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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.51 São Paulo jul./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.23925/2175-3520.2020i51p85-96 

ARTIGOS

 

Promoção e prevenção em saúde mental na infância: implicações educacionais

 

Promotion and prevention in child mental health: educational implications

 

Promoción y prevención en salud mental en la infancia: implicaciones educacionales

 

 

Nicole Costa FariaI; Marisa Cosenza RodriguesII

IUniversidade Federal de Juiz de Fora - UFJF - Juiz de Fora - MG - Brasil; nicolecostafaria@gmail.com
IIUniversidade Federal de Juiz de Fora - UFJF - Juiz de Fora - MG - Brasil; rodriguesma@terra.com.br

 

 


RESUMO

Nos últimos anos, um novo paradigma em saúde mental vem se consolidando, impulsionado por novas formas de compreender e intervir sobre os processos de saúde. Uma perspectiva mais abrangente, contextualizada e focada nos processos de saúde ganha força, em detrimento de uma abordagem reducionista, institucionalizante e que enfatizava a doença. Nesse contexto, as práticas de promoção e prevenção em saúde mental ganham espaço, as quais objetivam potencializar a saúde psicológica e evitar o surgimento de problemas a ela associados. Assim, este trabalho pretendeu discutir quais as implicações educacionais deste novo paradigma no que diz respeito à saúde mental de crianças e adolescentes. Inicialmente, traça-se um histórico da atenção à saúde mental infantil no Brasil, evidenciando um longo período de descaso e marginalização em relação a essa população. Posteriormente, são discutidos os pressupostos que fundamentam as ações de promoção e prevenção em saúde mental e o papel da escola nesses processos. Finalmente, são discutidos alguns estudos de revisão sobre a implementação de programas de prevenção e promoção em contexto escolar. Acredita-se que a construção de estratégias destinadas à promoção de saúde mental configura-se como um desafio atual, sobretudo, no contexto educacional.

Palavras-chave: Saúde mental; Promoção de saúde; Saúde escolar.


ABSTRACT

In recent years, a new mental health paradigm has been consolidating, driven by new ways of understanding and intervening in health processes. A more comprehensive, contextualized, and focused on health process perspective gains strength, instead of a reductionist, institutionalizing one that emphasized the disease. In this context, mental health promotion and prevention practices gain space, which aim, respectively, to enhance psychological health and avoid the emergence of problems associated with it. Thus, this paper intends to discuss the educational implications of this new paradigm regarding the mental health of children and adolescents. Initially, a history of childhood mental health care in Brazil is drawn, evidencing a long period of neglect and marginalization in relation to this population. Subsequently, the assumptions underlying the actions of promotion and prevention in mental health and the role of the school in these processes are discussed. Finally, some review studies on prevention and promotion implementation programs in the school context are discussed. It is believed that the construction of strategies aimed at the promotion of mental health is a current challenge, especially in the educational context.

Keywords: Mental health; Health promotion; Schoolar health.


RESUMEN

En los últimos años, un nuevo paradigma en salud mental se viene consolidando, impulsado por nuevas formas de comprender e intervenir sobre los procesos de salud. Una perspectiva más amplia, contextualizada y enfocada en los procesos de salud gana fuerza, en detrimento de un enfoque reduccionista, institucionalizante y que enfatizaba la enfermedad. En este contexto, las prácticas de promoción y prevención en salud mental ganan espacio, las cuales objetivan, respectivamente, potenciar la salud psicológica y evitar el surgimiento de problemas asociados a ella. Así, este trabajo pretende discutir cuáles son las implicaciones educativas de este nuevo paradigma en lo que se refiere a la salud mental de niños y adolescentes. Inicialmente, se traza un histórico de la atención a la salud mental infantil en Brasil, evidenciando un largo período de descaso y marginación en relación a esa población. Posteriormente, se discuten los supuestos que fundamentan las acciones de promoción y prevención en salud mental y el papel de la escuela en esos procesos. Finalmente, se discuten algunos estudios de revisión sobre la implementación de programas de prevención y promoción en contexto escolar. Se cree que la construcción de estrategias destinadas a la promoción de la salud mental se configura como un desafío actual, sobre todo, en el contexto educativo.

Palabras clave: Salud mental; Promoción de salud; Escuela; Educación.


 

 

Introdução

Nos últimos anos, assiste-se o surgimento de um novo paradigma em saúde, o qual caracteriza-se por considerar o ser humano em sua complexidade ao inserir aspectos sociais, psicológicos e físicos como dimensões da saúde. Nesse sentido, a maneira de se compreender a saúde mental também passou por reformulações. Uma das definições importantes dessa nova ótica, é proposta pela Organização Mundial de Saúde que assevera que saúde mental é "um estado de bem-estar no qual o indivíduo percebe as suas próprias habilidades, pode lidar com as tensões normais da vida, trabalhar de forma produtiva e frutífera, sendo capaz de dar uma contribuição para sua comunidade" (WHO, 2005, tradução das autoras). Essa definição, em comparação às antigas concepções reducionistas, mostra-se mais adequada à realidade dos processos de saúde mental, uma vez que adota uma proposta mais ampla, assumindo também a qualidade das relações que a pessoa estabelece em suas atividades e com sua comunidade.

