight the narrative and perspectives of the student about her school trajectory. It was possible to observe that the processes of school inclusion/exclusion depend on the ways in which different actors conceive and deal with disability, which, in turn, is built up from the interactions between the student and the others.

Keywords: Disability; High school; School; Inclusive education; Special education.


RESUMEN

El presente artículo tuvo por objetivo analizar el proceso de construcción social de la diferencia en la escuela, en especial de la deficiencia - diferencia estigmatizada, inferiorizada e históricamente marginada - y los modos como la persona con discapacidad vive la realidad escolar. La investigación, de abordaje cualitativo, fue realizada en una escuela de enseñanza media del municipio de Blumenau, utilizando, como técnica de producción de los datos, la observación del cotidiano escolar, el análisis documental y entrevistas con una gestora, una profesora y una estudiante ciega. Con base en el modelo social de la discapacidad y en la importancia de la participación de las personas con discapacidad en la construcción del conocimiento sobre su realidad, los resultados buscaron evidenciar la narrativa y las perspectivas de la estudiante sobre su trayectoria escolar. Fue posible observar que los procesos de inclusión/ exclusión escolar dependen de los modos en que los diferentes actores conciben y lidan con la discapacidad que, a su vez, se construye a partir de las interacciones entre la estudiante y los demás.

Palabras clave: Discapacidad; Educación secundaria; Educación especial; Escuela; Inclusión.


 

 

Introdução

A inclusão de estudantes com deficiência é um direito humano amparado por instrumentos jurídicos internacionais e nacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças (ONU, 1989), a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) e a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006).

No Brasil, embora a educação de pessoas com deficiência em escolas regulares já estivesse prevista desde a Constituição de 1988, foi somente na primeira década dos anos 2000 que a educação inclusiva obteve destaque de fato nas políticas educacionais, sobretudo a partir de 2008 com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), que permitiu à educação especial assumir seu caráter transversal para todos os níveis e modalidades de ensino.

Posteriormente, em 2015, com a Lei Brasileira de Inclusão, o conceito de deficiência deslocou-se de um modelo médico, pautado nos limites individuais das pessoas com deficiência, para um modelo social que compreende que são as barreiras socialmente impostas (arquitetônicas, urbanísticas, comunicacionais, atitudinais) que limitam seu pleno desenvolvimento, como se pode observar no trecho que define a pessoa com deficiência como "aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas" (Brasil, 2015, p.14). Ao adotar o modelo social de deficiência, em contraposição ao modelo médico anterior, a deficiência deixa de ser entendida como mero atributo pessoal, ontológico e estático e torna-se uma construção social, portanto, relacional e dinâmica (Oliver & Barnes, 2013; Tomlinson, 2015)

Pode-se afirmar, assim, que mudanças tanto nas políticas como nas práticas educacionais foram e ainda se fazem necessárias para a realização de ações que promovam o acesso, a permanência, a participação e a aprendizagem dos estudantes considerados público-alvo da educação especial (PAEE) e, com isso, a redução de barreiras (Fraga et al., 2017; Bueno, 2016). Do mesmo modo, cresce o número de pesquisas na área da educação com intuito de avaliar, analisar e dar respaldo ao novo contexto que se constrói, destacando-se, principalmente, pela quantidade e diversidade de abordagens e temas, enfatizando a necessidade de olhar a deficiência não como mero atributo biológico ou psíquico do sujeito, mas como o resultado de um processo social que se constrói por meio das relações entre indivíduo, família, escola e sociedade (Fraga et al., 2017, 2017)

A educação de estudantes com deficiência que era, portanto, restrita até a década de 1990 às escolas ou classes especiais, provocou certo estranhamento e resistência por parte da comunidade escolar, ao ter que incluir em suas salas de aulas os estudantes PAEE. Dentre as queixas mais comuns dos professores quanto ao processo de inclusão escolar estão a heterogeneidade das turmas, a falta de conhecimento especializado e preparo ou formação para lidar com a diversidade da sala de aula, assim como o estigma, o preconceito e o desconhecimento que atuam como barreiras para a inclusão do PAEE na escola. (Ferreira & Glat, 2003; Silveira; Enumo & Rosa, 2012; Vilaronga & Caiado, 2013; Vasques & Baptista, 2014; Pletsch, Lunardi & Mendes, 2015; Torrens, 2018; Fraga, 2017). Consequentemente, o outro, o diferente, passa a ser encarado como um problema a ser "aceito" por uma mera obrigação legal. Ao referir-se a este "outro" (o estudante com deficiência), Skliar (2003) questiona:

[...] existe, por acaso, uma temporalidade comum entre o eu e o você, entre o nós e os outros, que nos autorize a falar de um tempo zero, inicial, originário, fundador, de partida? Existe, então, uma especialidade comum entre o eu e o você, entre o nós e os outros, que nos permita territorializar, mais uma vez, o dentro e o fora, a interioridade e a exterioridade, a inclusão e a exclusão? Há disponível somente um único olhar para percorrer o mundo, que possa ir além das quantidades que nos manipulam obscenamente, do paraíso virtual que nos eleva a nenhuma parte, do politicamente correto que nos faz dizer coisas sem sentido, das exclusões dos outros, das promessas integradoras em direção aos outros? Existe, portanto, uma mudança educativa que nos possibilite afirmar que se trata, desta vez, de outra coisa ou que não se trata somente de uma metáfora desgastada de nossa própria e egocêntrica mesmidade? E onde fica o outro irredutível, misterioso, inominável, nem incluído nem excluído, que não é regido pela nossa autorização, nem pelo nosso respeito, nem por nossa tolerância, nem pelo nosso reconhecimento para ser aquilo que já é e/ou aquilo que está sendo e/ou aquilo que poderá ser? E onde fica, além de tudo, a relação deles com os outros - não só conosco, não só entre eles? E por último: qual é a herança, qual é o testamento que está em nossos corpos e em nossa língua que nos obriga a entender a pergunta educativa, a pergunta sobre a educação, numa única direção possível, através de uma flecha que sempre (e que só) indica a direção de nós mesmos? (Skliar, 2003, p. 22-23).

