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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.51 São Paulo jul./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.23925/2175-3520.2020i51p116-126 

ARTIGOS

 

Análise da construção da autonomia infantil: interações entre crianças e professoras na educação infantil

 

Analysis of the construction of child autonomy: interactions between children and teachers in early childhood education

 

Análisis de construcción autonomía de hijo: interacciones entre los niños y los maestros de educación infantil

 

 

Adelaide Alves DiasI; Maria Fabrícia de MedeirosII

IUniversidade Federal da Paraíba - UFPB - João Pessoa - PB - Brasil; adelaide.ufpb@gmail.com
IIUniversidade Federal da Paraíba - UFPB - João Pessoa - PB - Brasil; fabriciamedeiros@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este estudo investigou as interações e afetividade entre professoras-criança e criança-criança e suas implicações para o processo da autonomia infantil. Observou-se a rotina diária de uma turma de Maternal 2, com 26 crianças de 3 anos, uma professora e uma monitora em um CREI - Centro de Referência em Educação Infantil, na cidade de João Pessoa-PB. A técnica empregada foi a de videogravação de episódios interativos. Os dados foram tratados por meio da análise microgenética, em que os episódios interativos foram divididos em 3 (três) tipos de díades: criança-criança, professoras-criança e criança-professoras. Os resultados indicam que as crianças resistiam e construíam sua autonomia entre os pares. É oportuno dizer que encontramos um ambiente com interações intercaladas entre afetivas e proporcionadoras da construção da autonomia (criança-criança) e outras disciplinadoras (professora ou monitora-criança).

Palavras-chave: Autonomia; Interações; Afetividade; Crianças; Educação Infantil.


ABSTRACT

This study investigated teacher-child and child-child interactions and affectivity and their implications of the process on child autonomy. It was observed the daily routine of a class of Kindergarden 2 with 26 children around 3 year old, a teacher and a monitor in a CREI - Reference Center in Early Childhood Education - in the city of João Pessoa-PB. The technique employed was the video recording of interactive episodes. The data were treated using microgenetic analysis, in which the interactive episodes were divided into 3 (three) types different parallels: child-child, child-teacher and child-teacher. The results indicate that children resisted and built their autonomy among peers. It is worth mentioning that we found an environment with interspersed interactions between affective and providing the construction of autonomy (child-child) and other disciplinarians (teacher or child monitor).

Keywords: Autonomy; Interactions; Affectivity; Children; Early Childhood Education.


RESUMEN

Este estudio investigó las interacciones y la afectividad entre maestras-niño y niño-niño y sus implicaciones para el proceso de autonomía infantil. Se observó la rutina diaria de una clase de Guardería con 26 niños de 3 años, una maestra y una monitora en un Centro de Referencia en Educación Infantil en la ciudad de João Pessoa-PB. La técnica empleada fue la grabación de video de episodios interactivos. Los datos se trataron mediante análisis microgenético, en el que los episodios interactivos se dividieron en 3 (tres) tipos de díadas: niño-niño, niño-maestras y maestras-niños. Los resultados indican que los niños resisten y construyen su autonomía entre sus compañeros. Vale la pena mencionar que encontramos un ambiente con interacciones intercaladas entre afectivas y proporcionadoras de construcción de autonomía (niño-niño) y otras disciplinadoras (maestras o monitora - niños).

Palabras clave: Autonomía; Interacciones; Afectividad; Niños; Educación infantil.


 

 

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa visou analisar as interações e relações de afetividade apresentadas cotidianamente entre professoras-criança e criança-criança e suas implicações para a construção da autonomia infantil no contexto de uma instituição pública municipal, denominada Centro de Referência em Educação Infantil - CREI, de João Pessoa, PB.

Partiu-se do pressuposto que o desenvolvimento humano não pode ser compreendido apenas pelo estudo dos seus fatores biológicos, mas também e, sobretudo, pelas interações estabelecidas no decurso da vida do indivíduo.

A criança desde o nascimento está em constante interação com o adulto que deve buscar frequentemente estimulá-la de forma a incorporá-la em sua cultura, que é repleta de significados acumulados historicamente. Primariamente a criança responde através de processos naturais derivados particularmente da herança biológica inerentes a todo ser humano; aos poucos e, pela mediação de adultos, as "funções psicológicas complexas" (Vygotsky, 1989, pp. 70-74) começam a tomar forma. Somente à medida que a criança cresce é que esses processos vão acontecendo dentro das próprias crianças e não mais através do adulto como transcorria inicialmente, assim chamados por Luria (2006, p. 27) de "processos interpsíquicos", ou seja, que acontecem dentro da criança através da internalização dos "meios historicamente determinados e culturalmente organizados".

Branco e Pinto (2009, p. 513) afirmam que: "o processo de desenvolvimento da criança envolve, portanto, uma contínua negociação de significados entre os atores em interação, onde as mensagens culturais são interpretadas e reinterpretadas de forma ativa pelos indivíduos". Ou seja, a criança pequena desde que nasce demonstra potencialidades que se expandem a partir das interações sociais.

Ancoradas nos estudos de Vygotsky (1989) sobre o desenvolvimento da criança, destaca-se o papel da interação como essencial na construção do desenvolvimento humano, uma vez que é através das interações sociais, ou seja, através das relações com o outro e com o mundo, que se dá a construção da pessoa.

