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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.53 São Paulo jan./dez. 2021

http://dx.doi.org/10.23925/2175-3520.2021i53p66-75 

ARTIGOS

 

Intervenções educativas para aprendizagem acerca de sexualidade e gênero no Brasil: uma revisão de escopo

 

Educational interventions for learning about sexuality and gender in Brazil: a scoping Review

 

Intervenciones educativas para el aprendizaje de la sexualidad y el género en Brasil: una revisión de alcance

 

 

Thaís BlankenheimI; Natacha Führ RamosII; Adolfo PizzinatoIII; Angelo Brandelli CostaIV

IPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS - Rio Grande do Sul - RS - Brasil; thaisblankenheim@hotmail.com
IIUniversidade Feevale - Novo Hamburgo - Rio Grande do Sul - RS - Brasil; fuhrnatacha@gmail.com
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Rio Grande do Sul - RS - Brasil; adolfopizzinato@hotmail.com
IVPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC - RS - Rio Grande do Sul - RS - Brasil; angelobrandellicosta@gmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é mapear a produção acadêmica sobre intervenções realizadas no âmbito escolar brasileiro nos campos de sexualidade e gênero. Foi realizada uma revisão de escopo (Scoping Review) nas bases de dados Scielo, Lilacs, Pepsic e Google Acadêmico. Verificamos que após o ano de 2012 a produção do campo se intensifica; a maioria das intervenções atua diretamente com alunos, principalmente de anos finais do ensino fundamental e do ensino médio; os delineamentos metodológicos mais utilizados são os qualitativos e o discurso crítico é o que fundamenta a maior parte das publicações, seguido pelo liberal e pós-moderno. Pontua-se, entretanto, a necessidade de investigações desde a faixa etária infantil e que tenham como público-alvo professores/as e educadores/as. Os estudos do tema nas áreas da psicologia e educação devem ser reforçados para que possam trabalhar como propulsores de garantia de direitos e de qualidade de vida para todas as pessoas.

Palavras-chave: Sexualidade; Gênero; Intervenção; Educação; Escola.


ABSTRACT

The objective of this article is to map the academic production about interventions in the Brazilian school scene related to sexuality and gender issues. A Scoping Review was performed using search parameters in Scielo, Lilacs, Pepsic e Google Acadêmico databases. Based on this search, we found that the number of published research on the topic has increased from the year 2012; most interventions are targeted at students, especially those in the final years of elementary and high school; the most used methodological delineations are the qualitative ones; critical discourse grounds most of the publications found, followed by liberal and postmodern discourses. It is emphasized the need for investigations from the children's age group, targeting teachers and educators. In addition, studies in the areas of psychology and education should be strengthened to promote the guarantee of rights and quality of life for all people.

Keywords: Sexuality; Gender; Intervention; Education, School.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es mapear la producción académica sobre las intervenciones realizadas en el ámbito escolar brasileño en los campos de la sexualidad y el género. Se realizó una revisión de alcance (Scoping Review) en las bases de datos Scielo, Lilacs, Pepsic y Google Scholar. Comprobamos que a partir de 2012 se intensifica la producción del campo; la mayoría de las intervenciones trabajan directamente con los estudiantes, principalmente en los últimos años de primaria y secundaria; los diseños metodológicos más utilizados son cualitativos y el discurso crítico es el que subyace en la mayoría de las publicaciones, seguido por el liberal y el posmoderno. Existe, sin embargo, la necesidad de investigaciones desde el grupo etario infantil y que tengan como público objetivo a los docentes y educadores. Se deben reforzar los estudios sobre el tema en las áreas de psicología y educación para que puedan funcionar como motores de garantía de derechos y calidad de vida para todas las personas.

Palabras clave: Sexualidad; Género; Intervención; Educación; Colegio.


 

 

Introdução

As temáticas relacionadas aos temas de sexualidade e gênero permeiam a vida de todos nós, embora, às vezes, não atinjam o necessário reconhecimento sobre a sua importância. Elas se apresentam em perspectivas individuais, de saúde, de educação, sociais e culturais e, quando abordadas em contextos educacionais, tendem a auxiliar na redução das vulnerabilidades para doenças e infecções (Fonner, Armstrong, Kennedy, O'Reilly & Sweat, 2014), abusos e violências sexuais (Vladutiu, Martin & Macy, 2011), violências de gênero e preconceitos (Bartoş, Berger & Hegarty, 2014).