Coerente com essa concepção, ganham força novos modelos de intervenção em saúde, os quais têm como alvo tanto as questões microssociais, como o estilo de vida e a rede comunitária da pessoa, quanto as macrossociais tais como: condições de moradia e trabalho, situação socioeconômica, condições de nutrição, poluição, saneamento, acesso à educação, entre outras (Buss, 2003). Segundo Schneider (2015), essas intervenções embasam-se no modelo dos determinantes sociais da saúde, proposto em 1991 por Dahlgren e Whitehead, o qual evidencia a complexidade dos processos de saúde e sua multideterminação.

O paradigma atual em saúde abrange, necessariamente, a saúde mental, dimensão que passa a ser compreendida também de maneira multideterminada. Fundamentam-se nesse paradigma as propostas de prevenção e promoção em saúde mental, as quais, segundo Abreu, Barletta e Murta (2015), assumem relevância nas políticas públicas. De modo geral, as ações de prevenção têm como alvo evitar o surgimento de uma patologia específica, enquanto as ações de promoção têm como objetivo fortalecer os processos de saúde e bem-estar (Czeresnia, 2003). Será destacada, no presente trabalho, a importância da escola como lócus privilegiado para a implementação dessas estratégias.

A escola é aqui entendida como tendo um papel mais abrangente do que a transmissão de conhecimentos. Sua função é dar oportunidades e subsídios para o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, bem como promover seu bem-estar (Guzzo, 2016). Aliado a isso, sabe-se que a infância e a adolescência são etapas cruciais para intervenções precoces (Murta, Günther & Guzzo, 2015), tanto para ações de prevenção como de promoção em saúde.

No âmbito da saúde mental, a proposta deste trabalho é discutir de modo mais detalhado a saúde mental infantil, a partir da constatação de que é possível e urgente pensar em estratégias de promoção e prevenção em saúde mental para essa população, uma vez que, apesar das diferenças estatísticas, estudos epidemiológicos brasileiros apontam que 10 a 20% das crianças e adolescentes apresentam algum tipo de transtorno mental (Vieira, Estanislau, Bressan & Bordin, 2014). As ações de promoção e prevenção vêm apresentando resultados positivos, e os benefícios a elas associados também já foram apontados, como redução de custos com o tratamento remediativo, o impacto a respeito de uma população mais abrangente, favorecimento da identificação precoce de transtornos e a possibilidade de obter sucesso com intervenções simples (Bressan, Kieling, Estanislau & Mari, 2014). Considerando-se a realidade latino-americana, a discussão da saúde mental infantil torna-se ainda mais relevante, uma vez que as condições de vida nesses países, marcados pela situação de pobreza de grande parte da população, impõem desafios à saúde mental das crianças, como a dificuldade de acesso a serviços básicos, a necessidade de iniciar a vida laboral ainda na infância para contribuir com a renda familiar ou a necessidade de assumir afazeres domésticos, como cuidar dos irmãos mais novos (Belfer & Rodhe, 1995; Lara et al, 2012).

Diante do exposto, objetiva-se, mais especificamente, discutir o redimensionamento do conceito de saúde mental e seus desdobramentos no âmbito da saúde mental infantil, bem como suas possíveis implicações educacionais.

 

Saúde Mental na Infância: contextualização histórica, perspectivas e desafios

Atualmente, a saúde mental de crianças e adolescentes está em pauta nos debates de diversos campos da saúde. Além disso, é alvo das políticas públicas brasileiras, conforme Portaria nº 3.088 de 23/12/2011 do Ministério da Saúde, a qual compreende que esse público necessita de um atendimento especializado, que leve em consideração o perfil e as necessidades dessa faixa etária. No entanto, a saúde mental infantil passou por um longo percurso de descaso e marginalização e, portanto, a construção de estratégias destinadas a esse público configura-se como um desafio recente (Ribeiro, 2006; Cunha & Boarini, 2011)

À época do Brasil colonial, por exemplo, as taxas de mortalidade infantil eram altas, muitas crianças eram abandonadas; outras eram submetidas a autoridades muito rígidas e severamente castigadas, o que culminava no surgimento de problemas emocionais (Ribeiro, 2006). Este quadro caracterizava uma situação de negligência e descaso com a infância, a qual só começaria a se modificar, segundo o referido autor, no final século XIX, quando os médicos higienistas passaram a criticar essa situação e a defender melhores condições de saúde e de vida para as crianças. É a partir dessas reivindicações por um cuidado maior com a infância que surgem, durante o século XX, os primeiros espaços em hospitais psiquiátricos destinados exclusivamente ao público infantil. Surgem também outras instituições que, pode-se considerar, estavam preocupadas com a saúde mental das crianças, como as clínicas de orientação infantil e os laboratórios e institutos de Psicologia (Cunha & Boarini, 2011). Estes espaços visavam prevenir o surgimento de transtornos mentais e promover o reajustamento das crianças à escola. Ribeiro (2006) cita em seu trabalho diversas instituições (como o Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico e o Instituto Pestalozzi) e pesquisas conduzidas à época que evidenciam a estreita relação entre a saúde mental e a educação desde o início do século XX, como o de Vieira de Mello, "Débeis mentais na escola pública", publicado em 1917.