O próprio Skliar responde: "Antes de nos perguntarmos quem é, que são os outros, poderíamos já desde o início discutir qual é o significado da pergunta pelo outro. É essa, por acaso, a minha pergunta sobre o outro ou é uma pergunta que é do outro, que vem do outro?" (p. 25). Afinal, em todo outro há o próximo "- esse que não sou eu, esse que é diferente de mim, mas que posso compreender, ver e assimilar - e também o outro radical (in)assimilável, incompreensível e inclusive impensável" (Baudrillard & Guillaume, 2000, como citado em Skliar, 2003, p. 26). Entretanto, não se pode esquecer que esta mesma dualidade (outro próximo - outro radical) também existe na interioridade, ou seja, esses outros também podem ser eu ou nós.

Desta feita, cabe aqui relembrar que, a diferença que se estabelece entre mim e o outro fundamenta-se em normas socialmente construídas, o que torna a estigmatização um processo presente em inúmeras situações sociais, do público ao privado, na casa e na rua, como afirma Da Matta (1997). Por destoar do padrão estipulado de normalidade, uma pessoa com deficiência, por exemplo, uma vez diagnosticada como tal, já se torna desacreditada, incapaz, podendo, num primeiro encontro, produzir reações de medo e repulsa por grupos considerados estabelecidos (Elias, 2000; Goffman, 1980). Entretanto, diante das atuais políticas de inclusão de pessoas com deficiência, sua discriminação e segregação não podem ser explícitas, mas se manifestam, na escola, por atitudes como o distanciamento e o isolamento, a descrença em sua capacidade, os discursos da culpabilização do outro - da criança, da família ou do professor - e da falta de conhecimento especializado.

Por essa razão, pode-se afirmar que, "o outro da educação foi sempre um outro que devia ser anulado, apagado. Mas as atuais reformas pedagógicas parecem já não suportar o abandono, a distância, o descontrole" (Skliar, 2003, p. 27). Consequentemente, faz-se essencial repensar as "políticas da diferença", de cunho compensatório ou inclusivo, que em sua maioria não incluem. Pelo contrário, ao deixarem implícito a diferença pensada como atributo, como "coisa" que separa e distingue, estabelecem fronteiras claras entre os indivíduos, consequentemente a ontologização e reificação da diferença fundamentará a reprodução de uma inclusão que se diz perversa, pois, ao mesmo tempo que inclui, exclui, atribuindo ao outro, continuamente, sua condição de ser inferior, marginal (Silva, 2000; Derrida & Roudinesco, 2004).

Isto posto, o presente estudo versa exatamente sobre a construção social da diferença na escola, em especial da deficiência - diferença estigmatizada, inferiorizada e historicamente marginalizada - e os modos como a pessoa com deficiência (PCD) vivencia a realidade escolar, por meio dos seguintes questionamentos: Quais são as dificuldades experimentadas, vivenciadas e superadas? Quais são as possibilidades criadas? Como se constroem as relações com professores, colegas e amigos no Ensino Médio?

 

Método

Tendo como foco do estudo a voz da pessoa com deficiência para a compreensão de uma determinada realidade escolar, esta pesquisa fundamenta-se no modelo social da deficiência, entendo-a como um processo social que se constrói a partir das relações entre indivíduo, cultura e sociedade. Ao privilegiar a voz da estudante com deficiência em nossa análise, buscamos reforçar seu caráter de autoria e participação ativa no processo inclusão, reafirmando o lema presente nos movimentos para os direitos das pessoas com deficiência: "nada sobre nós, sem nós".

Desta feita, se a plena participação desse público é reivindicada nas políticas, espera-se o mesmo quanto à produção do conhecimento. Embora as pesquisas relacionadas à inclusão de pessoas com deficiência sejam muitas, poucas são aquelas que buscam compreender tal realidade a partir da perspectiva daqueles estudantes que a vivenciam e experimentam cotidianamente.

Nesse sentido, e tendo em vista que o estudo busca compreender os modos como se constroem as relações de diferença, especificamente, em uma escola do ensino médio, a pesquisa assumiu uma abordagem qualitativa. Afinal, situar-se nesse âmbito significa adotar uma postura epistemológica que dispensa a ideia, pautada na noção positivista de ciência, de que o dado observado é o espelho da realidade, estabelecendo-se uma relação de domínio entre sujeito (pesquisador) e objeto (pesquisado), em que este impõe sua verdade àquele. Neste ínterim, a pesquisa alinha-se à proposta metodológica de tradição interacionista conforme os pressupostos de Becker (1993), em que o pesquisador se esforça para se colocar no lugar do outro, distanciando-se de sua própria cultura e familiarizando-se com a perspectiva dos sujeitos investigados.

Para tanto, como instrumento de coleta de dados foram utilizadas as observações do cotidiano escolar, o registro em diário de campo, as entrevistas com professores, gestores e uma estudante com deficiência visual e a análise de documentos, como as produções da estudante e o projeto político pedagógico da escola. Cabe ressaltar que, todos os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e seus verdadeiros nomes foram preservados.

Locus da Pesquisa

A pesquisa foi realizada em uma escola de ensino médio do município de Blumenau cuja estrutura física, política e administrativa se integra a uma instituição de educação superior da região. Embora de caráter público municipal, a manutenção financeira da instituição é feita mediante o pagamento de mensalidades pelos estudantes.

A escola recebe estudantes de diferentes municípios, escolas públicas e privadas, da região do vale do Itajaí, e afirma em seu PPP (2018) que:

a diversidade cultural é característica da escola. Estudantes de todas as classes sociais, credos, etnias e raças, assim como os professores e professoras trazem e convivem com valores e concepções diferentes o que permite o exercício da tolerância e da cidadania. (PPP, p. 8).