Conforme a UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), a educação em sexualidade está presente em todos os espaços por onde as pessoas circulam - família, escola, igreja, pares, mídia, trabalho - mas ocorre de forma pulverizada, fragmentada e, quase sempre, velada, o que reflete numa educação em sexualidade que não é legitimada como tal e não é associada ao plano de uma sociedade inclusiva baseada nos direitos humanos. Portanto, torna-se relevante a atuação do sistema educacional na tarefa de organizar e ministrar essa dimensão da formação humana (Unesco, 2014).

No campo da educação brasileira, desde a década de 1990, movimentos sociais começaram a se manifestar com o intuito de denunciar e reivindicar práticas discriminatórias nas escolas. A partir disso, instauraram-se debates e discussões promovidos pelo Ministério da Educação, objetivando o combate de preconceitos e discriminações. Estes debates, somados a novas ações de movimentos sociais, auxiliaram na elaboração de documentos oficiais (Guizzo & Felipe, 2016), que defendem e apoiam a realização de intervenções a respeito de questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero e têm como propósito a prevenção de doenças e promoção da saúde, assim como assegurar os direitos dos sujeitos. Alguns exemplos são os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), o Programa Brasil Sem Homofobia (2004), o Caderno Gênero e Diversidade Sexual na Escola (2007) e o Programa de Saúde na Escola - PSE (Martins, 2017).

Iniciativas que se preocupam em intervir nessas problemáticas no campo educacional estão presentes em nosso país e são alvo de observação neste estudo. As intervenções aqui pontuadas são entendidas como atos que contribuem tanto para a possibilidade de intervir na formação das pessoas sobre o assunto (através de contato com informação, conhecimento e reflexão) quanto para a aplicação de ações específicas para modificações de condutas e comportamentos relacionados à qualidade de vida individual e social, às garantias de existência, de diversidade e de direitos sociais.

As perspectivas interventivas para aprendizagem no campo educacional partem dos pressupostos da educação em sexualidade. Conforme Jones (2011), o conceito de educação sexual é discutível, visto que pode partir de fundamentos e discursos muito diferentes - pode ser usado, de forma mais limitada, referindo-se a lições sobre reprodução, até atividades mais questionadoras e reflexivas sobre relações de poder e diversidades. Jones (2011) refere-se à educação sexual como um termo genérico sob o qual se enquadram subtipos que, conforme o seu mapeamento internacional, foram classificados em quatro principais discursos: o conservador, o liberal, o crítico e o pós-moderno.

O discurso conservador, em franca expansão na política educacional brasileira, parte do pressuposto de preparação do/a aluno/a para ser trabalhador e para o seu "encaixe" na sociedade, transmitindo ideias restritas e dominantes em relação à sexualidade, negando, de certa forma, as diversidades. O discurso liberal aparece numa perspectiva de rompimento da posição passiva do/a aluno/a sobre a temática, entendendo o professor/educador como um facilitador que deve auxiliar numa preparação mais ampla para a vida no sentido geral. No entanto, foca-se na importância da obtenção do conhecimento sobre sexualidade, com o intuito de que o/a aluno/a tenha condições de optar sobre condutas e situações. Nesse caso, o processo de responsabilização pessoal predomina sobre o social (Jones, 2011).

O discurso crítico surge a partir de um maior envolvimento com as questões sociais relacionadas à sexualidade. Ele identifica e questiona desigualdades e marginalizações presentes na sociedade em relação a gêneros e diversidade sexuais. O último, o discurso pós-moderno, vai além dos demais no sentido de analisar os conceitos de "verdade" que são perpetuados sobre o assunto. Nessa perspectiva, apresenta-se de forma mais reflexiva e questionadora, criticando a ordem social dominante e considerando a cultura como um espaço que precisa estar aberto a mudanças. Entende-se que a igualdade não deve ser buscada a partir de um modelo "original", pois a diversidade e a multiplicidade devem ser tratadas como o ponto de partida da educação sexual (Jones, 2011).

Desde a década de 1990, no Brasil, estudos sobre o tema vêm sendo realizados e publicados. Um exemplo é a revisão de Dias e Amorim (2015), que teve como objetivo sistematizar a literatura específica sobre corpo, gênero, sexualidade e educação. Os autores concluíram que a abordagem da temática por professores/as contribui para a desestabilização de normas e classificações no campo da educação e que o caminho para que isso seja possível se dá na inclusão dessas discussões nos cursos de formação para professores/as. Esse estudo, convergindo com o nosso, também buscou conhecer os anos das publicações e as metodologias utilizadas. No entanto, os autores não focam nas intervenções desenvolvidas no campo em questão, o que pontuamos em nosso estudo como um avanço nas investigações.