Os estudos publicados nesse período refletem uma dicotomia hegemônica à época, a qual entendia que havia, de um lado, as crianças "normais", e, do outro, as "anormais". Tal categorização culminou na segregação das crianças consideradas doentes mentais, que passaram a frequentar escolas especiais. Essas escolas contavam com diferentes profissionais, como professores, médicos e psicólogos. Tal processo, ao mesmo tempo em que demonstra, de certa forma, uma preocupação em lidar de maneira mais adequada com as necessidades dessas crianças, caracteriza-se também por ser um processo excludente. O avançar da luta pelos Direitos Humanos concomitante aos estudos em relação à estigmatização que recaía por cima dessas crianças e da ineficiência desse modelo educacional segregador, fizeram com que o modelo da exclusão fosse repensado. Após um longo percurso, muda-se a forma de lidar com essas crianças e, atualmente, defende-se que a sociedade, objetivada em suas instituições, nas relações que se estabelecem em seu interior e em suas concepções, se transforme a fim de permitir e impulsionar a participação dessas crianças nas atividades sociais ordinárias, como nas escolas e no mercado de trabalho (Silva, 2009).

O que é relevante neste processo, é a mudança radical na maneira de compreender e lidar com a saúde mental infantil. Em detrimento de um modelo assistencial calcado em processos de exclusão, em uma restrita visão médico-psicológica, cujo objetivo era reajustar as crianças às normas sociais, passa-se a uma proposta de inclusão, pautada em uma visão mais abrangente dos problemas e dificuldades das crianças, cujo objetivo é prover recursos e condições para que essas crianças tenham uma boa qualidade de vida, sendo capazes de aprender, de serem atores sociais, de exercer tanto quanto possível sua autonomia e desenvolver suas capacidades (Brasil, 2005). Outro aspecto importante no que diz respeito às atuais concepções em relação à saúde mental é o abandono de uma concepção negativista, que compreendia a saúde mental como a ausência de um quadro psiquiátrico ou de sintomas psicopatológicos, e a adoção de uma definição que toma a saúde mental como dimensão da vida, vinculada à qualidade das relações que os sujeitos estabelecem com outras pessoas, consigo mesmo e com seu contexto de vida. No caso da saúde mental infantil, Fleitich-Bilyk, Cunha, Estanislau e Rosário (2014) afirmam que crianças consideradas saudáveis são aquelas que "apresentam desenvolvimento cognitivo, emocional e social satisfatórios para a idade" (p. 36), apontando também a importância de se levar em conta sua capacidade de lidar com as tensões cotidianas.

Neste cenário, indaga-se: como a saúde mental infantil tem sido tratada no Brasil no que diz respeito às estratégias que a tomam como alvo? Quais são os principais avanços e desafios a nível nacional?

Conforme Vieira et al. (2014), os estudos epidemiológicos brasileiros apontam índices de prevalência que variam de 10 a 20% de crianças e adolescentes com algum tipo de transtorno mental. O estudo de Feitosa, Ricou, Rego e Nunes (2011), destaca vários estudos nacionais Bahls, 2002; Paula, Duarte e Bordin (2007); Paula et al., 2008, entre outros, realizados em diferentes cidades do país, os quais chegam a resultados estatísticos diferentes. Os índices encontrados oscilam de acordo com a metodologia adotada em cada estudo, os quais podem diferir quanto a: a) escalas diagnósticas empregadas; b) público entrevistado (responsáveis, crianças ou professores); c) transtornos investigados (depressão, ansiedade, problemas comportamentais etc.) e d) público investigado (residentes em áreas urbanas, residentes em periferias, faixa etária). Os trabalhos de Feitosa et al. (2011) e de Couto, Duarte e Delgado (2008) apontam a necessidade de estudos epidemiológicos mais rigorosos e abrangentes, capazes de traçar um perfil mais consistente de crianças e adolescentes que vivenciam algum transtorno mental. Apesar das divergências estatísticas, os resultados das pesquisas nacionais revelam índices preocupantes, os quais exigem estratégias à altura do problema.

Como salientam Couto e Delgado (2015), no Brasil, a saúde mental de crianças e adolescentes apenas recentemente tornou-se alvo das políticas públicas. Como dito anteriormente, no início do século XX surgiram as primeiras instituições preocupadas com a saúde mental desse público. No entanto, as propostas do Estado apresentavam caráter assistencial e pautavam-se em modelos institucionalizantes e disciplinares. Como apontam os autores acima referidos, o Estado brasileiro apresentou, ao longo dos anos, duas formas distintas de lidar com as crianças e os adolescentes, "uma mais tutelar, disciplinar e amparada na institucionalização (. . .) e outra, radicalmente diversa, baseada no princípio da proteção, na premissa da criança e do adolescente como sujeitos de direito e amparada na proposta do cuidado em liberdade" (p. 20).

A redemocratização do país e a Constituição de 1988 delimitam o período de transição entre esses dois modelos, no entanto, o marco inaugural de uma verdadeira preocupação com a saúde mental de crianças e adolescentes no Brasil, segundo os autores em questão, é a III Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), realizada em 2001, durante a qual essa temática é priorizada e colocada na agenda das políticas públicas. Consta, no relatório da III CNSM, item 166 (p.57), a seguinte proposta: "Construir uma agenda específica para crianças e adolescentes no campo da Saúde Mental, elegendo esta temática como o foco prioritário das discussões no ano 2002" (Brasil, 2002). Este mesmo relatório, no que tange às estratégias destinadas a esse público, aponta a necessidade de: a) implementar estratégias intersetoriais (em interlocução, dentre outros, com o setor da educação); b) implementar estratégias pautadas na construção da cidadania; e c) priorizar ações de desinstitucionalização. Posteriormente, em 2010, a IV CNSM-Intersetorial, reafirma a necessidade de se pensar em estratégias intersetoriais no campo da saúde mental, ampliando essa discussão e, mais uma vez, apontando a importância da participação da Educação na construção e na implementação de estratégias voltadas para a saúde mental de crianças e adolescentes.

