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Revista da ABOP

versão impressa ISSN 1414-8889

Rev. ABOP vol.1 no.1 Porto Alegre jun. 1997

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre trabalho, identidade e projeto de vida: sua relação com o processo de orientação profissional 1

 

 

Cristina Almeida de Souza

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo

 

 


RESUMO

Este artigo baseia-se em síntese de parte do trabalho apresentado como dissertação de mestrado à PUC/SP sobre o processo de construção da identidade de jovens marginalizados socialmente. Utiliza para a compreensão da - categoria identidade o referéncial desenvolvido por Antonio da Costa Ciampa e ainda as contribuições de Berger e Luckman e de Habermas em relação ao tema e de Moffatt no que se refere a projeto de vida. Analisa a história de vida de um dos sujeitos, situada historicamente, como essa condição está intrinsecamente ligada à construção da representação de si e de que maneira interfere no seu projeto de vida, sendo este, por sua vez, um dos elementos constitutivos de sua identidade Finalmente, enfoca as representações que faz do trabalho e das carreiras que pretende escolher, mostrando a relação dialética entre esses aspectos.

Palavras-chave: Psicologia-social, Marginalização social, Identidade, Trabalho, Projeto de vida e adolescência.


ABSTRACT

This article is based on part of a masters thesis presented to P.U.C. about the process of identity construction in socially outcast young people. To understand the category identity it makes use of references developed by Antonio da Costa Ciampa, Habermas's Berger's and Luckman's contributions and also Moffat's references to life project. The article analises and socially situates the life story of one subject. lt verifies how this condition is intrinsically related to the construction of the representations of himself, and in which way it interferes in his fife project, which is one of the elements of identity. Finally it focuses on the representations the subject has of work and of the careers he intends to choose, showing the dialectic relation between these aspects.

Keywords: Social-psychology, Socially outcast, Identity, Work, Life project and adolescence.


 

 

Este artigo analisa no processo de construção da identidade de jovens marginalizados socialmente a importância do trabalho e a sua relação com o projeto de vida. E embora não direcionado à orientação frente à escolha profissional, poderá contribuir para a reflexão, nesse processo, da importância da identidade e de elementos na sua construção, ou de como se interrelacionam, identidade, projeto de vida e trabalho.

 

Quem são os jovens pesquisados

Os jovens pesquisados participaram de um programa de iniciação profissional e resgate da cidadania, desenvolvido a partir de convênio entre empresa estatal e secretaria de estado, direcionado para adolescentes de famílias com renda de, no máximo, meio salário mínimo per capita. Eram também atendidos jovens oriundos de instituições como a FEBEM. Essas condições econômicas contribuíram, ou definiram, alguns pontos em comum nas histórias de vida desses sujeitos: baixo nível de escolarização de seus familiares e deles próprios; pais, desempregados, sub-empregados ou empregados em funções desqualificadas na divisão social vigente no país; vivência de um cotidiano com experiências de violência e degradação, culminando muitas vezes com a desestruturação do núcleo familiar e abandono. Enfim, sujeitos provenientes daquelas camadas da população marginalizadas socialmente.

Ao referir-se a marginalização social, torna-se necessário explicitar esse conceito, que melhor seria se expresso entre aspas, indicando que não se adotam as concepções do senso comum, nem as das teorias funcionalistas que a vêm como uma desordem, na maioria das vezes provocada por aqueles que a vivem. Assim, como enfatiza Violante, essas concepções identificam "no indivíduo desvios psicológicos que se tornariam, então, responsáveis pelas suas condições de vida. Culpando-se a vítima, atribuí-se ao pobre a produção de sua pobreza" (1984, p. 185-186).

Prefere-se trabalhar com a abordagem de Pereira que considera como marginais "grandes contingentes populacionais (...) que estão no interior do sistema econômico, participantes do mercado de trabalho como ofertantes, mas não necessária e definitivamente incorporados ao processo global de produção..." (1978, p. 153).

Portanto, na concepção adotada, essa população não é "marginal" à sociedade, já que dela faz parte, sendo essencial para a manutenção e reprodução do sistema econômico vigente.