Levando em consideração a visibilidade do assunto e as intervenções presentes no âmbito escolar, este artigo objetiva uma revisão da produção acadêmica no Brasil acerca de intervenções sobre tais temas, com busca realizada em diferentes bases de dados. Como objetivos específicos pretendemos conhecer o período histórico em que inicia essa produção no contexto brasileiro, identificar para qual público as intervenções foram construídas e aplicadas, verificar os delineamentos metodológicos e os tipos de intervenções realizadas, e os discursos sobre educação sexual que as fundamentam.

 

Método

No intuito de mapear a produção acadêmica sobre intervenções educativas para aprendizagem sobre sexualidade e gênero realizadas no âmbito escolar brasileiro, foi realizada uma revisão de escopo (Scoping Review) nas bases de dados Scielo, Lilacs, Pepsic e Google Acadêmico. A metodologia Scoping Review é uma alternativa de síntese das evidências na Psicologia; ela difere das revisões sistemáticas na construção da pergunta de pesquisa mais ampla e na síntese com características qualitativas. Revisões de escopo podem ser conduzidas para atender vários objetivos. Nesse caso, pretende-se examinar a extensão (isto é, tamanho), o alcance (variedade) e a natureza (características) da evidência sobre o tópico em questão; resumir os resultados de um corpo de conhecimento que é heterogêneo em métodos e identificar lacunas na literatura para auxiliar no planejamento de pesquisas futuras (Peterson, Pearce, Ferguson & Langford, 2017).

O período de busca dos artigos foi entre os meses de agosto e setembro do ano de 2018. Os descritores utilizados na busca foram: sexualidade/gênero/LGBT, educação/escola/professor e intervenção/capacitação/programa/treinamento. Os critérios de inclusão adotados foram: 1) o estudo ser empírico, 2) abordar predominantemente uma intervenção sobre gênero e/ou sexualidade, 3) ter sido realizado em contexto escolar/educacional e 4) ter como foco de investigação a população brasileira. Não foi delimitada como critério a data de publicação dos artigos para podermos verificar, de forma livre, o período no qual os artigos sobre esse tipo de intervenção são publicados em nosso país.

A trajetória da revisão, desde a busca dos artigos até a sua análise, foi realizada por duas pesquisadoras e feita da seguinte forma:

 

 

Os dados obtidos através da revisão foram categorizados em quatro eixos: 1) os anos de publicação dos artigos; 2) o público-alvo das intervenções; 3) os delineamentos metodológicos e os tipos de intervenção aplicadas; e 4) os discursos que fundamentam as intervenções que, conforme Jones (2011), podem ser considerados como: conservador, liberal, crítico e pós-moderno.

Na classificação do discurso conservador foram incluídos estudos que pontuam o ensino de sexualidade numa perspectiva de transmissão do conteúdo, com conduta passiva dos/as alunos/as, através da aplicação de aulas e palestras. Além disso, também foram incluídos estudos que focam na normalização do comportamento sexual, preocupando-se com o ensino sobre comportamentos sexuais de risco, aprendizagem sobre doenças e infecções, preocupações com a idade da iniciação sexual e com as práticas sexuais.

Na classificação do discurso liberal foram incluídos artigos que também focam na questão preventiva de saúde/doença e práticas sexuais, no entanto, partem de um pressuposto que reforça maior participação dos sujeitos envolvidos na intervenção, através de atividades interativas. O foco das intervenções é o trabalho das temáticas de sexualidade e gênero com o intuito de que as pessoas sejam informadas sobre o tema, possam tirar dúvidas e sejam responsáveis sobre a sua vida, como demonstram Murta e cols. (2012, p. 28), "ter as decisões certas, pensar nas consequências e pensar antes de agir".

Na categorização do discurso crítico figuram os estudos que ampliam a preocupação acerca da temática para o campo social. Os temas relatados anteriormente nos demais discursos não deixam de aparecer nessa perspectiva, porém não são trabalhados de forma individualizante. As metodologias interventivas são sempre participativas e os focos de trabalho não são somente o corpo e os comportamentos, mas também os grupos desvalorizados e estigmatizados, as desigualdades sociais e os tabus e preconceitos na sociedade.