Estas duas conferências evidenciam ainda outro aspecto fundamental a respeito da reorientação das políticas em saúde mental, aspecto este, crucial para os objetivos do presente trabalho: a preconização de ações de prevenção e promoção em saúde mental (Brasil, 2002, 2010). Mais especificamente, o relatório da quarta edição da conferência demonstra o reconhecimento do papel da escola na implementação de estratégias de prevenção, como observado, por exemplo, nos itens 812 (p. 131-132), que trata da prevenção ao abuso de drogas e no item 813 (p. 132), que aborda a questão da prevenção ao bullyng (Brasil, 2010). Observa-se, portanto, que a perspectiva atual no que diz respeito às políticas públicas, pressupõe estratégias territorializadas, desinstitucionalizantes, pautadas no cuidado em liberdade e constituídas por ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação. Nesse sentido, alguns desafios têm sido apontados, dentre os quais destacam-se: a implementação de programas intersetoriais, a superação da medicalização da infância, a formação de profissionais capacitados e a implementação de programas de prevenção e promoção (Couto & Delgado, 2015; Couto, Duarte & Delgado, 2008; Ferreira, 2015; Schneider, 2015).

Atualmente, a política de saúde mental de crianças e adolescentes é articulada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, dentre as principais direções apontadas para a consolidação dessa política está "a construção de estratégias para articulação intersetorial da saúde mental com setores historicamente envolvidos na assistência à infância e adolescência: saúde geral, educação, assistência social, justiça e direitos" (Couto et al, 2008, p. 391). Tal direcionamento evidencia a importância do envolvimento de outros setores, o que, segundo os mesmos autores, não acontece de forma satisfatória, uma vez que se observa ordinariamente uma ação isolada e fragmentada. Este desencontro, possivelmente, tem suas raízes no despreparo dos profissionais tanto do setor da saúde como de outros em lidar com questões relativas à saúde mental, trazendo empecilhos, cuja superação é condição necessária para a concretização da integralidade do cuidado em saúde, uma das diretrizes cruciais do SUS.

A formação e capacitação dos profissionais envolvidos na assistência à criança nos diversos setores têm sido destacada como necessidade urgente tanto para que as estratégias alcancem efetividade como para superar o fenômeno da medicalização da infância. Brzozowski e Caponi (2013) colocam que a "medicalização é o processo no qual problemas que não eram considerados de ordem médica passaram a ser vistos e tratados como problemas médicos" (p. 209). Diz respeito, portanto, a um entendimento dos acontecimentos da vida das pessoas a partir de uma lente médica. Como consequência, o saber médico adquire hegemonia sobre a concepção, explicação e tratamento dessas condições medicalizadas.

A infância, dentre outras etapas e processos da vida cotidiana, vem sendo alvo deste movimento. Uma das evidências que permite dimensionar a medicalização da infância é o relatório do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), o qual traz dados sobre o consumo de metilfenidato (psicoestimulante aprovado para o tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) no Brasil. Segundo este relatório, em 2009, o consumo médio mensal foi de 46.466 caixas, enquanto em 2011 este consumo aumentou para 101.071 caixas/mês (ANVISA, 2012). Aliado a este fato, observa-se também um grande número de crianças encaminhadas a ambulatórios de saúde mental pelas escolas, o que indica que dificuldades de aprendizagem e indisciplina na sala de aula têm sido frequentemente entendidas como um problema de saúde e/ou médico (Marçal & Silva, 2006).

Acredita-se, que a formação e capacitação de professores para lidar com a temática da saúde mental seja extremamente relevante, uma vez que esses profissionais acompanham longitudinalmente as crianças e, logo, o desenvolvimento psicossocial e cognitivo das mesmas (Bordini, Gadelha, Paula & Bressan, 2012). Por isso, defende-se que as escolas têm um importante papel a cumprir relativamente às questões de saúde mental durante a infância. Suas possibilidades e potencialidades serão aqui discutidas. Torna-se necessário definir, de modo preliminar, ações de prevenção e promoção em saúde mental e elucidar seus pressupostos.

 

Promoção e prevenção em saúde mental: implicações educacionais

O paradigma atual de promoção em saúde começa a ser delineado em 1974, no Canadá, com o Informe Lalonde,e ganha força no cenário internacional durante o final da década de 1980. Considerado o primeiro documento a utilizar o termo "promoção da saúde", o informe caracterizou-se por colocar em questão a hegemonia da perspectiva médica em relação ao enfrentamento dos problemas de saúde da população (Buss, 2003). À época, pensar em outra estratégia para lidar com essa problemática configurou-se como um desafio urgente, uma vez que o funcionamento dos sistemas de saúde baseados na remediação e reabilitação vinham apresentando altos custos e baixa resolutividade.