O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de outra pessoa. Essa estrutura humana complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social. (Vygotsky, 1989, p. 33)

Assim, segundo Vigotsky (1989), nos primeiros meses de vida a atividade da criança é determinada pelo processo de maturação do organismo que acontece de forma individual, fortemente influenciada pelo uso que faz dos instrumentos e signos, e estes são os mediadores das interações das crianças com o mundo ao redor; portanto, é através do contato com o meio social cultural e histórico que a criança se desenvolverá. (Vigotsky, 1989: 23).

A criança é um ser de natureza singular, que pensa e sente o mundo de um jeito próprio, nas interações que se estabelecem desde muito cedo, com a família inicialmente e posteriormente na creche, em que revelam empenho para compreender o mundo que as circundam, as relações contraditórias que presenciam e é através das brincadeiras que revelam "as condições de vida a que estão submetidas e seus anseios e desejos" (Brasil, RCNEI, vol. 1, 1998, pp. 21-22).

As interações que acontecem entre criança-adulto e entre criança-criança imprimem um papel preponderante na construção da autonomia infantil. O desenvolvimento da capacidade de se autogerir e administrar decisões de modo a respeitar regras e valores levando em consideração seu querer e o querer do outro, pode ser estimulada em espaços da creche e pré-escola, visto que são ambientes em que acontecem interações em uma amplitude considerável, por serem heterogêneos, envolvendo histórias, culturas, crenças e vivências particulares bem diferentes.

De acordo com as DCNEIs, as propostas pedagógicas devem respeitar, entre outros, princípios "Éticos, da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito ao bem comum, ao meio ambiente e às diferentes culturas, identidades e singularidades" (Brasil, DCNEI, 2009, p. 16).

Neste contexto, torna-se imperativo que o professor envolva tais aspectos em sua prática cotidiana, visando tanto à promoção quanto o aprimoramento das interações afetivas entre professor-criança e criança-criança, bem como desenvolver as habilidades das crianças auxiliando-as a ascender ao patamar do autogoverno, quando conseguem fazer suas escolhas e controlar seus comportamentos e atitudes nos mais diversos ambientes.

Segundo Tardeli (2003), nas interações criança-professor, o comportamento de ambos é impulsionado à mudança e à adaptação por força da necessidade de convivência, que resulta na interação, possibilitando a expressão afetiva, intelectual e moral. As interações que acontecem entre professores e crianças são muito mais que mero "contrato" profissional/pedagógico; na realidade se estabelece aí "uma relação direta, em que ambos compartilham histórias de sucessos e frustrações, de opressões e de incentivos", criando-se consequentemente "bases para o desenvolvimento das atitudes de dependência ou de autonomia" (Tardeli, 2003: 104). Concordando com essa concepção, Dias (2005) afirma que:

O sujeito autônomo [...] não se constitui de forma isolada, independentemente das condições sociais, históricas, políticas, econômicas e culturais. Ao contrário, define-se como aquele que, dialógica e dialeticamente, é capaz de articular, de forma crítica e ativa, vontade subjetiva (individual e pessoal) e vontade objetiva (instituições sociais e cultura), questionando, refletindo, respondendo, influenciando e sendo influenciado pelas ocorrências do seu ambiente, construindo e reconstruindo dinamicamente as experiências que vive tanto no plano individual quanto coletivamente (Dias, 2005, p. 371).

Nessa ótica, o(a) professor(a), ao interagir com as crianças pequenas pode proporcionar espaço de convivência alicerçado no diálogo e respeito para que as crianças sintam-se acolhidas e sintam-se à vontade para participar ativamente do cotidiano da creche, podendo fazer escolhas, opinar sobre as regras que devem ser estabelecidas em conjunto e não impostas horizontalmente. Para tanto, deve-se considerar que as crianças paulatinamente vão "percebendo-se e percebendo os outros como diferentes, permitindo que possam acionar seus próprios recursos, o que representa uma condição essencial para o desenvolvimento da autonomia" (Brasil, RCNEI, 1998, p. 14).

Souza e Ortega (2015), ao analisarem a importância das interações sociais interações sociais no contexto da educação infantil, mediante exame de documentos oficiais e de levantamento de teses e dissertações, concluem que elas são relevantes para o desenvolvimento integral das crianças e para a qualidade da educação infantil, com destaque para o papel do professor nessas relações.

 

MÉTODO

Participantes

Os sujeitos desta pesquisa foram a professora, a monitora e as crianças de 3 (três) anos da turma do Maternal 2. Os adultos e os responsáveis pelas crianças aceitaram participar da pesquisa e assinaram Termos de Assentimento e Consentimento Livre e Esclarecido. A professora titular da turma pesquisada tinha 24 (vinte e quatro) anos, possuía Licenciatura em Pedagogia, atuava no magistério há 7 (sete) anos e há 1(ano) e 5 (cinco) meses trabalhava naquele no CREI. A monitora tinha 56 (cinquenta de seis) anos, formação incompleta em Pedagogia, atuante no magistério há 20 (vinte) anos e 5 (cinco) meses e no CREI há 1(ano) e 5 (cinco) meses. Ambas são Prestadoras de Serviço (PS) contratadas pela Secretaria Municipal de Educação, cumprem carga horária diária de 8 (oito) horas em tempo integral, totalizando 40 (quarenta) horas semanais. A turma do Maternal 2 era composta por 26 (vinte e seis) crianças, sendo 16 (dezesseis) meninos e 10 (dez) meninas, todos com idade de 3 (três) anos, variando apenas os meses, mas nenhum deles tinha 4 (anos) completos até a finalização das observações. Duas dessas crianças aparentemente possuíam algum tipo de necessidade especial, mas sem diagnóstico. Os nomes de todos os sujeitos foram preservados, tendo sido utilizados apenas nomes fictícios.