Entre os mais de 60 participantes do programa de iniciação profissional, aproveitados na empresa após conclusão do processo, foram escolhidos três sujeitos. Outros critérios adotados: eram jovens que de fato confirmaram a origem social proposta; ascenderam profissionalmente, pois não mais estavam nos cargos iniciais da hierarquia da empresa; e, finalmente, dos seus pontos de vista, tinham alterado suas perspectivas de existência a partir da inserção no projeto.

 

A origem do pesquisa

De início, com base na concepção marxista de trabalho (Marx, 1970), questionava-se qual o sentido que o trabalho alienado - no qual o trabalhador perde o controle sobre o processo e o produto do trabalho poderia ter para esses sujeitos e se, como tal, poderia contribuir para o resgate da cidadania.

Ao mesmo tempo, no decorrer da nossa experiência profissional com esses adolescentes foi possível perceber que as dificuldades por eles apresentadas não estavam sendo resolvidas simplesmente a partir da "oportunidade" de participação em um projeto desse tipo. Ao lado de dificuldades objetivas, como grau de escolarização incompatível com as exigências do mercado e da competitividade inerente ao sistema, outras, relativas à forma como se percebiam e se vinculavam à realidade foram se evidenciando.

Constatava-se que esses jovens se representavam como "marginais", que se excluíam ou e sentiam excluídos, ao mesmo tempo que a inserção nesse universo era vivida com muita "culpa" ("meus irmãos dizem que estou ficando diferente, ‘metida', importante"); ou com muito "peso" pois passavam, a partir daí, a contribuir significativamente para o sustento do grupo familiar.

Baseando-se na compreensão do homem "como produto e produtor, não só de sua história, como da história de sua sociedade" (Lane, 1988, p. 15), essas percepções conduziram,à necessidade de investigar como ocorre o processo de construção da identidade desses jovens e a sua transformação a partir da inserção no mundo do trabalho através de um programa de profissionalização.

 

Identidade e projeto de vida - aportes teóricos

Adotou-se a categoria de identidade conforme desenvolvida por Ciampa (1988, 1990), que vai entendê-Ia como processo de construção da representação de si, considerando contexto social e a historicidade desse processo.

Assim, é entendida como transformação, metamorfose, embora, geralmente, ela seja vista como dada, como estática. Para explicar porque isso ocorre, vai se utilizar dos conceitos de identidade pressuposta, reposição e superação. Para ele, o indivíduo, a nascer, imediatamente se acha inserido em um grupo social, que traz consigo uma série de expectativas, determinações ou representações prévias que são internalisadas pelo sujeito (identidade pressuposta). Quando mantidas pelo grupo, e repetidas pelo sujeito, ocorre então o processo de reposição. No entanto o sujeito pode se contrapor a esse processo construíndo uma história diferente daquela esperada: é quando ocorre a superação (Ciampa, 1988, p.66).

"... o caráter temporal da identidade fica restrito a um momento originário como se fosse a revelação de algo preexistente e permanente, quando, de fato, já vimos, nos tornamos nossas predicações interiorizamos a personagem que nos é atribuída, identificamo-nos com ela." (1990, p. 163).

Esse processo como tal é perpassado pela multiplicidade de papéis sociais que o indivíduo exerce e que se expressa, como individualidade concreta, sob a forma de personagem vivida..

Outra abordagem adotada para o estudo da identidade é a dos autores Berger e Luckman (1983) para quem a identidade é constituída a partir da interiorização que a criança faz dos papéis, atitudes e valores das pessoas encarregadas de sua socialização (outros significativos). Para os autores:

"...por meio dessa identificação com os outros significativos a criança torna-se capaz de se identificar a si mesma, de adquirir uma identidade coerente e plausível. Em outras palavras, a personalidade é uma atividade reflexa que retrata as atitudes tomadas pela primeira vez pelos outros significativos em relação ao indivíduo, que se torna o que é pela ação dos outros para ele significativos. Esse processo não é unilateral nem mecanicista. Implica dialética entre a identificação pelos outros e a auto identificação, entre identidade objetivamente atribuída e a identidade subjetivamente apropriada." (p. 1 71).