Apesar de seu caráter inovador e, certamente, fundamental para a posterior consolidação do conceito de promoção de saúde, o Informe Lalonde, segundo Buss (2003),apresentava diretrizes de promoção centradas nos estilos de vida e comportamentos individuais. Conforme o referido autor, a perspectiva recente, que fundamenta o presente trabalho, tem como alvo tanto as questões microssociais, como o estilo de vida e a rede comunitária da pessoa, quanto as macrossociais, como condições de moradia e trabalho, situação socioeconômica, condições de nutrição, condições de trabalho, poluição, saneamento, acesso à educação, entre outras, fundamentando-se no modelo dos determinantes sociais da saúde, anteriormente citado. Trata-se, portanto, de um posicionamento técnico e político, que, a partir do redimensionamento do conceito de saúde, passa a contar com a participação de diferentes setores para a promoção de saúde da população.

O campo da saúde mental, como aponta Schneider (2015), é influenciado pelas mudanças que se consolidavam no campo da saúde geral. Surgiram diferentes propostas, inicialmente na Europa e nos Estados Unidos, com o objetivo de contestar a hegemonia do saber psiquiátrico sobre as questões relativas aos transtornos mentais. Nesse sentido, cabe destacar a contribuição da Psiquiatria Preventiva Comunitária, responsável por cunhar o termo saúde mental e por propor uma perspectiva preventiva em relação ao adoecimento mental. Inicialmente, Gerald Caplan, expoente desse movimento, propôs a divisão de ações preventivas em três níveis: a) prevenção primária, a qual seria oferecida a toda a população e cujo objetivo era diminuir o surgimento de novos casos de transtornos mentais; b) prevenção secundária ou precoce, a qual seria direcionada às pessoas que já apresentassem indícios iniciais de transtornos mentais e c) prevenção terciária, a qual seria direcionada às pessoas que já apresentassem algum transtorno, com o objetivo de diminuir sua intensidade e duração e de evitar a reincidência do quadro em questão (Abreu et al., 2015).

Esta proposta pioneira, delineada em meados da década de 1960, sofreu críticas e modificações à medida em que o debate da prevenção e da promoção de saúde ganhava espaço no campo da saúde mental. Os principais avanços residem no reconhecimento de um continuum e da intersecção existente entre ações de promoção, prevenção e tratamento. O modelo atual propõe três categorias de ação: a) ações de promoção; b) ações de prevenção, as quais se subdividem em universal, destinadas a toda a população sem discriminar níveis de risco; seletiva, destinadas às pessoas que apresentam fatores de risco ao desenvolvimento de um transtorno; e indicada, destinadas às pessoas que já apresentam sinais iniciais de transtornos; e c) ações de tratamento, as quais oferecem serviços de assistência e cuidado às pessoas que já desenvolveram algum transtorno (Abreu et al., 2015; Bressan et al, 2014).

Cabe destacar, entretanto, que apesar de sua imbricada relação, promoção e prevenção são ações complementares compreendendo estratégias e objetivos diferentes. A prevenção tem a incumbência de evitar o surgimento de uma patologia específica e direciona-se principalmente às pessoas ou a grupos de pessoas. A promoção, por sua vez, é mais abrangente e "consiste em proporcionar à população as condições necessárias para melhorar e exercer o controle sobre sua saúde, envolvendo: paz, educação, moradia, alimentação, renda, ecossistema estável, justiça social e equidade" (Gonçalves, Catrib, Vieira, & Vieira, 2008, p. 182). Assim, as ações de promoção procuram fomentar os processos de saúde, enquanto ações de prevenção procuram agir antes do aparecimento da patologia, evitando seu surgimento (Czeresnia, 2003).

No âmbito da saúde mental, Abreu et al. (2015) traçam uma diferença importante entre programas de promoção e programas de prevenção, a saber: os programas preventivos concentram-se em metas distais, podendo ser avaliados apenas após decorrido tempo suficiente para mensurar se a intervenção preveniu, de fato, o surgimento do quadro que se pretendeu evitar. Por outro lado, os programas de promoção podem apresentar resultados positivos de maneira imediata, uma vez que suas metas são proximais. Como exemplo, pode-se pensar em um programa de prevenção que tem como objetivo diminuir a ocorrência de quadros de bullyng na escola, dado seu impacto na saúde mental da vítima. O programa pode abarcar, por exemplo, o desenvolvimento da empatia e de habilidades socioemocionais, o que, pode apresentar impactos positivos mais proximais no comportamento dos alunos. No entanto, para saber se o programa cumpriu seu propósito preventivo, é preciso acompanhar ao longo dos anos a incidência de casos de bullyng e de violência na escola, como uma das estratégias avaliativas.

A participação da escola na promoção de saúde mental pode ser encontrada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a qual assume que a mesma deve promover o desenvolvimento global das crianças. No artigo 29, afirma o compromisso da educação infantil com o desenvolvimento integral das crianças de até cinco anos, "em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social" (Brasil, 1996). Posteriormente, em seu artigo 36, parágrafo 5º, destaca que os currículos do ensino médio devem "considerar a formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado ... para a sua formação nos aspectos cognitivos e socioemocionais" (Brasil, 1996). Observa-se, a partir desses trechos, uma abertura à implementação de estratégias de promoção e prevenção em saúde mental, as quais podem contemplar, entre outros, os mencionados aspectos cognitivos e socioemocionais. O compromisso da escola com a promoção de saúde é reiterado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) referentes às quatro primeiras séries do ensino fundamental, onde afirma-se sua responsabilidade em desenvolver nas crianças atitudes positivas com relação à própria saúde e à saúde da comunidade (Brasil, 1997). Considera-se que tal incumbência não é fortuita, pois há inúmeros motivos que convocam a escola a se comprometer com os processos de saúde.