Local

O campo de pesquisa foi um Centro de Referência em Educação Infantil-CREI, que é uma instituição pública municipal, fundada em 04 de agosto de 2014, com área de 1.575 metros quadrados (m²). O CREI funciona de segunda-feira à sexta-feira em horário integral, com entrada às 7 horas e tolerância de 15 minutos, saída às 17 horas e tolerância de 15 minutos. Atende a 92 (noventa e duas) crianças de 0 a 3 anos, havendo 115 (cento e quinze) na lista de espera até nosso último dia em pesquisa de campo no CREI.

Procedimentos para coleta de dados

A observação participante foi realizada entre os meses de fevereiro e setembro de 2017 e aconteciam sem dia ou horário previamente agendados. As videogravações foram feitas em diversos momentos (brincadeiras livres e/ou dirigidas, atividades pedagógicas, hora da alimentação e banho, acolhida pela manhã e despedida à tarde) e episódios aleatórios do cotidiano das crianças nos quais identificamos alguma manifestação quanto aos pontos investigados.

A definição de recursos e procedimentos que abarcassem a complexidade do tema em questão fez-se primordial; em vista disso, a utilização de câmera para videogravar as observações foi o que se mostrou mais adequado, visto que nos permitiu captar elementos verbais e não verbais, entonação, gestos, expressões faciais, acontecimentos fugazes e que provavelmente não se repetiriam, entre outros elementos sutis que vão além da fala e apenas o olhar do pesquisador certamente não apreenderia.

Procedimentos para análise dos dados

Diante de um vasto material filmado [12 episódios, totalizando quase 12 (doze) horas e 2,09 GB (gigabytes) videogravado], foi necessário definir qual olhar inicial seria dado aos vídeos, com o objetivo de possibilitar as análises. Dos 12 episódios, fizemos o recorte de 3 (três) deles, representando 4 minutos e 47 segundos de videogravação. O critério de escolha dos episódios foi de contemplarem 3 (três) categorias de análise: criança-criança, professora ou monitora-criança e criança-professora ou monitora, buscando visualizar possíveis interações iniciadas tanto pela professora, pela monitora ou pela criança, direcionadas entre si.

 

Resultados e Discussão

Episódio 1 - "Fazendo uma cobra bem grande": Interação criança-criança

O episódio "Fazendo uma cobra bem grande", teve a duração de 1 minuto e 19 segundos, o local da filmagem foi a sala de aula, os participantes da interação foram: Alisson, Ciro, Carlos e Vítor.

Transcrição do episódio: as crianças estão na sala brincando com massa de modelar, Alisson fez uma "cobra bem grande", chamando bastante atenção dos colegas; Ciro aproximou-se com seu pedaço de massa de modelar e pediu que Alisson fizesse uma igual para ele, este aceitou o pedido e começou a enrolar a massa com força sobre a mesinha. Ciro pegou nas duas pontas da "cobra" já pronta do colega e pareceu analisar o tamanho e disse: "minha peba (este foi o nome utilizado pela criança que nos pareceu denominar a cobra pelo contexto da fala) é gande (grande)1", dando batidinhas com os dedos na "cobra" do colega. Deu uma olhadinha para a pesquisadora e se voltou para o colega que, fazendo força, enrolava a massa e dizia: "se você destuir (destruir) eu não faço mais não". Ciro, encostado na mesinha em silêncio, contemplava o colega fazendo seu brinquedo. Alisson continuava concentrado, mas levantou o olhar rapidamente para Ciro e falou: "não destua (destrua) viu?"; Ciro, então, afastou-se um pouco da mesinha e disse: "bem gande (grande) assim ó", mostrando o tamanho com as mãos, deixando os braços totalmente esticados. Alisson, sem levantar o olhar, respondeu "tá". Carlos aproximou-se da mesa em que estavam Alisson e Ciro e perguntou "que é isso?", apontando para a "cobra grande" de Alisson que já estava pronta, mas não obteve resposta de nenhum dos dois colegas que já interagiam e, portanto, ficou na mesa ao lado, dependurado, balançando as pernas. Outra criança (Vítor) aproximou-se de Ciro e ficou ao seu lado de pé, observando Alisson enrolar a massa de modelar. Vítor tenta pegar na mão de Ciro, dizendo "vá sentar" e olhou para a monitora como se esperasse esta confirmar sua fala, já que ela havia alertado outro colega há poucos segundos, dizendo: "devagar, viu Carlos, senão vai sentar", mas Ciro puxou a mão tentando se soltar. Vítor falou novamente "vá sentar" e tentou pegar a mão do colega outra vez, mas Ciro deu dois tapinhas no ar e continuou a olhar como se nada tivesse acontecido. Vítor só desistiu e se afastou quando a monitora perguntou: "Vítor, o que tá havendo?". Ciro colocou uma mão em cima da outra e fez um gesto com as mãos como se estivesse enrolando e ensinando Alisson como fazer, já que este usava as mãos separadas para enrolar a massa e não uma em cima da outra como mostrava Ciro, dizendo: "assim ó", chamando a atenção de Alisson para que visse, demonstrando inquietude que podia ser pelo desejo dele mesmo fazer "a cobra", ou para que o colega acabasse logo de fazê-la. A "cobra" partiu-se em duas e Ciro repetiu novamente o gesto com as mãos, ensinando como o colega devia fazer a "cobra" e falou: "assim ó, assim ó". Alisson continuava concentrado e levantou apenas o olhar sem movimentar a cabeça. Ciro colocava a mão em cima de um dos lados da "cobra", visivelmente na tentativa de ajudar Alisson, já que parecia que quando ele enrolava uma extremidade a outra balançava podendo partir-se novamente. Alisson retirou a mão do colega, dizendo "sai", Ciro repetiu o gesto com as mãos levando cada uma às extremidades do corpo e disse: "bem grande assim, ó", enquanto enrolava a massa freneticamente. Alisson levantou a cabeça rapidamente e disse "é". Carlos, que estava sempre ali por perto observando e que anteriormente já havia feito pergunta ao colega sobre o brinquedo em voga, aproximou-se novamente, encostou-se na mesinha ao lado, olhou um instante e pegou por uma das pontas a "cobra" que estava sendo feita por Alisson e saiu correndo pela sala. Alisson deu uns pulinhos, gritando "é de Ciro, é de Ciro", mas permaneceu em seu lugar à espera do desfecho da cena. Parece não ter ido à busca da "cobra" que fazia para o colega porque precisava tomar conta da sua "cobra" que permanecia intacta na mesinha, ao contrário de Ciro que correu atrás de Carlos, mas parou no caminho e chamou a monitora, acenando com a mão.