Neste trabalho tem particular importância a compreensão desses autores de que o processo de identificação da criança com o mundo de seus outros significativos é mediado pelo lugar que esse outros significativos ocupam na estrutura social e pelas suas "idiossincrasias individuais, decorrentes da biografia de cada um"(p. 176).

Ou seja, a criança vai apreender o mundo a partir da perspectiva de classe e com a coloração que lhe é dada pelos outros significativos encarregados de sua socialização.

Enfocando aspectos normativos da questão, as concepções de Habermans, referentes a maior ou menor autonomia do eu frente aos papéis sociais, respectivamente identidade do papel e identidade do eu, também foram consideradas para a compreensão dos dados obtidos.

A abordagem desenvolvida por Moffatt (1987), enfatiza a questão do projeto, pois considera identidade enqüanto continuidade, o que é assegurado pela cultura que permite ao indivíduo lidar com o paradoxo: "a pessoa deve mudar sendo a mesma [o que exige] a integração de todos os eus que fomos, mas em função do eu que desejamos ser" (p.9). Para ele, é o "eu que desejamos ser" que possibilita esse salto para o futuro, esse "movimento para adiante" (p. 17). Essa compreensão, além de ter sido confirmada pelos dados empíricos, contribuiu sobremaneira do ponto de vista metodológico: foi a partir da solicitação para que os sujeitos falassem sobre os seus projetos que alguns aspectos de suas identidades foram revelados.

Com base nesse referencial é possível afirmar que a identidade dos indivíduos determinada por suas condições históricas, formada a partir da interiorização de outros significativos ou da internalização de representações prévias, implica necessariamente em transformação, que vai ocorrer a partir da relação do sujeito com o mundo, com os outros e com o projeto de futuro. ou do eu que se pretende ser.

 

Objetivos e metodologia adotada

Buscou-se na pesquisa, desenvolvida dentro de uma perspectiva dialética, através da análise de relatos sobre suas histórias de vida, conhecer o processo de construção da identidade desses jovens. Algumas questões foram colocadas:

• Como se deu a identificação com os seus outros significativos, que exercem funções desvalorizadas e desqualificadas na divisão social de trabalho que se apresenta em nossa sociedade? Assumiram a explicação dominante que os responsabiliza por suas condições de vida?
• Paralelamente, procurou-se entender o sentido da metamorfose vivida, ou seja: houve reposição ou superação das expectativas atribuídas? E, qual a contribuição "do trabalho, a partir da inserção em um programa de iniciação profissional,, nesse processo?
• E, finalmente, qual o projeto de eu ou de futuro que pôde ser construído nessas condições?

 

Os dados obtidos

Entre as histórias de vida dos três sujeitos pesquisados, optou-se, neste artigo, pela apresentação de fragmentos e discussão da história de apenas um deles, pois parece evidenciar mais claramente o objetivo proposto neste artigo, ou seja a relação entre escolha profissional, concepção de trabalho, identidade e projeto de vida.

 

A história de Ana - O contexto familiar e a escola

Ana vivenciou fortemente a situação de exclusão social e discriminação, em decorrência de desemprego do pai, que levou a família a abandonar a sua casa e construir um barraco próximo a um lixão; local que veio a se constituir mais tarde em uma grande favela da cidade.

O pai, analfabeto, demitido do emprego de ajudante geral em, uma indústria têxtil, obtinha o sustento da família através do seu trabalho no, lixão, no que passou a ser acompanhado peles irmãos mais velhos da jovem.

A mãe, com grau de escolarização um pouco melhor (terceiro ano do primeiro grau) fazia "bicos" em gráficas e oficinas de costura..

"Quando eu cheguei lá não tinha nada. só o barraco que a minha mãe tinha feito com (....)três estacas e lona (...) e logo acima tinha o lixão, o lixão da Vila...

E o meu pai foi trabalhar nesse tal de lixão para catar latinhas para vender como ferro velho (...) e a minha irmã morria de vergonha...."