No artigo intitulado "A saúde na escola: um breve resgate histórico", Figueiredo, Machado e Abreu (2010) demonstram que a proposta de se trabalhar saúde na escola não é novidade. Segundo os autores, a partir de 1850 surgiram os primeiros estudos com a temática da saúde nas escolas brasileiras. Posteriormente, no início do século XX, período de desenvolvimento de muitas epidemias, surgem propostas de inspeção das condições de higiene e de proposição de regras nas escolas. Ao longo do século, com as mudanças na forma de compreender os processos de saúde, as propostas vão se modificando, até que a partir do final da década de 1980 a temática da promoção da saúde ganha espaço nas escolas brasileiras. É neste contexto que crianças e adolescentes passam grande parte de sua vida, o que coloca os educadores em uma posição privilegiada, dentre outras tarefas, para a identificação precoce de problemas e dificuldades e para a realização de intervenções adequadas a cada etapa do desenvolvimento (Vieira et al., 2014). Destaca-se também, o potencial que as escolas têm de atingir um grande número de crianças, uma vez que, no Brasil, a legislação prevê a obrigatoriedade da educação básica, dos 4 aos 17 anos (Brasil, 1996).

A escola pode contribuir de diferentes maneiras para a promoção de saúde mental, seja consolidando-se como um ambiente saudável e protetor, seja preocupando-se em desenvolver nas crianças recursos que as ajudem a lidar com os desafios cotidianos e que permitam a elas se perceberem como protagonistas dos processos de saúde. Entende-se a escola como um espaço preocupado com o desenvolvimento da autonomia de seus membros, com a concretização de relações democráticas e solidárias, por meio das quais são estimuladas a reflexão crítica, a valorização das relações humanas e a participação social (Alves, Aerts, & Câmara, 2015). Sabe-se que as vivências no espaço escolar influenciam no estabelecimento de padrões de relacionamento que as crianças estabelecem entre si e com o mundo (Lara et al., 2012), portanto, trabalhar o desenvolvimento de estilos de vida saudáveis neste espaço é fundamental. É necessário, entretanto, certa cautela ao abordar a questão dos estilos de vida para que não seja dada ênfase excessiva nas pessoas em detrimento de outras circunstâncias determinantes que extrapolam o âmbito individual (Alves et al., 2015), como os processos de exclusão, a desigualdade, o desemprego etc.

Martínez (1996) destaca que, inicialmente, a escola cumpre um importante papel ao promover uma formação cultural que permita às crianças compreenderem as diferentes mensagens em relação à saúde que circulam nos meios de comunicação. Além dessa formação fundamental, para a autora a escola pode abordar diretamente temáticas relativas à saúde/saúde mental, ao inserir nos currículos temas referentes ao corpo humano e ao seu funcionamento; aos riscos à saúde e àquilo que a potencializa; à importância de determinados hábitos para a saúde, como boa alimentação e prática de esportes, entre outros. A autora destaca também a centralidade que o trabalho tem na vida das pessoas, cabendo à escola a preparação para que a inserção no mundo do trabalho seja satisfatória, tanto como um processo de realização humana quanto como uma forma de garantir recursos básicos para a existência, sem os quais a saúde é grandemente prejudicada.

No que diz respeito à promoção de saúde mental, algumas ações se propõem a fortalecer aspectos cognitivos, sociais e emocionais, as quais pretendem culminar no aumento do bem-estar. Uma das abordagens atuais que pode fundamentar esse tipo de intervenção é a perspectiva do desenvolvimento positivo (Damon, 2004). Seu caráter ecológico e focado na relação criança-comunidade contribui para que o indivíduo não seja a única faceta a ser considerada. A proposta dessa abordagem assume que todas as crianças e jovens têm potencialidades que podem ser desenvolvidas, trazendo benefícios tanto para as crianças quanto para a comunidade em que vivem. A perspectiva do desenvolvimento positivo, no entanto, entende que o aperfeiçoamento dessas capacidades não depende unicamente da criança, mas de um contexto favorável, que permita a construção de identidades e oportunidades de pertencimento, que permita às crianças desenvolverem habilidades, integrando assim os esforços das famílias, das escolas e de demais membros da comunidade (Damon, 2004; Menezes & Miranda, 2015).

 