No discurso pós-moderno foram incluídos estudos que partem da perspectiva de desnaturalização das verdades sobre sexualidade e gênero. As intervenções abordam conteúdos sobre o corpo, prevenção, saúde/doença, relações de gênero, preconceitos, discriminações, desigualdades - todos partindo de ideia crítica e desconstrutiva em relação as abordagens biologicistas e heteronormativas. A partir da problematização das "verdades", as intervenções baseadas nesse discurso entendem a diversidade como pluralidade humana e pretendem produzir novos significados sobre o tema.

 

Resultados

Os resultados da revisão foram organizados de acordo com os quatro eixos. Eles são apresentados em formato de tabela e discutidos posteriormente.

 

Tabela 1

 

Ano de publicação

Na busca realizada, foram encontrados 31 artigos publicados entre os anos de 2002 a 2018 que atenderam aos critérios de inclusão da pesquisa. Destacaram-se três datas em que nenhum artigo foi publicado, de acordo com os nossos critérios de busca: os anos de 2003, 2004 e 2007. Além disso, pode-se verificar alguns anos que possuem uma incidência maior relacionada à publicação das intervenções: 2005 e 2012 com cinco publicações cada e maior concentração geral a partir do ano de 2012.

Público-alvo da intervenção

Nos resultados referentes ao público-alvo das intervenções realizadas e apresentadas nas publicações, pode-se perceber que a quantidade somada de artigos supera o número total da amostra da pesquisa. Isso se deve ao fato de que alguns dos estudos realizaram intervenções que atenderam a mais de um público, como alunos/as e professores/as conjuntamente, por exemplo.

Podemos verificar a expressiva quantidade das intervenções destinadas a estudantes de ensino fundamental (geralmente anos finais) e/ou médio nos estudos, compondo 77,42% do conjunto de pesquisas. Além disso, o número de intervenções realizadas com/para professores/as e/ou educadores/as é menor em relação àquelass para estudantes, sendo que 32,25% dos estudos envolve a participação de professores/as. Nesse sentido, dois resultados se sobressaem: a invisibilidade da temática durante a infância e a menor taxa de trabalho e intervenção com professores/as e/ou educadores/a.

Delineamentos metodológicos e tipos de intervenção

A quantidade encontrada de estudos qualitativos (n=25) supera o número de estudos quantitativos (n=4) e mistos (n=2), demonstrando a predominância de estudos qualitativos na área pesquisada. Outro ponto a ser destacado no que tange às abordagens dos artigos diz respeito aos procedimentos e instrumentos utilizados nas intervenções. Enquanto os artigos de método quantitativo avaliam a eficácia ou a participação nas intervenções, através de aplicação de escalas e questionários, os qualitativos comumente descrevem as intervenções.

Em relação aos tipos de intervenção realizadas, a maioria (21 dos 25 estudos qualitativos e 3 dos 4 estudos quantitativos) utilizaram-se da perspectiva de intervenção em grupo. Tanto nos estudos qualitativos quanto nos quantitativos, as intervenções em grupo basearam-se na promoção de oficinas, cursos, programas ou treinamentos sobre a temática.

Discursos que fundamentam as intervenções

Outro eixo desta revisão diz respeito aos discursos que fundamentam as intervenções. Os artigos foram categorizados em quatro possibilidades de discurso: conservador, liberal, crítico e pós-moderno (Jones, 2011), conforme explicados na introdução.

Faz-se importante pontuar que os discursos não aparecem de forma pura ao longo dos estudos, ou seja, eles podem apresentar características de mais de um tipo de discurso. No entanto, buscou-se identificar o discurso predominante que embasa cada intervenção, através do seu conteúdo e do seu propósito.

Dessa forma, identificou-se uma concentração maior de discursos relacionados ao liberal (n=7), crítico (n=16) e pós-moderno (n=6), com destaque para o discurso crítico, que aparece como predominante em 51,61% dos artigos. O discurso conservador é o que menos embasa as intervenções aqui revisadas, aparecendo somente em 2 artigos (6,2%).