Conforme a orientadora, a escola recebe anualmente diferentes estudantes "público-alvo da educação especial" (PAEE), dos quais destaca: estudantes com transtorno do espectro autista, estudantes com deficiência intelectual, deficiência física com mobilidade reduzida e deficiência visual/cegueira. A escola nunca recebeu estudantes surdos.

Para além do PAEE previsto na Política Nacional de Educação Especial (Brasil, 2008), a escola, conforme seu PPP, abrange em sua política de educação inclusiva qualquer "estudante que apresentar algum déficit e/ou habilidade significativa" (PPP, 2018, p. 14). A partir de um trabalho de observação por professores e equipe pedagógica, são identificadas as habilidades e/ou dificuldades do estudante para a elaboração do Plano Educacional Individual (PEI) que inclui:

[...] adaptações das atividades em sala de aula, mediações pontuais com o professor do Componente Curricular, além das avaliações de calendário, recuperação trimestral e exames finais, a possibilidade de serem realizadas em sala diferenciada. O Professor Multidisciplinar participará das aulas e auxiliará, quando necessário, os estudantes e professores em sala de aula. (PPP, 2018, p.14-15).

Dos 9 estudantes acompanhados pelo PEI, 5 (estudantes com autismo; com TDAH; com deficiência física - "cadeirante" e deficiência congênita, conforme documento da escola -; com deficiência visual e com discalculia, dislexia e disgrafia) requerem atendimento educacional especializado com adaptação de materiais e recursos pedagógicos, juntamente com o acompanhamento do Professor Multidisciplinar em sala de aula. Os outros quatro estudantes, 2 com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), 1 com transtorno do espectro autista (TEA), 1 com transtorno opositor-desafiador (TOD) e 1 com dislexia, são acompanhados, porém sem a exigência de atendimento especializado.

Participante

Dentro deste universo de "diagnóstico", a pesquisa que aqui se apresenta optou por investigar a aluna cega (Sofia, nome fictício), primeiramente, por possuir uma deficiência que pode ser considerada como explícita, visível, diferentemente da maioria das demais apresentadas anteriormente, bem como porque sua história de vida, até o momento, revela claramente as contradições entre a aceitação de sua deficiência e a construção social da diferença, apesar da mesma apresentar-se em pleno processo de inclusão, estando matriculada, aos 18 anos, no terceiro ano do ensino médio de uma escola regular, bem como ser atleta do paradesporto municipal, na modalidade Goalball1 - motivo que, conforme relatam a professora multidisciplinar e a orientadora pedagógica, garante a bolsa de estudos para estudar na escola em que se realizou esta pesquisa. "A Sofia chegou para nós pelo projeto de paradesporto, ela é bolsista e atleta na escola" (Professora Multidisciplinar).

Sofia ficou cega aos 11 anos de idade, devido a um acidente vascular cerebral (AVC), quando estava cursando o Ensino Fundamental em outra escola. A respeito de sua condição ao se tornar cega, a estudante comenta:

Ah, dizem que... tipo... que eu sou meia louca. Que, tipo assim... pra mim foi normal, assim, eu até que meio que gostei assim, de ter ficado cega, sabe... foi uma realidade diferente, sabe... eu acho que [...] no momento ali eu gostei... Eu não gostei de uma parte que os amigos, que diziam ser amigos, se afastaram, sabe? E os professores que diziam, 'tu és uma boa aluna', já não davam conteúdo, já não me... ajudavam muito. Isso já me deixou mais pra baixo, sabe? (grifos das autoras)

Apesar de não ser aqui um espaço de análise, não se pode deixar de dizer, mediante a fala anteriormente descrita, que Sofia percebe que a cegueira em si não é o que lhe incapacita, não é algo negativo; mas diferente, "normal". É a partir das barreiras que encontra na relação com os amigos e os professores que ela reconhece sua nova condição de "deficiente". Coadunando com Vigotski (1924/1997, p. 79) quando afirma que, é fundamental compreender a relação presente entre o que representa a cegueira em si e o que ela representa nas relações constituídas social e historicamente, ou seja, "A cegueira é um estado normal e não patológico para a criança cega, e ela o percebe só indiretamente, secundariamente, como resultado de sua experiência social refletida nele" (p. 79). Ou, ainda, como descrito por Canguilhem (1995), a noção de normal e patológico constroem-se a partir das relações que se estabelecem com o mundo social; no caso de Sofia, o distanciamento dos amigos, "por medo, vergonha ou receio de ser indelicado", como ela diz, assim como sua segregação dentro de sala de aula, por parte de professores que ora não acreditavam em sua capacidade, ora desconheciam os meios de fazê-la participar e aprender, foram as barreiras atitudinais que tornaram sua cegueira um déficit, algo que a deixou para baixo, quando ainda cursava o ensino fundamental.

 

Resultados

Com base na análise do contexto escolar e com anuência e autorização da escola e dos participantes desta pesquisa, dar-se-á ênfase à análise dos processos de inclusão da estudante cega, Sofia (nome fictício). Os relatos baseiam-se nas entrevistas realizadas com a estudante, com a professora multidisciplinar e com a orientadora pedagógica da escola. Nesse sentido, diante da fala de Sofia juntamente com os demais instrumentos de coleta de dados, para melhor compreender o objetivo da pesquisa (a construção social da diferença na escola, em especial da deficiência - diferença estigmatizada, inferiorizada e historicamente marginalizada - e os modos como a pessoa com deficiência (PCD) vivencia a realidade escolar), as análises serão apresentadas em eixos de significação, retirados da própria fala de Sofia, e que revelam não somente o prescrito, o visto, o observado, mas, principalmente, as significações, os sentidos que ela atribui às suas experiências e vivências como aluna do Ensino Médio, bem como sua percepção sobre a construção social da diferença.