Discussão do episódio

O episódio interativo aconteceu na maior parte do tempo em uma díade, apesar de, no decorrer da interação, se inserirem outras duas crianças. O recorte do vídeo deu-se no momento que a monitora foi inserida no episódio por Ciro, que acena pedindo ajuda para pegar a "cobra" de massa que Carlos pegou.

O episódio iniciou-se quando Alisson fez uma "cobra" grande com a massa de modelar que havia sido entregue pela monitora para todas as crianças brincarem livremente; no contexto observado entendemos por atividades "livres" os momentos que a professora não estava ensinando algo que faz parte do planejado, muito embora, ainda assim, as crianças nem sempre podiam escolher como e com o que brincar.

A massa de modelar que foi entregue às crianças tornou-se um objeto significativo, com o qual a criança usou a imaginação e criou um brinquedo, mas não um brinquedo aleatório, e sim baseado na aula que fora dada naquela mesma semana em que se debateu sobre animais e entre eles estava a cobra, "réptil de vários tamanhos, porém geralmente o tamanho grande prevaleceu, com referências a picadas e em algumas espécies; o veneno foi destacado, que, por ser tão forte, pode até matar um ser humano" (Fala da professora Ana, registro feito no diário de campo).

O brinquedo construído por Alisson chamou atenção dos colegas, especialmente de Ciro, que pareceu enxergar em Alisson o único capaz de fazer outra "cobra" para ele, da mesma forma que fizera a primeira que é tomada como parâmetro de algo grande e legal, deixando, portanto, expresso em sua fala, ações e expressões corporais que nos pareceu ser de admiração e sentimento de capacidade superior que atribui ao colega Alisson, ao dizer: "bem gande assim ó... igual a sua".

Duarte, Alves e Sommerhalder (2017, p. 170), ao analisarem interações entre crianças em contextos de brincadeira numa instituição de educação infantil em São José do Rio Preto - SP, constataram que as relações crianças-crianças são fundamentais para o desenvolvimento de suas identidades pessoais, uma vez que que "elas próprias organizam suas brincadeiras, escolhem brinquedos e parceiros para os atos lúdicos, ensinam, aprendem, criam regras, inventam novas brincadeiras, enfim, governam suas próprias brincadeiras".

Evocamos Vygotsky (1989, p. 109) para explicar que: "[...] é enorme a influência do brinquedo no desenvolvimento de uma criança". Isso ficou explicitado durante todo o episódio em que as crianças demonstraram o quanto estavam concentradas e levavam a sério seu propósito de construir o brinquedo. Elas debatiam, elaboravam regras entre elas, conforme confirmamos na fala de Alisson: "se você destuir, eu não faço mais não". Nisso, Ciro entendeu a condição e demonstrou comportamento de aceitação, repetindo sua fala anterior: "bem gande assim ó", confirmando, portanto, que mesmo diante da regra criada pelo colega queria sua cobra grande.