 

Discussão

Vimos que o ano de 2002 marca, nessa revisão, o início das publicações sobre intervenções no campo da educação brasileira e que após o ano de 2012 ela se intensifica. Em relação ao público-alvo das intervenções, a maioria delas atua diretamente com alunos, principalmente de anos finais do ensino fundamental e do ensino médio. Os delineamentos metodológicos mais utilizados são os qualitativos, numa perspectiva de intervenção em grupo baseada na promoção de oficinas, cursos, programas ou treinamentos sobre a temática. Acerca do discurso sobre educação sexual que fundamenta as intervenções, o discurso crítico é o que aparece na maior parte das publicações, seguido pelo liberal e pós-moderno.

Podemos relacionar o panorama das datas de publicação a alguns acontecimentos relacionados ao assunto no contexto histórico brasileiro. Em 2008, quando os Ministérios da Saúde e da Educação lançaram o projeto intitulado Escola sem Homofobia, ocorreram ataques dos parlamentares da bancada religiosa. Em maio de 2011, a Presidente da República em exercício cancelou o projeto - o que obrigou a suspensão das atividades relacionadas a ele. O impedimento do projeto está diretamente relacionado a críticas de cunho religioso, embasadas muito mais em crenças religiosas do que em métodos científicos em educação. Vemos que essas crenças continuam subsidiando diversas concepções contrárias à atenção sobre temáticas de gênero, sexualidade e diversidade, demonstrando-se como forças conservadoras e de cunho moral que, muitas vezes, desconhecem a abordagem científica sobre o tema.

Outra situação envolvendo a contrariedade ao trabalho da temática nas escolas é a do movimento contra a denominada "ideologia de gênero", propagado, principalmente, em redes sociais no nosso país a partir do ano de 2014. Esse movimento vem divulgando equívocos difundidos como verdades, utilizados em discursos políticos tendenciosos e sem embasamento científico. As principais ideias que sustentam os fundamentos desse movimento dizem respeito à distorção criada ao se referirem aos estudos de gênero, que são um conjunto de teorias científicas que vêm sendo desenvolvidas internacionalmente há quase oitenta anos, como uma ideologia, doutrinação ou simples opinião. Nesse sentido, Reis e Eggert (2017) apontam que criou-se uma falácia apelidada de "ideologia de gênero" que, segundo os que a atacam, direcionaria à destruição da família "tradicional", à legalização da pedofilia, ao fim da "ordem natural" e das relações entre os gêneros. Além disso, esses ataques negam a existência da discriminação e violência contra mulheres e pessoas LGBT comprovadas com dados oficiais e estudos científicos.

Ainda nessa perspectiva, no ano de 2014 foi desenvolvido e apresentado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro um projeto de lei nomeado "Escola Sem Partido". Desde então, há inúmeros projetos que pretendem estabelecê-lo em diferentes estados e municípios do país, alguns inclusive já tendo sido aprovados. O projeto parte da ideia de que os professores devem se ater exclusivamente em transmitir os conteúdos escolares disciplinares e que qualquer transmissão diferente desta seria vista como uma "doutrinação ideológica". A parte educacional a respeito de assuntos que envolvam valores morais, religiosos ou sexuais deveria ser, conforme o projeto, responsabilidade única e exclusiva das famílias (Amorim & Salej, 2016; Miguel, 2016).

Uma das questões de maior ênfase no projeto diz respeito aos temas de sexualidade e gênero, que são entendidas pelos representantes da proposta como algo que deve ser extinto do âmbito escolar. O projeto objetiva inviabilizar e mesmo incriminar todas as iniciativas educativas propostas pelos profissionais da área da educação que estejam relacionadas ou abordem temas como diversidade sexual, sexismo, LGBTfobia, combate ao preconceito ou desigualdades de gênero (Miguel, 2016).

Nossa revisão demonstra uma concentração maior de estudos de intervenção no campo da educação após as datas dos acontecimentos destacados. Porém, esse aumento não é tão expressivo em relação a tantas polêmicas e repercussões do tema no cenário social atual, o que denota a necessidade de estudos científicos e de intervenção que possam esclarecer o assunto tanto no contexto escolar, quanto no panorama social brasileiro em geral.