"Eles pensam que somos criancinhas"

A frase que dá nome a este primeiro eixo de significação, apareceu logo no início da entrevista com Sofia, mais especificamente quando ela tentava explicar a importância de seu ponto de vista para que se compreendesse seu processo de inclusão. Para tanto, ela fala sobre a tendência à sua infantilização no meio social: "no ponto de ônibus, uma pessoa me pegou pela mão e começou a me levar para não sei onde... ela esqueceu de me perguntar para onde ia (risos)".

Ficando evidente, como apontam De Carlo (1999) e Maffezoli (2004), que na maioria das vezes, cria-se uma certa infantilização por parte dos grupos sociais nos quais as pessoas com deficiência pertencem. Consequentemente, as mesmas passam a serem vistas como "eternas crianças" que não possuem autonomia, são dependentes dos outros e são incapazes de se responsabilizarem por seus próprios atos. Assim, apesar de rir do corrido, depois de passado, Sofia sente-se incomodada com a atitude das pessoas diante de si, pois independentemente de sua cegueira, ela consegue fazer suas escolhas, decidir para aonde quer ir, entre outras coisas. Isto ocorre, segundo Amiralian (2003), porque, há "a ausência de uma compreensão da criança, ou de qualquer ser humano, como um todo único e integrado que se constitui pela interação de um organismo com o ambiente que o sustenta" (Amiralian, 2003, p. 108).

"Tu não podes ter conteúdo igual ao deles, porque tu não vais conseguir"

Se tomarmos a Educação como um processo de apropriação dos conhecimentos produzidos pela humanidade e, como ser humano, aquele ser que se transforma e é transformado pela própria cultura, podemos concluir que a escola é uma das instituições responsáveis pelo processo de humanização (Cortella, 1998). Consequentemente, ao negar o acesso ao conhecimento a um indivíduo, nega-se sua condição humana.

Nesse sentido, pode-se dizer que, sob o olhar de muitos, a cegueira incapacita à medida em que se reduz as potencialidades de um indivíduo a partir de estereótipos relacionados à determinada característica, estabelecendo uma relação baseada no estigma e limitando, segundo Goffman (1980), suas chances de vida. No caso de Sofia, em especial na escola em que ela frequenta, diante de sua diferença, a colocam em uma posição desigual, inferior ou, se assim pode-se dizer, "menos humana", principalmente quando colocam que ela não pode aprender o mesmo que os outros, como se observa em seu próprio relato.

Porque daí eu não podia ter conteúdo igual ao deles, eu já não podia... porque isso que eles diziam, né? 'Ah, tu não podes ter conteúdo igual ao deles, porque tu não vais conseguir. (Sofia)

Demonstrando, assim, que passadas quase três décadas da Declaração de Salamanca, muitas pessoas, incluindo as escolas as quais fazem parte, continuam a conceber as deficiências muito mais dentro de um modelo médico, que reduz possibilidades e limita capacidades, ao invés de adotar uma perspectiva biopsicossocial, que consegue além de se focar nas funcionalidades/habilidades, conscientizar que não se deve reduzir a uma mera análise individual da pessoa com deficiência, mas também e, principalmente, as barreiras físicas, sociais e políticas existentes em quaisquer ambientes sociais. Afinal, a inclusão da pessoa com deficiência transcende a dimensão individual, passando a ser uma responsabilidade coletiva da sociedade. Em outras palavras, no contexto da educação faz-se essencial considerar, sempre que necessário, meios distintos para o alcance de determinados fins, de modo a garantir a equidade dos processos educacionais. Como descreve Boaventura de Sousa Santos (2003), ao termos "o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e [termos] o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza" (p. 56), surge a necessidade "de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades" (p. 56).

Entretanto, o processo de inclusão de Sofia, ainda no ensino fundamental, parecia limitar-se à sua adaptação às aulas dos professores, não havendo, na maioria dos casos, uma tentativa de adaptação dos meios à nova condição da estudante, tampouco uma igualdade que reconhecesse suas diferenças sem reproduzir as igualdades, como descrito por Boaventura de Sousa Santos. Pelo contrário:

[...] tinha professor que tipo assim, falava assim: 'Tu prestas atenção, depois eu vou te dar prova'. Só que é bem diferente uma coisa tipo, tu prestar atenção... tu escutar, porque, assim... realmente, eu tinha perdido a visão ali, sabe? (Sofia)

Pode-se dizer, assim, que as barreiras sociais do processo educacional de Sofia manifestam-se pelos modos como os professores lidavam com a sua condição. Para a estudante, prestar atenção e ouvir as explicações do professor em sala de aula não eram suficientes para a compreensão dos conteúdos. Os caminhos para a apropriação de conhecimento, antes vinculados à visão, precisavam se adequar à nova realidade, qualitativamente distinta de sua condição de vidente. Ou seja, o fato de estar cega não significa que sua aprendizagem virá, automaticamente, por meio da audição e da memória, como muitos acreditavam e ainda acreditam. Pelo contrário, faz-se necessário toda uma reestruturação do sistema nervoso central, bem como dos outros sentidos para que Sofia possa utilizar-se de novas estruturas, bem como de outros instrumentos para que se dê sua aprendizagem. Afinal:

[...] não é apenas a falta da visão (o defeito de um órgão singular), mas também [...] uma reestruturação muito profunda de todas as forças do organismo e da personalidade. [...] a cegueira não é apenas um defeito, uma deficiência, uma debilidade, mas também, em certo sentido, uma fonte de revelações de atitudes, uma vantagem, uma força. (Vigotski, s.d/1997, p. 99)

Como complementa Autor (2013), com base em Vigotski, a cegueira deixa de ser encarada como um "déficit" ou um "menos" e passa a ser compreendida como um 'estímulo' para o desenvolvimento de novas capacidades, por meio de um processo de reestruturação (compensação) que se constrói mediante as interações entre o indivíduo e o meio exterior. Ou seja, a compensação se faz mediante instrumentos culturais, sociais e pedagógicos que garantem à pessoa cega seu pleno desenvolvimento. A este respeito, a própria Sofia verbaliza que incluí-la nesse processo não demanda nem longo tempo, sequer conhecimento específico.