Programas de prevenção e promoção em saúde mental na escola

Nesta perspectiva proativa, torna-se relevante destacar alguns programas de prevenção e promoção voltados para a saúde mental na escola. No contexto internacional, por exemplo, destaca-se o estudo de metanálise de Durlak et al. (2011). Os autores realizaram uma busca nas bases de dados PsycInfo e Medlinee de resumos de dissertações, utilizando as seguintes palavras chaves:aprendizagem socioemocional, competência, recursos, promoção da saúde, prevenção, desenvolvimento positivo da juventude, habilidades sociais, autoestima, empatia, inteligência emocional, resolução de problemas, resolução de conflitos, enfrentamento, redução de estresse, crianças, adolescentes, intervenção, estudantes e escolas. Foram identificados 213 trabalhos que avaliaram os efeitos de Programas de Aprendizagem Socioemocional (ASE) realizados na escola, em caráter universal, ou seja, sem discriminar crianças que já apresentavam dificuldades comportamentais, emocionais ou acadêmicas. Os programas contemplaram, ao todo, 270.034 crianças e adolescentes, com idade entre 5 e 18 anos, sendo selecionados apenas trabalhos em língua inglesa, realizados até dezembro de 2007. Os resultados indicaram um aumento expressivo de publicações a partir da década de 1990, uma vez que as últimas duas décadas concentraram 75% dos trabalhos encontrados. Sobre os impactos dos programas, os autores salientam que as crianças que passaram por programas com foco na ASE em comparação àquelas que não passaram, apresentaram melhora nas habilidades socieomocionais e em comportamentos pró-sociais, além de menores dificuldades comportamentais e emocionais. Apenas 33 trabalhos realizaram pesquisa de follow up no mínimo seis meses após o fim da intervenção, o que indica escassez desse tipo de avaliação e a necessidade de incorporá-la ao planejamento dos programas, a fim de que os impactos possam ser dimensionados com mais precisão ao longo do tempo. Os autores destacam que os ganhos da intervenção diminuem ao longo do tempo, no entanto, continuam estatisticamente significativos. Diante da relevância dos benefícios para os alunos, argumenta-se a necessidade de que esses programas sejam contínuos nas escolas, a fim de que os resultados possam perdurar ao longo do tempo. Outra análise pertinente e de interesse para o âmbito escolar realizada pelos autores, focaliza a avaliação da influência do formato do programa sobre os resultados, comparando três tipos de formatos: conduzido pelos professores no cotidiano da sala de aula; conduzido por pessoas de fora da escola, como pesquisadores, também em contexto de sala de aula, e aqueles que aliaram a condução dos professores em sala de aula ao treinamento de pais ou a projetos mais amplos na escola toda, caracterizando-se como programas multicomponentes. Os resultados indicam que os programas conduzidos pelos professores apresentaram impactos em todos os aspectos avaliados, expondo, portanto, resultados mais abrangentes em comparação aos demais formatos, os quais restringiram seus impactos a apenas algumas categorias avaliadas. Essa evidência aponta para a importância de conscientizar os professores de seu importante papel como agentes promotores de saúde mental, indicando a necessidade de que os mesmos sejam capacitados para abordar tais questões.

No Brasil, a pesquisa em prevenção em saúde mental também vem ganhando espaço. A temática tem sido cada vez mais debatida e investigada, predominantemente pelo aspecto teórico e a partir de estudos exploratórios, e ainda timidamente a partir de estudos empíricos com intervenções sistematicamente avaliadas em relação à efetividade e eficácia dos programas, em sua maioria, realizados no contexto escolar (Abreu & Murta, 2012; Abreu, Miranda, & Murta, 2016). A revisão realizada por Murta (2007) objetivou identificar estudos publicados nos últimos 30 anos sobre prevenção em saúde mental para crianças e adolescentes bem como discutir orientações para a implementação de programas preventivos, a fim de transformar a "tecnologia de pesquisa em serviços comunitários" (p.1). A discussão realiza-se a partir de estudos estrangeiros e nacionais, no entanto, a autora aponta que ainda há poucos estudos brasileiros relatando a implementação de programas preventivos e que incluam a avaliação de sua efetividade. As lições apontadas pela autora salientam que: a) a prevenção em saúde mental pode ter por objetivo a redução de problemas ligados à saúde mental (estresse, ansiedade, abuso de drogas) ou a promoção de competências a ela associadas (como habilidades sociais e resolução de problemas). Os programas variam conforme o público alvo (podendo caracterizar-se como universais, seletivos e indicados) e conforme o nível da intervenção (contextos ou pessoas); b) os programas devem ser baseados em teoria, uma vez que a prevenção em saúde mental exige clareza das condições de risco e proteção, e da multideterminação dos processos de saúde mental; c) as intervenções devem ser pensadas a partir da identificação das reais necessidades da comunidade e devem contar com sua colaboração no planejamento e implementação dos programas; d) devem basear-se em evidências empíricas, feitas as necessárias adaptações ao contexto atual de implementação, o que evidencia a importância de tais programas serem avaliados e disseminados; e) devem ser acompanhados durante sua implementação, para que dificuldades e sucessos ao longo das intervenções possam ser identificados, e devem ter seus resultados avaliados. Tais diretrizes são corroboradas por estudos de revisão e/ou metanálise realizados nos últimos anos (como exemplo, ver Durlak et al., 2011; Weare & Nind, 2011). Grande parte dos programas de prevenção citados nas metanálises são realizados no contexto escolar, indicando, portanto, que essas diretrizes são úteis para orientar a implementação de programas preventivos nas escolas.

Murta (2007) destaca ainda qual o percurso a ser percorrido pelas pesquisas nacionais para que programas de prevenção possam ser incorporados a diversos serviços comunitários, como a replicação de programas bem avaliados que apresentaram resultados positivos; planejamento de programas abrangentes, que envolvam as crianças e os adolescentes, mães e pais, professores e a comunidade, integrando alguns programas nacionais já existentes; aumento de estudos e eventos científicos na área e a apropriação dessa produção pelas políticas públicas. Segundo a autora, esse percurso pode ser facilitado por algumas condições, como currículos de formação voltados para o ensino de práticas preventivas e comunitárias e a existência de recursos financeiros que fomentem a pesquisa e a implementação de programas nessa área.

