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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.52 São Paulo jan./jun. 2021

https://doi.org/10.23925/2175-3520.2021i52p1-9 

EDITORIAL

 

Das tarefas pungentes para a psicologia da educação frente à tragédia humanitária atual

 

From punging tasks to the psychology of education facing the current humanitarian tragedy

 

De las tareas de punging a la psicología de la educación ante la actual tragedia humanitaria

 

 

Mitsuko Aparecida Makino AntunesI; Ruzia Chaouchar dos SantosII

IPontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil; miantunes@pucsp.br
IIPontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil; ruziachauchar@hotmail.com

 

 

Gostaríamos de dizer que é com muita alegria e mobilizações de esforços coletivos que, enfim, o número 52 de nossa Revista é publicado. Entretanto, a palavra alegria, na atual conjuntura, não pode ser usada, no mínimo seria um contrassenso. São mais de meio milhão de brasileiros mortos pelo novo corona vírus, milhões de familiares e amigos que sofrem pela perda de um ser querido, milhares de pessoas que padecem com as sequelas da doença, com a ampliação do desemprego, a degradação e precarização das relações de trabalho, o aumento vertiginoso da fome, a acentuação de feminicídio, a perda da moradia, o despejo, o transporte público com superaglomeração, o desmanche da seguridade social, a criminalização dos movimentos sociais, entre outras expressões da intensificação de expropriação dos direitos adquiridos historicamente pela classe trabalhadora, que incide desigualmente na população, descortinando o aprofundamento da desigualdade econômica, social, étnico-racial e de gênero enraizados na particularidade da formação social brasileira, marcada pelas raízes colonial e escravocrata.

Nessa direção, convém explicitar os índices alarmantes de invisibilizados de milhares de crianças e/ou adolescentes, com idade inferior a 18 anos, que ficaram órfãos pela perda de mães e/ou pais ou cuidador/a/es em decorrência da COVID-19 no Brasil, entre o período de início de março do ano passado e o final do mês de abril de 2021. (Hillis et. al, 2021). Salienta-se que essa dramática situação de orfandade exposta, tende a coadunar com a perpetuação e o recrudescimento das medidas de controle social mediadas por diversas formas de violência, com os processos de institucionalização, patologização e mortificação material e simbólica das infâncias e adolescências, especialmente, da população negra e periférica.

Diante disso, o aprofundamento dos ataques à educação, em seus diferentes níveis, passam a endossar a legitimação de ideias e práticas de intolerância e irracionalismo sem precedentes, que se configuram como uma das dimensões da ideologia neoconservadora, tal como as irresponsáveis declarações proferidas pelo atual ministro da educação Milton Ribeiro: "Alunos com deficiência 'atrapalham' demais estudantes" (Galvani, 2021),'"é impossível a convivência" com crianças com algum grau de deficiência"' (Ohana, 2021), que sinalizam o desmonte das políticas públicas historicamente conquistadas e retrocessos que apresentam em seu bojo concepções higienistas, segregacionistas e discriminatórias sobre as pessoas com deficiência, que ainda são analisadas sob o prisma da inferioridade, incapacidade, do incômodo, entre outros aspectos implicados na negação de seu estatuto de sujeito e, com efeito, na aniquilação das diferenças da condição humana, tal como preconizam as proposições do Decreto n° 10.502/2020 (Brasil, 2020). Tais aspectos abordados firmam suas raízes na lógica de privatização e subordinação da educação aos ditames do mercado, que se desvela no laço enredado entre interesses hegemônicos da psiquiatria e as indústrias farmacêuticas (Whitaker, 2017), articulado as instituições privadas que têm interesse nas parcerias com o Estado.

No seio dessas complexas manifestações de contradições da crise estrutural do capital (Mészáros, 2009), que tem como expressão do seu funcionamento a crise humanitária em curso, no que diz respeito diretamente a nós, do campo da educação, incide sobremaneira a exploração e a precarização do trabalho docente, impactando de distintas formas o processo de aprendizagem e desenvolvimento dos educandos em momentos importantes de seu percurso formativo; entre outros aspectos, por uma parcela considerável dos escolares ser privada de condições objetivas de acesso ao ensino remoto, em que pese o esforço sobre-humano de milhares de professoras, gestoras, entre outras/os técnicas/os de nossas escolas públicas, mães, avós, tias e todas as pessoas que, mediante movimentos de articulação e organização coletivos de luta e resistência se orientaram pelo comprometimento ético-político buscando mitigar os efeitos do necessário e incontestável isolamento social, agindo na defesa do projeto societário emancipador. Nosso desalento, no entanto, é a constatação de que tudo isso poderia ter sido diferente! Se até pouco tempo atrás eram grandes as tarefas que se impunham como pautas urgentes para a Educação em geral e para a Psicologia da Educação em especial, como a aprendizagem dos conteúdos escolares básicos para milhares de crianças, a inclusão efetiva de tantas outras, a concretização de uma educação democrática, igualitária, plena e integral, a pandemia do novo corona vírus traz à tona questões que exigem nossa atenção, sob pena de termos que arcar com uma dívida histórica se não formos capazes de mirar para além das questões mais visíveis e imediatas. Num primeiro plano, apontamos para a necessidade de planejamento para a volta às aulas, que deve começar com a avaliação de cada educando, de todos os segmentos, para que se possa atender a cada um para suprir as perdas (que são muito variadas) e identificar possíveis aprendizagens que não devem ser descartadas e aproveitadas nesse processo que se inicia. Em outro plano, é necessário que se analise a fundo as políticas públicas adotadas (ou não adotadas, ou precarizadas, ou destruídas, para sermos mais precisas). Complementando com o necessário esclarecimento à comunidade que a situação vivida por tantos educandos mostra de forma cabal os motivos por que somos contra a dita educação domiciliar. Mas, há outras questões que merecem ser visibilizadas, estudadas, analisadas e postas sob uma lente poderosa.