No entanto é na escola que a vivência de discriminação é experienciada, trazida pela colocação das irmãs (expectativas que vão sendo colocadas):

"Lembro que na escola eu ia tão mal vestida, eram as piores roupas, eram as roupas que sobravam das minhas irmãs (...) e eu lembro que às vezes pedia a borracha emprestada e elas (as colegas) falavam assim: "Ah, minha mãe falou que não era para emprestar"(...)Só que antes de elas (as irmãs) comentarem eu não sentia essa falta de amizade, depois que elas tocaram no assunto, eu percebi que não era para me aproximar como antes..."

E, nesse caso, a exclusão gerando a auto exclusão, a personagem discriminada que aparece e que a muito custo não abandona a escola, contando para isso com o apoio de alguns professores, das irmãs (outros significativos) e das próprias características da jovem: a personagem que gosta de aprender sendo esboçada.

 

O mundo do trabalho

As perspectivas de futuro a partir da inserção no mundo do trabalho estão delineadas socialmente e configuradas na conformada/excluída, ou seja, naquela que não pode nem deve aspirar muito em função da própria origem de classe e de raça. Tal processo, vivido por um sujeito concreto, e, como tal, matizado pelas seus aspectos idiossincráticos, parece, tem em vista ‘a manutenção de interesses sócio-econômicos determinados.

"...a minha irmã S. entrou para ser gráfica, a R. também, eu não via muito futuro pra mim também, eu. Falei assim: "eu vou ser gráfica também." Ganhar pouco, trabalhar sete dias por semana...quando eles quiserem, bem entenderem, você não tinha muita escolha (...)as pessoas passam prá gente, mulher de favela, que tudo é Deus.. .e não é verdade isso. Sabe, às vezes, um analfabeto pode fazer um serviço mil vezes melhor que uma pessoa que está lá há 5 anos. Elas não falam isso prá você. Elas procuram aproveitar a sua mão de obra, ...porque elas sabem que você é uma pessoa que não vai questionar. E porque você deixa fazer? Porque você cresceu para não, questionar, apenas para ganhar dinheiro prá poder comer..."

A partir do confronto com outras experiências - no caso, com a vivência propiciada pelo Centro de Treinamento - lhe são apresentadas condições concretas para que outras expectativas sejam colocadas e novas personagens delineadas. Assim, as expectativas da mãe em relação à jovem, originadas/confirmadas pelas suas características ("sempre gostei de estudar") e desempenho escolar ("nunca repeti de ano") vão se concretizar na trabalhadora-aprendiz, possibilitando a superação da trabalhadora conformada. Ou seja, o contexto social apresenta condições para que outras alternativas de identidade, que implicam perspectivas de ascensão social, possam se desenvolver e se expressar:"...vocês começaram a falar como crescer, como ter... como poder fazer as coisas..."

No entanto, tal condição favorável não é suficiente, pois surgem dificuldades em função da representação que faz da empresa e de si própria, da percepção de mundos que não podiam se comunicar; a personagem discriminada, marginalizada, reaparece:

"Você tem aquela visão da E., uma multinacional, uma coisa extraordinária. Você não está sabendo, mas as pessoas conversam com você com um pé atrás. As pessoas não passaram por isso. Automaticamente não dava para contar coisas da minha vida. O cara joga tênis, a gente "joga barro."

A jovem começa a perceber que não basta aprender a tarefa, mas que é necessário assimilar padrões de conduta e de relacionamento, ao mesmo tempo que aprender a jogar com eles. Vai tendo claro também os limites do trabalho alienado, "onde tudo já vem pronto, mastigado" e busca crescer, se desenvolver profissionalmente, superar o "script", restrito, acomodado que lhe foi apresentado. Isso vai se viabilizando quando passa a desenvolver um "trabalho que ninguém queria fazer", que faz bem, de modo que, depois "eles não podiam mais me dispensar. Esse processo culmina com a sua promoção para um cargo mais elevado na escala hierárquica da empresa.

Têm-se aí exemplificado o processo de construção de uma nova personagem, a trabalhadora competente, mas que só pôde se constituir a partir da discriminada, mostrando como a superação da identidade pressuposta não se dá de forma linear, mas dialeticamente, em espiral (Ciampa, 1990).