Abreu, Miranda e Murta (2016) investigaram as características da produção brasileira, visando descrever o perfil dos estudos de avaliação dos programas preventivos por meio de uma revisão sistemática realizada a partir das bases SciELO e PePSIC. Focalizou-se estudos envolvendo programas de prevenção sistematicamente avaliados, cujo objetivo era reduzir desfechos negativos em saúde mental, sendo identificados seus autores e investigados seus currículos, a fim de encontrar outros trabalhos com o mesmo perfil. No total, foram identificados 25 artigos os quais descreviam um total de 42 intervenções. Um dado interessante diz respeito à escolha do espaço educacional para a implementação de programas preventivos: 62,79% foram realizados em escolas, caracterizando, por conseguinte, a predominância de crianças e adolescentes como público alvo. Destaca-se também, no contexto nacional, a preferência por programas com foco combinado, ou seja, centrados tanto no público-alvo quanto no ambiente: das 42 intervenções, 28 incluíam intervenções com crianças e adolescentes e com pessoas relevantes, como, por exemplo, intervenções com pais.

Quanto às condições que se pretendia prevenir, todos os programas apresentaram a característica de não elegerem um transtorno mental como desfecho a ser evitado, mas, sim, comportamentos de risco à saúde mental, com a predominância das seguintes temáticas: prevenção a problemas de comportamento (61,36% das intervenções), prevenção à violência (13,64%), ao abuso sexual (9,09%) e ao abuso de álcool e drogas (6,82%) (Abreu et al., 2016). As autoras salientam que, em sua maioria, os programas nacionais alcançaram o objetivo almejado, culminando na redução de fatores de risco à saúde mental, apontando, entretanto, limitações nas metodologias empregadas (poucos estudos incluíram grupos controle, aleatoriedade no arranjo dos sujeitos). Ainda poucas pesquisas nacionais realizaram avaliações de seguimento, indicando que os impactos de programas preventivos a longo prazo permanecem pouco conhecidos em nosso contexto.

Observa-se, assim, que existem evidências dos impactos positivos de programas de prevenção e promoção em saúde mental no âmbito escolar. Alguns com ênfase nas crianças e outros mais abrangentes, contemplando demais participantes das instituições educativas, famílias e outros membros da comunidade. Salienta-se a importância de que esses programas sejam feitos a partir das necessidades identificadas em cada contexto, de forma participativa e que sejam avaliados durante sua implementação, logo após seu término e, ainda, decorrido um tempo maior após o fim da intervenção.

 

Considerações finais

A partir do exposto, observam-se duas importantes mudanças paradigmáticas bastante imbricadas, sendo que a primeira diz respeito ao surgimento da concepção de saúde mental para indicar uma dimensão complexa, multideterminada, que diz respeito ao bem-estar e à relação equilibrada entre o ser humano e as demandas socioculturais de seu entorno, em detrimento da concepção dedoença/transtorno mental, a partir da qual entendia-se a saúde como um estado caracterizado pela ausência de doença. O estabelecimento dessa perspectiva leva, consequentemente, à segunda mudança paradigmática anteriormente mencionada, envolvendo a maneira de lidar com a saúde mental, que vem se consolidando como um campo cada vez mais multidisciplinar, exigindo, por sua vez, esforços de diferentes segmentos. Se antes o foco dos esforços recaía sobre a doença, sobretudo a respeito do seu tratamento, atualmente tais esforços concentram-se em impulsionar os processos de saúde e evitar o surgimento de problemas de saúde. Nesse sentido, as propostas de promoção e prevenção em saúde mental apresentam-se como estratégias mais adequadas e eficientes e menos onerosas humana e materialmente. Conclui-se destacando-se o papel da escola na promoção de saúde mental infanto-juvenil, dado o potencial fundamental dessa instituição para impactar positivamente a saúde de crianças e adolescentes.

A investigação dos efeitos positivos dos programas de prevenção e promoção em saúde mental tem sido apontada tanto a nível nacional quanto internacional, indicando que esses programas têm cumprido seu objetivo de potencializar a saúde mental de crianças e adolescentes, alguns deles beneficiando também, de forma indireta, seu desempenho acadêmico. Constata-se no Brasil, um crescimento das pesquisas na área nas últimas duas décadas, ainda que a maior parte dos estudos seja de caráter teórico, com poucas publicações detalhando a implementação e avaliação dos programas, situação que dificulta a disseminação dos mesmos e sua inserção em políticas públicas. Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de mais pesquisas com intervenção nacionais, bem como pesquisas avaliativas que contemplem, em sua implementação, avaliações de seguimento, para que os impactos desses programas ao longo do tempo possam ser dimensionados com mais precisão. Pesquisas com esse enfoque têm grande potencial de contribuir para a difusão de programas e para o planejamento de políticas públicas baseadas em evidências, modalidade de intervenção ainda pouco recorrente no Brasil.

Reitera-se, neste trabalho, que a escola deve estar preocupada com o desenvolvimento integral de seus membros, com vistas à promoção da autonomia e da reflexão crítica, potencializando a saúde mental em seu interior e, mais além, também na comunidade em que se situa, uma vez que dela faz parte e com ela atua.

 

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Recebido em: 11 de novembro de 2017
Aprovado em: 30 de julho de 2020

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