As questões a que nos referimos são aquelas que vão para além da letalidade do corona vírus e da trágica ação governamental na gestão da crise econômica, social, política e sanitária, fundamentada na intensificação e expansão da política de austeridade fiscal orientada pelo desmonte sistemático e a privatização de bens e serviços básicos, tal como educação, saúde, previdência, embora a elas associadas. Muitas categorias teóricas podem ser utilizadas para identificar esse problema: comportamento, atitude, atividade, emoção e afeto, consciência, alienação, entre outras. Trata-se do negacionismo, da incorporação dogmática de notícias falsas, da recusa de adoção de medidas preventivas, da decisão de não tomar a vacina, da indiferença... frente a uma realidade pungente e trágica experimentada diretamente com a perda de pessoas próximas e até mesmo com o próprio sofrimento com a doença. Informações não faltaram e não faltam. Buscar a explicação desses processos é uma tarefa imposta a todos aqueles que se ocupam do trato com o humano. Educação, psicologia, sociologia, antropologia, saúde são algumas das áreas que, juntas, que devem somar esforços para conhecer as determinações que estão na base desse processo para poder definir planos de ação conjunta para sua superação.

Manifestações dessa natureza não são novas e acompanham a história humana. Mas, na história recente é possível identificar condutas individuais ou coletivas que se contrapõem à informação ampla e reiteradamente difundida por diversos e efetivos meios de comunicação. Não faz muito tempo que muitas pessoas se recusavam a usar cinto de segurança, mesmo sabendo que seu uso evitaria a maioria das mortes ou ferimentos graves em acidentes de trânsito. O uso de preservativos previne o contágio das DST-AIDS e da gravidez e, no entanto, milhares de pessoas foram infectadas e meninas engravidaram na adolescência. O desperdício de água, energia elétrica e detergentes contribuem para o colapso da natureza; mas, nem mesmo com a alta das tarifas e preços dos produtos, as pessoas não logram usar essas fontes ou produtos de maneira racional. Além disso, há muitas crenças que são incorporadas, ainda que seus contrários sejam, cartesianamente falando, claros e evidentes: a terra plana; a demonização de qualquer "outro" que não comungue com as ideias dogmáticas que se adotou; o vírus produz só uma gripezinha (mesmo que ela tenha matado seu pai); o uso de cloroquina e ivermectina como tratamento precoce; vacina transforma pessoas em jacaré... poderiam soar cômicas essas ideias se não fossem elas responsáveis pela tragédia ora vivida pelos brasileiros.

O que a psicologia da educação pode oferecer como contribuição para entender esse processo e intervir sobre ele, com vistas à sua superação? A pluralidade teórico-metodológica da área comporta um grande potencial para que se ampliem e se aprofundem os conhecimentos sobre esse processo. Categorias fundamentais da psicologia social e da educação, como: consciência, atividade e personalidade (Leontiev); consciência, atividade, emoção e identidade (Lane); mesmice e metamorfose emancipatória (Ciampa); significados e sentidos; conceito espontâneo e científico (Vigotski); operações formais e desenvolvimento moral (Piaget); integração das dimensões afetivas, cognitivas e motoras na formação da pessoa (Wallon); contingências de reforçamento (Skinner); representações sociais (Moscovici) são, dentre muitas outras, recursos potentes para dar base à tarefa que este momento histórico veementemente se nos impõe.

Voltando a este número da Revista, temos que dizer que nós também enfrentamos muitos empecilhos nesse período trágico e insólito. Compreendemos as dificuldades de todos os que colaboraram com esta publicação: autores, pareceristas e membros do corpo editorial. Por esse motivo, afirmamos o nosso imenso agradecimento a todos cujo trabalho concretiza esse número de nosso periódico: Agda Malheiro, Aline Matos, Bárbara Palhuzi, Cíntia de Fátima, Jaqueline Nery, Jéssica Silva, Priscila da Costa, Regina Prandini, Ruzia Chaouchar, assim como ao Waldir Alves, da EDUC, reiteramos nossos agradecimentos ao Portal de Revistas da PUC-SP e, em especial, ao PIPEq, cujos recursos têm permitido que nossa Revista continue sua missão de acolher e difundir o conhecimento produzido pela área da Psicologia da Educação.

Esperamos que as reflexões engendradas nos artigos possam potencializar a busca pela produção de conhecimento e sua publicização, demandas urgentes para a ciência em geral, mas para a psicologia e a psicologia da educação em particular.

 

Referências

Brasil. (2020). Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020. Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao longo da vida. Diário Oficial da União. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10502.htm        [ Links ]

Galvani, N. (2021). Ministro da Educação diz que alunos com deficiência 'atrapalham' demais estudantes. EuEstudante. Recuperado de: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/2021/08/4944022-ministro-da-educacao-alunos-com-deficiencia-atrapalham.html        [ Links ]

Hillis, S. D; Unwin H. J. T. ; Chen, Y., et al. (2021). Estimativas mínimas globais de crianças afetadas por orfandade associada a COVID-19 e mortes de cuidadores: um estudo de modelagem. The Lancet. 398,391-402. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(21)01253-8        [ Links ]

Mészáros, I. (2009). Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Ohana, V. (2021). Ministro da Educação diz que é 'impossível a convivência' com crianças com certo grau de deficiência. Carta Capital. Recuperado de:        [ Links ]

Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso de doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 20 Ago 2021
Aprovado em: 21 Ago 2021

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