A inexpressiva taxa de publicações sobre intervenções na infância inicial parece estar relacionada à perspectiva que entende a sexualidade humana de uma forma simplista e reduzida ao ato sexual, pois se considera o trabalho sobre a temática predominantemente na adolescência, através da proximidade do início da "vida sexual". Além disso, as questões de prevenção são impossibilitadas sob esse viés, já que quando se pode trabalhar assuntos relacionados à consciência corporal e cuidado com o próprio corpo, prevenção de abusos, identificação de situações de violência e desigualdade de gênero, e o respeito a todas as pessoas desde a educação infantil, as/os professoras/es têm maiores possibilidades de exercer uma educação estruturante. O termo designa que os cuidados para a faixa etária em questão não se fundamentam unicamente em concepções desenvolvimentistas e pedagógicas da infância, ou seja, os cuidados nos primeiros anos de vida exercem funções estruturantes, levando em consideração a especificidade da primeira infância como período fundamental na construção da subjetividade das crianças (Rosa, 2011).

Um exemplo de intervenção em educação sexual com educadoras de pré-escola (Maia, Eidt, Terra & Maia, 2012) demonstrou receptividade e disposição das professoras para refletir sobre o tema, relatar situações presenciadas e buscar desconstruir atitudes que perceberam ser prejudiciais. As autoras constataram que a formação continuada das professoras permitiu que questões como sexualidade, corpo humano, gênero e discriminação fossem abordadas de forma pedagógica, informativa e ética, ilustrando a possibilidade e a importância de trabalhar com o tema desde a educação infantil.

Levando em consideração a função dos/as professores/as na formação dos/as estudantes e da baixa presença de intervenções para esse público na presente revisão, pontuam-se alguns dados da Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil, publicada pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) em 2016. A pesquisa apresenta um relatório sobre as experiências que pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais tiveram nas instituições educacionais relacionadas a sua orientação sexual e/ou identidade/expressão de gênero. Por meio de 1016 respostas efetuadas num questionário disponibilizado on-line, o relatório retrata níveis elevados e alarmantes de agressões verbais e físicas, ao mesmo tempo que expõe níveis baixos de respostas nas famílias e nas instituições educacionais que fazem com que tais ambientes deixem de ser seguros para muitos estudantes. A insegurança resulta em baixo desempenho, faltas e desistências, além de depressão e o sentimento de não pertencimento à s instituições escolares (Brasil, 2016).

A pesquisa também demonstra que em mais da metade das situações envolvendo comentários preconceituosos e discriminatórios na escola, os/as profissionais da instituição escolar não intervieram (Brasil, 2016). Nessa perspectiva, pontua-se que os/as educadores/as conhecem-nas superficialmente e necessitam de uma formação específica e continuada a respeito do assunto.

É percebida, nas práticas escolares, uma abordagem biologicista e heteronormativa quando se trabalha com a temática. Sugere-se a incorporação de discussões sobre a temática de gênero, sexualidades e diversidades, acompanhadas de um processo contínuo de formação e sensibilização. As práticas na escola precisam avançar para a promoção de uma educação inclusiva da diversidade de modos de vivenciar a sexualidade (Marcon, Prudêncio & Gesser, 2016).

Sobre os delineamentos das intervenções acerca da aprendizagem sobre gênero e sexualidade no contexto escolar, os trabalhos qualitativos parecem mais recorrentes. Uma revisão sobre pesquisas e práticas em redução do preconceito (Paluck & Green, 2009) demonstra que os mais variados delineamentos metodológicos - qualitativos, experimentais, quase-experimentais - podem estar a esse serviço de maneira efetiva. Bartos, Berger e Hegarty (2014) também analisaram a eficácia de intervenções destinadas a reduzir tais preconceitos, abordando artigos publicados de todo o mundo e constataram que o contato com pessoas homossexuais combinado com a educação sobre o assunto foram as variáveis mais significativas nas intervenções e não a metodologia ou delineamento dos estudos.

Podemos verificar que, em relação aos instrumentos utilizados nas intervenções, os estudos quantitativos se utilizam principalmente de escalas e questionários pois descrevem os procedimentos que foram realizados, de maneira geral, para avaliar a eficácia das intervenções ou as mudanças decorrentes de tal aplicação. Nesse sentido, os artigos de caráter quantitativo não costumam explorar o processo da intervenção em si. Já os estudos qualitativos são baseados em descrições mais detalhadas das etapas do processo interventivo e constroem atividades fundamentadas, geralmente, em metodologias participativas, que por vezes implicam os participantes como atores na construção da própria intervenção. Segundo Maheirie, Urnau, Vavassori, Orlandi e Baierle (2005), a implicação dos participantes na intervenção favorece a adesão às práticas de comportamento preventivo, favorecendo a emancipação dos sujeitos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos.