... não é tão complicado, sabe... É tipo assim... Ah! Se o professor não teve tempo de passar no TXT, então, chega lá pra aluna e diz assim: - "Abre a pasta que eu vou ditar no quadro". Vai escrevendo, vai ditando. Aluno com notebook ele consegue te... acompanhar, sabe? Ele consegue te... (Sofia)

Demostrando, assim, que apesar do apoio de instituições especializadas para o ensino do Braille e com computador para a leitura dos documentos, a partir de software específico para suas necessidades, os professores, segundo Sofia, a deixavam a mercê dos instrumentos de ensino e aprendizagem tão comumente utilizados no dia a dia das salas de aula para todo e qualquer aluno sem nenhum tipo de deficiência. Atitude esta que deixava Sofia indignada, pois apesar de atingir a nota necessária nas provas, a mesma constantemente se perguntava sobre o seu próprio aprendizado.

[...] a professora só me olhava, ria e dizia assim: 'Sofia, a gente vê, a gente vê' E daí, no final, a gente tirava um oito, um sete, um nove, por comportamento. [E a aprendizagem,] cadê? Não, não tinha. Daí tipo assim, ia dos professores, sabe? Eu acho que... faltou um pouco de vontade de cada professor, sabe? (Sofia)

Se partir do princípio que a interação social e a mediação são pontos centrais no processo educativo, em especial no processo de constituição do sujeito, a mediação do professor exercerá papel fundamental na aplicação dos mais diversos instrumentos que contribuirão à aprendizagem de seus alunos, bem como para que os mesmos sejam capazes de agir e intervir no mundo, conferindo novos significados à história dos homens. Nesse sentido, ao fazer o inverso com Sofia, deixando-a de lado por não acreditarem que ela teria capacidade de aprender, seus professores acabavam por marginalizá-la dentro da própria sala de aula, ora por não permitirem que ela avance em seus estudos porque "não vai conseguir", ora porque aferem sua nota relacionada ao seu comportamento, ou ora ainda por evidenciarem uma situação de fracasso escolar causada não pela sua cegueira, mas pelos modos como a escola lida com sua condição.

Então, tipo assim... Eu não conseguia ainda gravar tudo na cabeça, porque... leva um tempo... Aí eles falavam assim: "Ah, grava aí na tua cabeça, que daí depois a gente vai fazer prova oral". Aí tirava dois, três... porque eu nunca lembrava as coisas. (Sofia)

Pode-se dizer, portanto, que apesar de inserida em uma escola comum, a educação (ou a negação da mesma) reproduz a lógica de educação especial ainda marcada por seu caráter assistencialista e filantrópico, bem pela tendência ao isolamento do estudante com deficiência, como já descrevia Vigotski (1924/1997, p. 59), ao se referir à escola especial soviética de sua época:

[...] nossa escola especial destaca-se pela deficiência fundamental de que se limita seu educando - a criança cega, surda-muda ou atrasada mentalmente - no estreito círculo da coletividade escolar, em que se cria um micromundo isolado e fechado em que tudo está acomodado e adaptado ao defeito da criança, tudo está centrado na insuficiência física e não a introduz na vida autêntica.

Afirmação esta que, uma vez mais, leva ao questionamento: de que educação inclusiva se está falando? Se passados quase 100 anos dos primeiros estudos de Vigotski a respeito da educação das pessoas com deficiência, como pessoas que aprendem normalmente junto de seus pares "normais", apenas com o auxílio de instrumentos diferentes, o que se tem feito para a melhora da qualidade da aprendizagem de Sofia?

Isto posto, pode-se dizer que no processo de inclusão/exclusão de Sofia, os professores deixam que a deficiência se evidencie muito mais que as relações que são estabelecidas em sala de aula, tanto com relação ao seu próprio relacionamento com os professores como com seus colegas de sala. Sua participação e aprendizagem, fundamentais para que se efetive uma educação especial inclusiva, ficam à mercê de poucos professores, prejudicando seu processo de escolarização, como se pode observar na fala a seguir.

Só um professor... ele era muito show de bola! Tudo que ele estava passando para os alunos, ele me passava. [...] Então, de um jeito ou de outro ele... ele tentava me... ensinar, sabe? Ele pegava o conteúdo de todo o trimestre e passava para as meninas do CEMEA2. Aí, elas faziam [adaptavam] e eu lia. Daí ele falava assim: - '"Ah, eu vou fazer prova, pode estudar isso daí". Aí funcionava, daí eu tirava oito, nove... Daí... né, mas assim... sempre nessas notas, se eu estudasse, né? (Sofia)

Nesse sentido, a perspectiva inclusiva assume caráter individual, ainda que a infraestrutura fosse oferecida para toda a escola, como é o caso do CEMEA, que atua como apoio à educação especial nas escolas do município.