Em alguns momentos Ciro tentava ensinar o colega como se fazia a "cobra", colocava uma mão sobre a outra fazendo o gesto de enrolar, demonstrando até certa ansiedade, mas não interrompia Alisson e o deixava fazer o brinquedo até o fim. Controlava seu impulso de pegar de volta sua massa de modelar para que ele próprio pudesse fazer seu brinquedo; atestamos, portanto, aparente respeito consciente ou inconsciente à regra inicial estabelecida por Alisson e talvez à capacidade superior que pareceu atribuir ao colega e que lhe traria o benefício final de ter a sua tão desejada "cobra". Sobre isso, nos remetemos à afirmativa de Vygotsky, que explica:

[...] continuamente a situação de brinquedo exige que a criança aja contra o impulso imediato [...] o maior autocontrole da criança ocorre na situação de brinquedo [...] comumente, uma criança experiencia subordinação a regras ao renunciar a algo que quer, mas, aqui, a subordinação a uma regra e a renúncia de agir sob impulsos imediatos são os meios de atingir o prazer máximo. (Vygotsky, 1989, p. 113)

Neste contexto, Ciro optou por aguardar o colega fazer o brinquedo, demostrando fisicamente estar controlando seus impulsos, enquanto Alisson se empenhava para validar toda sua habilidade certamente acentuada pelo próprio Ciro. As crianças estavam tão envoltas e atentas no momento que não recebiam ou logo afastavam as interferências externas, a exemplo dos colegas Vítor, que tentava intervir, puxando Ciro para sentar, e Carlos, que tentava se envolver na brincadeira se aproximando e perguntando algumas vezes "o que é isso?" referindo-se ao brinquedo que estava sendo construído.

Carlos só foi levado em consideração e teve atenção das crianças que interagiam quando pegou a "cobra" e saiu correndo com ela pela sala, demonstrando que queria uma "cobra" também ou então apenas brincar um pouco com a do colega, mas pela dificuldade que apresentava quase sempre em comunicar-se com as pessoas de modo geral, não soube expressar seu desejo falando e resolveu simplesmente pegar para si o brinquedo. Baseadas no comportamento de Ciro em outras situações observadas, podemos dizer que embora ele não tenha um perfil de criança que espera por ninguém para resolver as situações, na maioria das vezes revidando, nessa ocasião em especial pediu ajuda da monitora para resolver a ocorrência e pegar sua "cobra" de volta.

Nesse momento, verificamos, portanto, o cuidado e a relação de afetividade que tanto Ciro quanto as demais crianças têm quando se trata de Carlos; inclusive, é recorrente a afirmação vinda das próprias crianças de que estão ajudando a cuidar de Carlos, esse fato se deve, aparentemente, às dificuldades de comunicação apresentadas pela criança.

Pode-se perceber também a influência do brinquedo nas interações; neste caso acontece o que Wallon (2007, p. 55) denomina de "brincadeiras de fabricação". Isto é, aquelas que levam a criança a se divertir através da junção e combinação de objetos, havendo modificação, transformação e criação de novos objetos, muito embora no contexto da classe em questão, não tenha espaço privilegiado com brinquedos diversificados, aliás, quase não possui brinquedos e a organização não é adequada, pois a sala, apesar de ter um tamanho de 36 metros quadrados, é cheia de mesas, cadeiras e outros objetos que ocupam bastante espaço e, ainda assim, as crianças ultrapassam esses limites e conseguem fortalecer as interações através de brinquedos construídos e brincadeiras inventadas por elas mesmas, evidenciando a autonomia que possuem e as que estão sendo construídas a partir das interações realizadas.

Episódio 2 - "Eu me visto sozinha": Interação professora ou monitora-criança

O episódio nomeado: "Eu me visto sozinha", teve duração de 2 minutos e 53 segundos, aconteceu no banheiro e os participantes desse momento foram a monitora e a criança cujos nomes fictícios são Laura e Lívia, respectivamente.

Transcrição do episódio: era hora de as meninas tomarem banho e a monitora Laura estava sentada no banco de granito que tem dentro do banheiro, arrumando uma das crianças enquanto Lívia vestia a calcinha sentada ao lado, no mesmo banco de granito.

Um breve silêncio se faz até que Lívia ainda vestindo a calcinha o rompeu, questionando: "tia, não preciso de ajuda não, né?", monitora: "não precisa? Tá certo, tá me dispensando, né, Lívia? Parabéns!" e deu uma olhada provavelmente para conferir se a criança estava conseguindo realmente se vestir, e Lívia disse: "vesti sozinha". Monitora: "é moça!" referindo à fala da criança. Lívia se virou para sua bolsa que estava no banco para procurar a próxima peça de roupa que iria vestir, ao encontra-la, falou: "tia, eu trouxe isso aqui"; a monitora: "hum, isso aí é o quê?", Lívia disse: "saia, achou" e começou a vestir, girou a roupa, procurando o lado certo; ao encontrar, falou: "tia, eu sei botar a saia sozinha, olha, olha", a monitora passa perfume nela, dizendo: "coisa linda! Eita, Lívia mas tu soi (sois) linda"; pela fisionomia da criança pareceu gostar do que ouviu, levantou um pouco a cabeça como se quisesse proteger o rosto para não bater perfume no rosto, continuava vestindo a saia, quando a monitora abriu um breve diálogo:

Monitora: "tá conseguindo Lívia?"
Lívia: "tô"
Monitora: "quer ajuda?"
Lívia: "não"
Monitora: "por que, meu amor?"
Lívia: "porque eu sei vestir"
Monitora: "é, é?"
Lívia: "é"