Ao mesmo tempo, fica patente como o processo de reposição de identidades pressupostas se articula com aspectos sócio-econômicos e com as relações sociais envolvidas no trabalho: a sociedade "necessita" de pessoas que executem atividades que "ninguém" quer fazer. E mais, de preferência que as façam de bom grado...

 

Os projetos de eu e de futuro

No momento de realização da pesquisa essa jovem se tornara uma trabalhadora competente, possibilitando-lhe assumir a responsabilidade pelo sustento do pai, da mãe e de quatro irmãos menores. Começa, assim, a surgir uma nova personagem, a provedora, que deve cumprir a sua "missão", antes de deixar de existir, condição para que outras personagens, assim como projetos mais pessoais possam emergir: o casamento, a Faculdade. São evidenciados aqui dois aspectos importantes no processo de construção da identidade: aquele de interiorização de expectativas no desenvolvimento de dada personagem, pressuposição e reposição; e o de busca de superação dessa personagem, procurando maior autonomia frente aos papéis sociais vividos.

Na discussão de seus projetos profissionais frente ao curso que pretende seguir as personagens discriminada e a que gosta de aprender reaparecem.

Inicialmente a aprendiz se coloca:

"O que eu sonho pra mim? (...) O que eu quero é aprender, eu sempre fui muito fanática por livros, por entendimento, sabe? Você poder falar facilmente, entender, sabe?. E uma coisa que eu quero fazer, não porque na empresa é a única maneira de você subir na empresa, entendeu? Mesmo se eu não tivesse entrado na empresa, eu teria seguido esse caminho porque é uma coisa que eu sempre quis fazer; eu sempre sonhei em ser psicóloga, ser administradora, entendeu? Saber alguma coisa, ler, e poder entender as coisas, estudar mesmo, porque eu adoro estudar."

As dificuldades de escolha entre os dois cursos surgem, aparentemente, decorrentes de razões bem objetivas: uma das escolhas está voltada para o seu desejo, mas, devido as suas condições econômicas, teria dificuldade em concretizá-la, enquanto a outra lhe parece mais viável. No entanto, outros aspectos vão sendo apontados:

"É porque eu estou indecisa porque eu não posso me dar o luxo de fazer Psicologia por satisfação, Ne, porque Psicologia é uma área muito restrita, é mais para o pessoal de alto nível, pessoal mais, financeiramente,. então, eu estou pensando. você vê que é uma área, por exemplo, se eu fosse uma pessoa de altas rendas, prá mim seria fácil (...) Agõra, como você vem de uma classe baixa, eu teria que recorrer a lugares do meu nível, que eu poderia suportar financeiramente..." (grifo nosso).

Aparece a vivência da discriminação, provocada também pela sua cor, que é objetiva. Certamente essa vivência é ampliada pela internalização dessa discriminação, pela personagem que está sendo reposta:

E como se eu estivesse dentro, mas prá algumas pessoas é corno se eu estivesse sempre do lado de fora, entendeu? (...) às vezes, eu tento me relacionar com certo tipo de pessoa, mas você percebe que ela tem aquela barreira, entendeu? E outra, o motivo de eu ser negra também, sabe, eu acho que isso dificulta muito porque, (...) eu acho que tem certas ocasiões que pesa realmente, eu não me sinto.., em certos locais, eu não me sinto muito à vontade na E., sabe? (grifo nosso)

Assim, os questionamentos e dúvidas quanto à escolha profissional têm um embasamento objetivo decorrentes do momento sócio-econômico, que concretamente dificulta mudanças de emprego. No entanto, supõe-se, interferem nessas indefinições a personagem discriminada que reaparece ("vindo de onde eu vim", "o motivo de ser negra", "vindo de classes baixas") e as representações das carreiras que pensa escolher: Psicologia e Administração.

 

Reflexões finais

Espera-se que a análise do desenvolvimento de um dos aspectos da identidade da jovem pesquisada, a personagem discriminada, tenha contribuído para deixar mais claro o processo de construção de idêntidade e a sua interrelação com trabalho e projetos de vida, sem empobrecê-la contudo. É fundamental a compreensão de que esse processo implica uma relação dialética, complexa e em movimento de aspectos subjetivos e objetivos, metamorfose, em suma.