Desafios e inclusividade no Ensino Médio

Ao passar para o ensino médio, além da mudança de escola, Sofia experimenta uma nova realidade: a necessidade de aprender a viver/conviver em um novo espaço, a necessidade de mobilidade urbana, a participação no time do paradesporto, além dos desafios inerentes ao ensino médio. Ao ser questionada sobre essas mudanças, ela afirma:

Melhorou. Porque daí teve conteúdo [...] foi meio... assustador[...] eles começaram a passar conteúdo, né? Aí eu... comecei [a estudar]. Disse: "Tá bom, vamos lá"! Mas daí... comecei a tirar nota baixa, porque daí mesmo com conteúdo, era muito conteúdo. (Sofia)

Verificando-se, assim, que se antes não existia preocupação com o conteúdo a ser ensinado - "Tu não podes ter conteúdo igual ao deles, porque tu não vais conseguir" - agora a dificuldade enfrentada pela estudante no Ensino Médio muda de natureza: lidar com os desafios próprios da nova fase tanto em relação ao seu processo de autonomia - - "comecei a andar sozinha, ir aos treinos [de goalball] sozinha" -, quanto no desenvolvimento de uma rotina de estudos:

[...] era bastante conteúdo, né? Daí estudar, conseguir estudar tudo e até entrar numa rotina de... tipo... tem que estudar todos os dias, porque tá faltando conteúdo na tua vida... Aí, entrar na, na caixola e... demorou um pouco. Mas daí foi..., foi indo, foi indo...Aí depois... agora, agora no terceiro ano eu consegui acostumar... a estudar. Daí eu estudo todos os dias. Daí agora, sim. Mas antes, assim, demorou um pouquinho, por causa que... tipo... como eu não tinha o costume de estudar... (Sofia)

Cabe aqui destacar que, apesar dos novos professores não diferenciarem Sofia dos demais colegas de sala - o que já é muito importante -, não se pode esquecer que quando se pensa em equidade no processo de inclusão escolar, não basta garantir o acesso à escola. Faz-se essencial garantir a permanência e a promoção de ensino de qualidade a cada um dos estudantes, levando-se em conta os processos de aprendizagem juntamente com as adaptações necessárias e/ou instrumentos essenciais para que todos consigam se desenvolver e aprender plenamente. Nesse sentido, apesar de Sofia atribuir à crença de seus professores em sua capacidade e potencialidade, como ela mesmo diz:

Porque lá [escola de ensino fundamental onde estudava], eu tinha apoio da professora, de algumas professoras, né? Que davam... dava auxílio... e algumas professoras que tipo assim... sabiam meu potencial, né. E sabia assim, 'não, eu posso cobrar tudo, que ela vai saber tudo'. Tipo assim, não tem diferença só vai, só vai ter que mudar, né, o... jeito... daí eu consegui, mas teve professores que já não. E aqui não, todos os professores, sabe, sabiam... foram me dando conteúdo, porque, imaginaram que eu conseguia, entendeu? (Sofia)

O fato de Sofia se acostumar à quantidade de conteúdo somente no terceiro ano, levanta outros questionamentos frente a esta "inclusividade": Em que momento se pensou em uma verdadeira acessibilidade atitudinal de Sofia? Que suporte a escola deu para que ela aprendesse tudo o que era necessário, e que antes não foi lhe ofertado, para que conseguisse apreender de fato e dar continuidade aos seus estudos?

Respostas parciais a tais questionamentos podem ser observadas quando se traz à tona a estrutura oferecida pela escola para o desenvolvimento integral de Sofia e dos demais alunos, principalmente, quando se lê na política interna da instituição a previsão de um programa específico para o acompanhamento de estudantes PAEE, conjuntamente com a articulação com o currículo escolar. A professora multidisciplinar, por exemplo, atua no processo de mediação dos conhecimentos oferecendo suporte tanto aos estudantes como aos professores, de forma colaborativa, evitando a imposição de conteúdos. Nesse aspecto, a professora relata que a partir da entrada de Sofia na escola e do acompanhamento, junto à gestão, dos processos de ensino e aprendizagem, os professores foram transformando suas práticas de forma a contemplar as particularidades da estudante em sala de aula. Ao ser perguntada sobre as mudanças na prática docente dos colegas, a professora descreve:

[No início da entrada de Sofia na escola,] a gente precisava ficar ressaltando muito que tipo de atitudes eles teriam que ter em sala de aula. [...] hoje eu não preciso mais dizer que o professor precisa preparar uma prova no TXT. Quando eu vejo, a prova está lá, no pen drive, na minha mão, ou de quem é responsável de fazer a aplicação. Hoje, isso se tornou automático pois de fato era novo, era tudo novo e, às vezes, o medo... muitas vezes peguei professor se perguntando: - "Como vou trabalhar isso?" E, vem outro professor e diz: - "Olha, eu peguei e fiz essa fórmula com cola colorida pra ela. Então, ela passou a mão e já sentiu como é a fórmula molecular". E, aquilo foi se estendendo... e um vendo o trabalho do outro e hoje isso é automático. Hoje eu tenho professores que nem me pedem orientação em relação às provas, as alterações. Isso, de modo geral, em relação à educação especial na escola. Tinha professores que a gente percebeu muita resistência, tem professores que chegam novos na escola e, eles tendem a se adaptar à realidade da escola. Mas quando a gente tem professores que estão há 20 anos na escola e eu chego, nova, e digo tem pra fazer assim... é um pouco evasivo... muito evasivo! Eu estou dizendo para ele que do jeito que ele estava fazendo não é o suficiente. - "Mas espera aí! Eu dou aula há 20 anos desse jeito". Então, teve professores que a gente teve mais resistência e que ao mesmo tempo me diz hoje: - "Olha, eu conversei com o aluno e adaptei a prova". Ou que diz: "Olha eu percebi que aquele aluno tem dificuldade e eu tomei a liberdade de alterar a prova dele". Daí tu olha e fica pensando: - "Meu Deus! Que rico! Que magnífico isso"! Mudar esse tipo de olhar, às vezes, leva muito tempo e por isso que te digo que eu tenho prazer de estar aqui há 3 anos e só ter andado para frente.

Ou, ainda, como chega afirmar Sofia: para ela, a professora multidisciplinar atua no sentido de lhe dar autonomia, e mostra constantemente que ela é capaz de realizar suas tarefas sozinhas, assim como os demais professores buscam adaptar seus conteúdos da "melhor maneira".