Lívia conseguiu então vestir a saia e procurou na bolsa provavelmente a blusa, por ser a peça que faltava vestir; a monitora, já com a blusa nas mãos, a ajeitava e falou: "a blusa tá aqui ó Lívia", a criança pegou a blusa tentando descobrir o lado correto para vestir; nesse momento avistou seu colega Alisson, que queria adentrar ao banheiro para tomar banho, já que Lívia era a única menina que ali restava, então ela disse: "Alisson, eu vou botar minha blusa", conseguiu então vestir a gola, a monitora já dizendo: "gira a blusa assim" e com as duas mãos ela mesma ia girando a blusa que estava ao contrário; em nenhum momento Lívia tirou as mãos da blusa, sinalizando que permitiria ser ajudada. A monitora já vestindo uma das mangas da blusa na criança, insiste: "quer ajuda?", Lívia responde: "não", ainda tentando se vestir; a monitora insiste: "não quer?" e Lívia é incisiva: "não".

A monitora ficou olhando a criança tentar vestir o restante da blusa, e ela continuava tranquila tentando, apesar de ter um pouco de dificuldade em vestir as mangas da blusa, ao se dar conta que estava sendo observada pela monitora e pela pesquisadora que filmava, deu um sorrisinho forçado com a boca fechada, olhou duas vezes para a monitora que estava sentada; portanto, facilmente ao alcance de seus olhos, assim, movimentando apenas os olhos e a cabeça parada, levantou a cabeça um pouco para olhar para a pesquisadora que estava de pé e, portanto, bem mais alta que sua visão podia enxergar, obrigando-a a levantar a cabeça se quisesse ver; a monitora, ansiosa: "vou só ajudar aqui um pouquinho"; a criança apenas levantou o braço e o colocou na manga que a monitora veste, dizendo: "issooo". A criança termina de baixar a blusa na barriga, pegou uma das sandálias e sentou-se para calçar; a monitora mais uma vez perguntou: "quer ajuda pra "percata"2?" Lívia tenta calçar um pé no outro e a monitora falou: "não, no outro pé", já pegando na sandália e levando até o outro pé, a criança tentou calçar e deu uma olhada para a monitora e para a pesquisadora, mas baixou a cabeça e continuou tentando, a monitora falou com outra criança para passar por trás da pesquisadora que estava de pé filmando e o espaço era apertado, pensando talvez que a criança passando pela frente atrapalharia a filmagem.

Discussão do episódio

O episódio interativo aconteceu entre a monitora e Lívia no banheiro no horário do banho. Lívia, que acabara de tomar banho, procurou na bolsa sua roupa para se vestir, enquanto a monitora Laura arrumava outra criança; iniciou uma conversa com Lívia que, pelo sorriso e tom de voz, parecia satisfeita pelo interesse da monitora. Lívia, em tom questionador, fala: "tia não preciso de ajuda não né?" à medida que já vai se vestindo, portanto, para além de uma mera pergunta em que almejava por uma resposta, a criança pareceu querer mesmo informar que sabia e desejava se vestir sozinha, demonstrou claramente que possuía consciência corporal, não apenas naquele momento, mas em todo o vídeo.

A monitora reagiu tranquilamente e sua primeira fala foi baseada em tom de brincadeira: "não precisa? Tá certo, tá me dispensando né Lívia? Parabéns" e deu uma olhada para conferir se realmente Lívia estava conseguindo vestir-se. Quase todo o tempo de gravação do episódio percebemos a insistência da monitora em perguntar se a criança queria ajuda e, apesar da criança afirmar que não precisava de ajuda, a monitora desconsiderou a atitude autônoma de Lívia e repetiu por diversas vezes: "quer ajuda", "tá conseguindo Lívia?", ainda assim a criança também se mostrou insistente e respondeu todas as vezes que não queria ajuda e continuou se vestindo.

Há uma parte do episódio em que Lívia tentou vestir as mangas da blusa e sentiu um pouco de dificuldade e a monitora, contrariando o desejo dela de vestir-se sozinha, fez a atividade pela criança, quando na verdade poderia ter estimulado a autonomia da mesma até com uma simples pergunta: será que se você girar a blusa não fica melhor?.

A monitora, apesar de ter sido carinhosa, afetiva e atenciosa, no entanto, ao se deparar com situações como esta, em que a criança resiste às intervenções que vão de encontro ao seu desejo, pareceu ficar sem saber como agir e mediar o momento para incentivar a criança a construir sua autonomia e não interromper a liberdade de iniciativa como fez ao contrariar o desejo de Lívia vestindo sua blusa. Nesta discussão Macêdo nos remete a refletir que:

A conduta ou a prática das professoras no cotidiano da instituição de Educação Infantil é resultado de suas representações sobre a criança, a infância e a Educação Infantil. Não costumamos operar, cientificamente ou teoricamente, quando estamos no domínio prático. Isto não significa dizer que as professoras não têm consciência do que fazem. Pelo contrário, todos nós refletimos sobre nossas ações, porque somos seres cognoscíveis e nossas práticas são intencionais, deliberadas, no entanto, o que fazem rotineiramente com as crianças está, quase sempre, fundamentado na cultura e na experiência e não na teoria. (Macêdo, 2014, p. 112)