Em relação aos discursos que fundamentam as intervenções, a maioria se embasa no discurso crítico, já que integram as temáticas de sexualidade e gênero numa perspectiva individual e social. Essa integração pode ser evidenciada no estudo de Souza (2011), que aponta a importância da compreensão da realidade cotidiana dos/as alunos/as, permitindo a ligação entre o interno (pensamento do adolescente) e o externo (fenômenos sociais). Também pode-se evidenciar no artigo de Carvalho, Rodrigues e Medrado (2005), que afirma que a sua intervenção não se reduz simplesmente a passar informações sobre a dimensão biológica da sexualidade, mas busca trabalhar como dimensão integradora do ser humano, e no estudo de Beiras,Tagliamento e Toneli (2005), que considera a sexualidade nas suas dimensões biológica, psíquica e sociocultural.

A predominância do discurso crítico nos estudos aqui revisados vai ao encontro da perspectiva de luta que vem se destacando, ao longo das últimas décadas em nosso país, para a garantia de algumas das conquistas na área das políticas de educação relativas à sexualidade e gênero. Essas conquistas dizem respeito à produção de conhecimentos históricos e consolidação de críticas incisivas às características tidas pela tradição como naturalmente masculinas ou femininas e às afirmações biológicas sobre corpos, comportamentos e habilidades sobre as diferenças sexuais (Vianna, 2018).

No entanto, é importante pontuar que as perspectivas conservadoras e liberais, que entendem as intervenções em gênero e sexualidade como predominantemente individualizantes e responsabilizatórias, estão presentes no embasamento de um número considerável de intervenções. O fortalecimento do discurso pós-moderno em educação sexual que, segundo Jones (2011), é o que engaja as diversas sexualidades de uma maneira academicamente válida, poderia contribuir para intervenções mais abrangentes e que não negligenciem nenhum tipo de característica humana.

 

Considerações finais

Vivemos, na atualidade brasileira, num cenário de resistências em relação às diversidades, principalmente as relacionadas à sexualidade e gênero, em função das ondas conservadoras que vêm ganhando força através de movimentos políticos e religiosos. Nessa perspectiva, pontua-se que a produção do conhecimento científico sobre as intervenções nessa temática é necessária no reforço da discussão científica sobre o tema.

A falta de estudos que se refiram à faixa etária infantil relacionada à sexualidade e gênero, evidenciada nesta revisão, reflete a ideia do senso comum de que não se deve falar sobre sexualidade na infância, desconsiderando toda a perspectiva preventiva e de saúde que pode ser trabalhada desde o início da vida. Ademais, a maioria dos estudos encontrados foca como público-alvo estudantes e a minoria com professores/as e educadores/as, o que reflete outra problemática: a falta de capacitação e de valorização da função dos/as professores/as em nosso país, denotando a importância de estudos e intervenções que se dediquem a esse público.

As abordagens qualitativas apareceram em maior número nos estudos aqui revisados. Elas descrevem com mais detalhes as intervenções, contudo carecem de avaliação das mesmas, pois não se utilizam de métodos que avaliem o impacto ou as mudanças geradas. Sugere-se a incorporação de abordagens avaliativas juntamente às intervenções, possibilitando indícios para a reaplicação das mesmas.

Sobre os discursos que embasam as intervenções considerados aqui, pode-se pontuar que cada um deles contribui com a riqueza de possibilidades para a educação em sexualidade. No entanto, algumas críticas são necessárias, principalmente, às abordagens que podem ser desrespeitosas a determinados alunos e grupos sociais. Por isso, aponta-se o discurso pós-moderno como potencial no reconhecimento e engajamento de diversas sexualidades e no não negligenciamento das variáveis sociais e culturais presentes nas abordagens e nos conceitos reproduzidos sobre sexo, sexualidade, corpo, gênero, relações de poder, abusos, violências, discriminações e preconceitos.

Por fim, pontua-se a necessidade da visibilidade do tema quando discursos conservadores avançam nos contextos educacionais e sociais em nosso país. Os estudos dentro das áreas da psicologia e da educação devem ser reforçados para que possam trabalhar como propulsores de garantia de direitos e de qualidade de vida a todas as pessoas, amparados no embasamento de pesquisas científicas sobre os temas de sexualidade e gênero.

 

Referências

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Recebido em:10 Nov. 2020
Aprovado em: 07 Dez. 2021

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