Diante de tal relato, pode-se afirmar, primeiro, que as práticas colaborativas de troca entre os professores, como descrita pela docente anteriormente, permitem transformar o olhar, por vezes engessado, de professores que, por falta de diálogo, deixam de perceber as particularidades dos estudantes. Segundo, a partir da entrada de Sofia na escola, em especial na sala de aula que passou a frequentar, ocorreu uma mudança na postura dos professores em relação à educação especial. E, terceiro, desenvolveu-se uma nova perspectiva sobre o trabalho docente, que se constrói não por meio de cursos com conteúdos específicos, mas por uma formação que ocorre em serviço, durante momentos de planejamento com a professora multidisciplinar e nas reuniões periódicas de professores.

Com relação à infraestrutura, é importante ressaltar o diálogo que se estabelece entre outras instituições e que facilitam o desenvolvimento da estudante, como o programa de paradesporto escolar do município, por meio do qual Sofia consegue sua bolsa de estudos e, por meio do suporte do técnico do time de goalball, desenvolve sua mobilidade por todo o município; e a associação não-governamental voltada às pessoas cegas no município também contribui junto à escola com o ensino do Braille e a adaptação do material didático. No entanto, durante o momento de realização da pesquisa, a estudante estava sem apoio para a aprendizagem de Braille, além da escola não disponibilizar de uma impressora específica, o que dificulta a prática da linguagem e seu preparo para o Exame Nacional do Ensino Médio, realizado em Braille.

Tal relato, uma vez mais, remete aos questionamentos anteriores: De que tipo de inclusão estamos falando? Será que de fato foi ofertado à Sofia todos os instrumentos essenciais para que pudesse continuar se desenvolvendo e aprendendo? Ou, ainda, como alertam Stoer, Magalhães e Rodrigues (2004), se é sabido que a educação é um dos lugares em que mais acontece inclusão e exclusão, por que ainda não conseguimos mudar esta realidade?

Com base em Tenório, Ferraz e Pinto (2015), tais respostas tornam-se cada vez mais difíceis de serem respondidas, pois urge a necessidade de se reconhecer a equidade como essencial aos processos educacionais. E, nesse sentido, é primordial que se reconheça que:

[...] nem todos aprendem ou devem ser ensinados da mesma forma igualitária, pois um processo educacional que busca a equidade pressupõe o reconhecimento e o respeito às diferenças e é capaz de fazer com que todos os alunos desenvolvam as competências e habilidades esperadas para o nível de estudo, levando em consideração as diferenças pessoais, socioeconômicas e culturais do aluno. Assim, se faz necessário que a escola não seja indiferente com as diferenças e trate de forma diferente a partir de suas necessidade e subjetividades os desiguais, pois se todos são tratados igualmente, a desigualdade permanece. (Tenório, Ferraz & Pinto, p. 8).

Nesse sentido, apesar de toda a sensibilidade da instituição em ofertar um programa específico para as pessoas com deficiência, ainda necessita rever a importância do uso de uma impressora específica que facilite a prática da linguagem pela estudante, assim como de um profissional que trabalhe com ela o Braille, para que possa não somente ter um meio de aprendizado da linguagem escrita, mas também para que possa realizar o Exame Nacional do Ensino Médio (obrigatório) - que, no caso, somente oferece a possibilidade da prova em Braille, e não com um leitor.

Por fim, ao que se refere as relações de Sofia com os colegas na escola e em sala de aula, observou que estas se mostraram colaborativas e, conforme a fala da professora, transformaram a dinâmica da sala de aula.

Assim como qualquer adolescente dentro de uma sala de aula, ela tem grupos de afinidade, isso é natural, mas todo mundo ajuda ela. Alguns ajudam mais, temos um aluno que se identifica mais com aquele grupo, sentado naquele meio, o mesmo acontece com ela. Agora na ausência de qualquer um deles, qualquer aluno da turma faz esse papel, não temos essa dificuldade [...] inclusive um aluno novo, pois a turma já trabalha em defesa dela. Alguém novo vai ter que se adequar a esta realidade, de que a Sofia faz parte daquela turma, é assistida pela turma e isso é muito legal. Os outros alunos conseguem fazer essa dinâmica de se relacionar com outra turma, e os amigos levaram a Sofia para essa dinâmica. A Sofia tem amigos no primeiro ano, no segundo e terceiro ano. Ela não está limitada a turma dela, os próprios colegas, da mesma maneira que eles fazem essa intervenção em outras turmas, fizeram com ela. Ela está junto. No começo ela estava isolada, não participava das coisas. Por si, pela dificuldade que ela tinha de dar conta disso. E eles mostraram para ela que era possível. Nos sentimos muito felizes. (Professora multidisciplinar)

Demonstrando, assim, que tais manifestações de coleguismo contribuem para o sentimento de pertencimento no grupo, assim como Sofia conta com suas redes de apoio na escola estabelecendo fronteiras entre os novos amigos, as amigas e os colegas, como ela mesma descreve.

Ah! Eu tenho uma amiga que a gente fica grudada; a gente não se desgruda. E, tem as amigas que elas ficam, tipo, "na delas"; que daí elas são da minha sala... [sobre as amigas de sala de aula] não é uma amiga que eu saio... conto tudo que eu fiz no final de semana, vamos por assim. Mas, tipo, é uma amiga que tipo, se eu pedir: -"Vai lá pra mim fazer isso, isso e isso, porque eu preciso". Ou se eu, se falar assim: "Vamos comigo lá na cantina, que eu estou ficando tonta e eu não consigo andar" - que já aconteceu. Daí ela vai. Tipo assim, tranquilo. É uma amiga dessas, sabe? Tipo... que tá ali pra me ajudar, assim. (Sofia)

Porém, nem a escola e nem Sofia querem dizer com isso que todos os relacionamentos são de amizade, pois Sofia menciona que houveram momentos em que ocorram dificuldades no estabelecimento de vínculos de amizade com os colegas de classes, principalmente após o período em que ficou cega.