Quando a monitora faz as atividades pelas crianças sem esperar que estas realizem suas atividades sozinhas em seu tempo, que é individual e bem particular, dificultam o processo de desenvolvimento das crianças, visto que situações como essas podem gerar diversos comportamentos que dificultariam a manutenção e construção da autonomia nas crianças, afetando suas expressões através do corpo que, como nos lembra Macêdo (2014, p. 122), a forma mais comum das crianças se comunicarem "[...] é através dos gestos, dos movimentos. A linguagem gestual/corporal é muito utilizada por elas porque estão apreendendo a linguagem oral". Apesar de a monitora incentivar as crianças a realizarem boa parte das atividades cotidianas sozinhas, principalmente as que se referem à individualidade da criança, em quase todas atividades que as crianças realizavam sob orientação, presenciamos situações como estas em que as interações aconteciam na perspectiva de "fazer pela criança".

A participação das crianças nas rotinas adulto-criança muitas vezes gera perturbações ou incertezas em suas vidas. Essas perturbações (incluindo confusão, ambiguidades, receios e conflitos) são um resultado natural da interação adulto-criança, tendo em conta o poder dos adultos e a imaturidade cognitiva e emocional infantil. Embora as crianças desempenhem um papel ativo na produção de rotinas culturais com adultos, elas geralmente ocupam posições subordinadas e são expostas a muito mais informações culturais do que elas podem processar e compreender. (Corsaro, 2011, p. 128)

Salientamos, dessa forma, que as interações existentes entre monitora-criança colocavam as crianças algumas vezes em posição de subordinação, como nesse episódio em que a monitora contrariou o desejo da criança de vestir-se sozinha.

O episódio é recortado nesse ponto em que a monitora, já em tom de súplica, tentava "fazer" por Lívia e pediu novamente para ajudar a calçar sua sandália, pois os meninos queriam adentrar o banheiro para tomar banho e ocupar o espaço; então a monitora acabou calçando a sandália por Lívia, confirmando nossa hipótese de que este comportamento de fazer algumas atividades pelas crianças advém de duas fontes: (1) prática fundamentada na cultura e na experiência em detrimento da reflexão teórica; (2) cumprimento da rotina meticulosamente estruturada que exigia grande parte das vezes rapidez da monitora na execução das atividades.

Desta forma, esperar pelas crianças, que em fase de desenvolvimento fazem suas atividades de acordo com suas condições e certamente não na rapidez que os adultos desejariam, tornava-se motivo de ansiedade da monitora que acabava por "fazer" pelas crianças, acarretando dois tipos de comportamentos nas crianças: (1) resignação ou mesmo sentimento de incapacidade, pois algumas das crianças, poucas, mas existiam, nem tentavam realizar suas atividades, nem mesmo as básicas que já haviam aprendido, visto que já havíamos presenciado as mesmas realizando-as, e já solicitavam ajuda da professora ou da monitora (2) resistência e insistência em realizar suas atividades sozinhas mesmo quando apresentavam alguma dificuldade diante de alguma delas.

Episódio 3 - "Parabéns, você conseguiu!" Interação criança-professora ou monitora

O episódio "Parabéns, você conseguiu!" teve a duração de 16 segundos, e refere-se a interações entre a monitora Laura e a criança Ciro na própria sala.

Transcrição do episódio: a monitora estava ajoelhada no chão ao lado de uma criança, olhando e conversando com ela, que fazia seu animalzinho de massinha de modelar. Tema da aula: "animais domésticos e animais selvagens". De repente, Ciro saiu de sua cadeira e se dirigiu até a monitora para chamá-la, pegou em sua mão e falou: "já acabei tudo meu animal"3, a monitora respondeu: "vou olhar", já levantando-se. A criança foi na frente parecendo satisfeita pela aceitação da monitora ao seu convite, passou pelas cadeiras colocando a mão em quase todas elas, ainda deu uma olhadinha para o colega, mas continuou andando. Outra criança chamou a monitora, ela olhou, mas foi atender ao chamado de Ciro primeiro. Ciro chegou na sua mesinha e em pé sorrindo e olhando para a monitora, apontou para o seu "animal" feito de massinha e falou: "aqui ó" e se segurou na cadeira; parecia esperar o que a monitora iria dizer. A monitora bateu palminhas e disse: "eita! parabéns você conseguiu", Ciro balançou a cabeça positivamente, ela então se agachou mais próximo da criança e falou: "tentou e conseguiu" e Ciro deu uma olhadinha para a monitora apenas virando o olhar sem mover a cabeça e esboçou uma fisionomia de satisfação pelo dever cumprido.

Discussão do episódio

A monitora mais uma vez, como já acontecido em tantos outros episódios, estava ajoelhada ao lado da cadeira de uma criança conversando, quando Ciro chegou e requisitou sua presença para olhar o que ele havia feito com a massa de modelar. Prontamente a monitora atendeu ao chamado, levantou-se e foi até a mesinha dele. A disponibilidade da monitora em atender às demandas da criança reflete a importância que ela atribui à atenção que a criança exige ao realizar algum tipo de atividade. Para Wallon (2007, p. 69), "[...] a criança pequena quer ser vista quando pratica [as atividades] e não cessa de solicitar a atenção dos pais, dos mais velhos".