Assim, a desvalorização decorrente de sua condição de negra, moradora de favela e filha de catador de lixo que lhe é atribuída pelo corpo social mais amplo e também pelo grupo familiar vai ser interiorizada pela jovem e exteriorizada na excluída, discriminada, inicialmente no período escolar.

Entretanto, diferentemente do que aconteceu com seus irmãos, a jovem não abandona a escola. Para tanto, é possível supor, contribuíram outras expectativas que lhe vão sendo colocadas pelos outros significativos presentes no contexto familiar (a mãe) e na escola (a professora) relativas à aprendiz, bem como aspectos da individualidade do sujeito (além do gostar de estudar, a sua força e determinação: "quando quero alguma coisa, mesmo de cabeça baixa eu faço"). Isso remete a Pichon-Rivière para quem o mecanismo de adjudicação de papéis é mediado pelas características próprias do sujeito e da sua história de vida, ou seja, a partir de sua "verticalidade" (1991,p. 128).

O mundo do trabalho na nossa sociedade impede ou dificulta que o trabalhador se reconheça naquilo que faz, que se transforme ao desenvolver uma atividade.. No entanto, existe, por parte da jovem, a busca por exercer uma atividade onde possa se reconhecer e onde não se limite a repetir tarefas desprovidas de significado. De alguma forma ela o consegue, ao mesmo tempo em que obtém reconhecimento e valorização do grupo social. A adoção, para isso, de uma atividade que "ninguém queria fazer", parece indicar uma estratégia para lidar com a emergência da discriminada, já que, julga, não lhe seria "permitido" exercer outras funções mais valorizadas pelo grupo.

Ao analisar os planos para o futuro da jovem é possível perceber a relação entre aquilo que "eu sou em função daquilo que eu quero ser" (Moffatt, 1987, p.9). Ou seja, os planos para o futuro limitando ou ampliando as possibilidades de identidade do sujeito e sendo, ao mesmo tempo, delimitados pela identidade e pelas condições de vida presentes.

Os projetos da jovem surgem relacionados às expectativas do contexto familiar de se tornar a provedora ou chefe de família (nesse aspecto, o projeto não está voltado para a ampliação/mudança). Mas, compreendem também que essa personagem deixe de existir, como condição para que outras possam surgir.

No campo da escolha profissional, outras personagens poderão ser construídas, agora relacionadas à aprendiz, à trabalhadora competente, implicando em estudar mais, fazer carreira. Para tanto, necessitam se defrontar com a discriminada que reaparece interferindo, limitando esses projetos, ou direcionando-os para uma carreira mais próxima "do seu nível".. De qualquer forma, necessário enfatizar, no seu projete aparece a procura em não repor expectativas do outro. Aparece então identidade como a busca de construção de um caminho pessoal, ou de um eu autônomo, identidade do eu, de que fala Habermas.

Acredita-se, dessa maneira, ter deixado claro a relevância, em um processo de orientação frente à escolha profissional, da reflexão de como estão imbricados os aspectos da identidade do sujeito, os seus projetos e a forma como são representadas as atividades que exerce e as profissões que pretende escolher. O sujeito, no caso apresentado, pôde escolher algo não tão valorizado socialmente, ou desvalorizado por ele próprio, porque "estava no seu nível". Outro sujeito, baseando-se nos mesmos mecanismos, pode escolher profissões ou carreiras com status elevado, pois se fizer opção por algo desvalorizado socialmente, estará referendando a visão negativa de si mesmo; dessa forma, por meio de um processo defensivo, escolhe algo que, aparentemente, expressa um movimento oposto. Outro sujeito poderá seguir uma outra trajetória. Cabe, portanto ao profissional, atento a esse processo investigar as alternativas e caminhos possíveis.

Ao mesmo tempo, espera-se, ter enfatizado a necessidade de considerar nesse processo as condições objetivas decorrentes da origem de classe do sujeito e do momento sócio-econômico, definindo limites, mas, também, perspectivas e desafios.

 

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1 Este artigo realiza uma síntese de parte da dissertação de mestrado apresentada em 1994 ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, tendo contado com o apoio financeiro do CNPq.