Diante de tal realidade, pode-se supor que, em geral, o estigma parece ser vivenciado pelo distanciamento e pela superficialidade das relações entre pares que se limitam à assistência. Como mostra Todorov (1983), a relação com o outro parte de três eixos: o primeiro remete ao valor que atribuímos ao outro - se é bom, é mau, gosto ou não gosto -; o segundo, diz respeito ao conhecimento sobre o outro; o terceiro, refere-se à proximidade que estabeleço entre mim e o outro. Esses três eixos, isoladamente, não garantem a superação de relações baseadas numa perspectiva de superioridade/inferioridade com relação ao diferente. Pelo contrário, será a união desses três eixos que permitirá que a amizade se estabeleça com base em uma relação de igualdade, em que se possa, com confiança, mostrar ao outro quem se é de verdade. No caso de Sofia, se mostrar sem a máscara da "menina cega", tampouco manter uma relação de amizade entre partes desiguais: uma parte fraca que precisa de uma outra parte forte.

Diante do exposto, pode-se concluir, com base em Vigotski (1924/1997), que é essencial a adoção de uma perspectiva positiva da educação especial. Ou seja, todos que participam das relações escolares devem compreender a deficiência como uma diferença qualitativa e não quantitativa do que se considera como "normal", dessa maneira, a educação especial deve estar vinculada à educação comum e, consequentemente, a despeito de sua condição, todos aprenderão de formas diferentes e por meios distintos, como destaca o autor.

A educação social da criança deficiente, baseada nos métodos da compensação social de sua deficiência natural é o único caminho cientificamente válido e de ideias corretas. A educação especial deve estar subordinada à social, deve estar ligada a esta e, mais ainda, deve funcionar organicamente com ela, incorporando-a como parte componente. [...] Entretanto, não devemos esquecer que é preciso educar não a um cego, mas antes de tudo, uma criança (Vigotski, 1924/1997, p. 81).

E, nesse sentido, a postura da atual escola frente à estudante, assim como de seus colegas, contribui tanto para a participação de Sofia em sala de aula, como para a construção do sentimento de pertencimento ao grupo, levando-a a comparar as experiências vivenciadas na antiga escola com as atuais: "Aí foi bem mais diferente. Eu podia perguntar para os professores. Já lá, não. Lá, se tu perguntasses, eles olhavam com aquela cara tipo: - "Ah, vai dizer que tu não sabes?" Daí eu nem perguntava... (Sofia)

 

Considerações finais

A partir da análise do processo de inclusão escolar de Sofia, uma estudante cega, foi possível identificar formas distintas de se relacionar com a diferença na escola e analisar os processos de construção social da deficiência, bem como tentativas de superação das barreiras sociais que se estabelecem.

Em suma, os resultados mostram que a participação e a aprendizagem de estudantes com deficiência dependem do envolvimento da escola como um todo e, principalmente, a transformação do olhar sobre as necessidades específicas dos estudantes, que deixa de ser somente na deficiência como incapacidade, para contemplar todas as potencialidades que o estudante venha apresentar, bem como o uso de instrumentos que facilitem tanto a aprendizagem quanto o seu desenvolvimento. Em outras palavras, a escola passa a criar sentidos, abrir possibilidades, permitir a participação de todos e, essencialmente, estar conectada com a realidade da educação em nossos dias.

Ao mostrar seu processo inicial na escola como aluna cega e sua entrada no ensino médio, Sofia nos permitiu observar o quanto seu desenvolvimento se deu por meio do trabalho colaborativo entre as políticas institucionais específicas, os professores de disciplinas, a professora multidisciplinar e a gestão escolar. Além disso, a colaboração de outros estudantes permitiu e ainda permite o estabelecimento do sentimento de pertencimento ao grupo, provocando novas formas de ver e pensar o outro, o diferente.

Conclui-se, assim, que tais fatores, ao limitar ou promover a participação e aprendizagem de Sofia na escola, atuam, portanto, neste estudo, como indicadores de sua inclusividade. Ou seja, Sofia não é mais a "menina cega" isolada na escola ou na sala de aula. Pelo contrário, Sofia está incluída no nós [nós = eu + tu + outro(s)] de sua escola e, principalmente, de sua sala de aula.

 

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Recebido em: 20 de novembro de 2018
Aprovado em: 03 de abril de 2020

 

 

1 De acordo com a Confederação Brasileira de Desportos de Deficientes Visuais, o Goalball é o único esporte paraolímpico não adaptado. "Foi criado em 1946, pelo austríaco Hanz Lorezen e o alemão Sepp Reindle, que tinham como objetivo reabilitar e socializar os veteranos da Segunda Guerra Mundial que ficaram cegos. O Goalball é um esporte baseado na percepção tátil e, principalmente auditiva, por isso não pode haver barulho enquanto a bola está em jogo". [...] O esporte é praticado em uma quadra com as mesmas dimensões da quadra de vôlei [...]. De cada lado da quadra tem uma baliza [...]. A linha do gol e algumas outras importantes para a orientação dos jogadores são marcadas por um barbante preso com fita adesiva, permitindo que os atletas possam senti-las. A bola usada para a prática do esporte é parecida com a de basquete. [...] e possui guizos em seu interior para que os jogadores saibam a sua direção. A partida de Goalball acontece entre em duas equipes com três atletas cada com o objetivo de fazer gols. Durante o jogo os atletas têm a função de arremessar e defender. A bola arremessada deve tocar em determinadas áreas da quadra para que o lance seja considerado válido" (CBDV, não datado).
2 O Centro Municipal de educação alternativa (CEMEA) é voltado ao atendimento do público-alvo da educação especial no município de Blumenau. A estudante refere-se ao se referir às as "meninas do CEMEA", ela fala das professoras especializadas que faziam a adaptação do conteúdo escolar.

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