Acerca disso, notamos nas crianças a frequente necessidade de quererem ser vistas nas mais diversas atividades e constatamos que a professora e a monitora mostram-se continuamente dispostas a atender as reivindicações e necessidades das crianças; provavelmente este é um fator que ocasiona tranquilidade e continuidade de solicitações por atenção requeridas pelas crianças. Caso contrário, se existissem recusas por parte da professora ou da monitora aos chamados das crianças, possivelmente as crianças não fossem tão espontaneamente solicitar "os olhares" da professora e da monitora que, de qualquer forma, estão propiciando que as crianças tenham autonomia nas tomadas de decisões, que neste caso exemplificado são tomadas de decisões com assertivas positivas.

A intervenção do professor é necessária para que, na instituição de Educação Infantil, as crianças possam, em situações de interação social ou sozinhas, ampliar suas capacidades de apropriação dos conceitos, dos códigos sociais e das diferentes linguagens, por meio da expressão e comunicação de sentimentos e ideias, da experimentação, da reflexão, da elaboração de perguntas e respostas, da construção de objetos e brinquedos etc. Para isso, o professor deve conhecer e considerar as singularidades das crianças de diferentes idades, assim como a diversidade de hábitos, costumes, valores, crenças, etnias etc. das crianças com as quais trabalha respeitando suas diferenças e ampliando suas pautas de socialização. (Brasil, RCNEI, 1998, p. 30)

A monitora transmitiu confiança e estímulo a Ciro, primeiro por não ignorar seu pedido e segundo pela reação dela ao ver o que Ciro havia elaborado com a massa de modelar, demonstrando sinceridade, que foi percebida pela criança que visivelmente, pareceu sentir orgulho de si mesma. A massa de modelar foi um instrumento que permitiu à criança desenvolver a imaginação e criatividade, muito embora ainda tenhamos percebido que apenas ela limitava as brincadeiras e consequentemente as interações; não conseguimos presenciar criações altamente ricas superando a simplificação que o instrumento faculta a qualquer momento interativo.

Nesse sentido, foi possível observar em outros momentos interativos que a professora e a monitora procuravam promover interações baseadas na afetividade, respeito e atenção às crianças, bem como uma prática criativa e estimuladora, à medida das condições físicas e materiais permitidas pela instituição e do próprio conhecimento experiencial e teórico apreendido por ambas.

 

Considerações finais

Em conclusão, é possível afirmar, a partir dos episódios interativos analisados, que as interações entre as crianças, permeadas por brincadeiras, situações de faz-de-conta e brinquedos, grande parte das vezes não dirigidas pela professora ou monitora, aconteciam sob a égide da organização das próprias crianças, caracterizando momentos propícios para trocas e que podiam ser percebidos sinais de cooperação, ou seja, dialogavam sobre algo que se propunham a fazer, momentos de ajuda mútua.

Mesmo que um ambiente desfavorável no tocante às limitações de equipamentos, de recursos didáticos, bem como envoltas em práticas escolarizantes ou voltadas para a disciplina, as interações entre as crianças foram marcadas pela resistência das crianças e pela busca de construção de sua autonomia entre os pares. Corsaro (2011, p. 129) nos lembra que "características importantes das culturas de pares surgem e são desenvolvidas em consequência das tentativas infantis de dar sentido e, em certa medida, a resistir ao mundo adulto", confirmando, portanto, nossos apontamentos sobre as crianças resistirem às práticas disciplinares.

As interações na maior parte do tempo entre as crianças, a professora e a monitora eram mantidas em bases afetivas, de diálogo e respeito. Apesar de ainda existirem momentos em que prevalecia a autoridade disciplinadora da professora ou monitora, observamos o predomínio de relações de respeito mútuo nas vivências cotidianas.

Existia incentivo para que as crianças realizassem boa parte de suas atividades cotidianas sozinhas, muito embora quando as crianças sentiam alguma dificuldade ou demoravam para realizar determinada atividade, a professora ou a monitora faziam pela criança. Tais comportamentos eram compartilhados tanto pela professora quanto pela monitora.

Já as interações criança-professora ou monitora eram praticamente baseadas na solicitação de atenção para suprir suas necessidades básicas. Constatamos que se tratava do tipo de interação mais recorrente quando iniciadas pelas crianças em direção à professora ou monitora. Ambas costumavam atender às demandas sem ao menos desafiar ou incentivar as crianças a tentar realizar sozinhas determinadas atividades que pediam, dificultando a conquista de sua autonomia, que poderia ser fomentada nesses momentos.

 

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Recebido em: 01 de fevereiro de 2018
Aprovado em: 28 de setembro de 2020

 

 

1 Nas transcrições dos vídeos nas falas das crianças indicadas por aspas colocamos a tradução de algumas palavras entre parênteses com o intuito de facilitar o entendimento do leito.
2 Nome popularmente usado na região para sandálias do tipo rasteiras que possuem fecho na parte traseira.
3 Nesse momento a câmera balança um pouco e sai de foco porque outra criança se aproxima por trás da pesquisadora abraçando-a fortemente, fazendo-a balançar, o que não comprometeu o entendimento do episódio por ter sido muito rápido o desfoque, normalizando logo em seguida a filmagem.

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