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Revista da ABOP

versão impressa ISSN 1414-8889

Rev. ABOP vol.1 no.1 Porto Alegre jun. 1997

 

ARTIGOS

 

Contribuições da Gestalt - Terapia para o referencial teórico da Orientação Profissional

 

 

Ingrid Robinson Canedo *

Fundação Municipal de Saúde de Niterói - RJ
Formação em Orientação Profissional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

 

 


RESUMO

A minha vivência enquanto Orientadora Profissional e Gestalt - Terapeuta faz com que eu perceba a relação existente entre a modalidade de Orientação Vocacional proposta por Rodolfo Bohoslavsky e os pressupostos filosóficos, éticos e metodológicos da Abordagem Gestáltica criada por Frederick Perls. Neste texto descrevo como alguns fundamentos do método gestáltico já são utilizados na prática dos Orientadores Profissionais, e de como um maior aprofundamento deste referencial teórico e técnico em muito contribui para a compreensão do nosso trabalho.

Palavras-chave: Orientação profissional, Gestalt-terapia, Ciclo de auto-regulação, Conscientização, Figura-fundo.


ABSTRACT

My know-how as a Vocational Counseling and Gestalt Therapy Professional makes me perceive the existing relation between the Vocational Counseling Modality proposed by Rodolfo Bohoslavsky and the philosophical, ethical and methodological concepts of the Gestalt Therapy created by Frederick Perls. This text describes not only how some of Gestalt method basis are being used in the professionals'perfomance, but also how deepening of this theorical and technical reference contributes a lot for our work perception.

Keywords: Vocational counseling, Gestalt-therapy, Self-regulation cycle, Awareness, Figure-fund.


 

 

A Orientação Profissional é um processo que se dá frente a uma situação de escolha; é uma trajetória que tem por finalidade levar os orientandos a uma reflexão sobre sua problemática vocacional e possível elaboração. Nesta forma de Orientação, abandona-se a visão do adolescente como objeto de observação e diagnóstico - reator, levando-o para a posição de sujeito - proator, capaz de decidir e fazer escolhas. Os testes deixam de ser o centro do processo, passando este a ser ocupado pelo encontro entre orientador e orientando. Cria-se assim um espaço no qual o adolescente pode elaborar seu projeto vocacional-ocupacional.

Os testes são substituídos por exercícios auto-aplicáveis que intensificam a participação do orientando e auxiliam a caracterizar a intervenção do psicólogo como de ajuda e não mais, o de fornecedor de soluções.

A Gestalt-Terapia surge enquanto abordagem terapêutica em 1952 com a fundação do "Gestalt Institute of New York" por Frederick e Laura Perls. Seus primeiros fundamentos contudo estão presentes desde 1942 no livro "Ego, Hunder and Agression" (6,p. 10), considerado pelo próprio Perls como a sua transição da Psicanálise para a Abordagem Gestáltica. Esta abordagem tem como preocupação básica a promoção do processo de crescimento e desenvolvimento do potencial humano. A terapia gestaltica recebe diversas influências, entre as mais marcantes estão: a Psicologia da Gestalt de Max Wertheimer, Wolfang Kohler e Kurt Koffka; a Fenomenologia e a Teoria Organismica de Goldstein.

O Gestalt-Terapeuta fundamenta a sua prática numa compreensão do homem enquanto:

• um ser responsável e digno de confiança. Capaz de escolher, responsabilizando-se por suas escolhas e tendo por isso liberdade para mudá-las;
• um ser em relação com o mundo, que só pode ser apreendido através de um olhar holístico;
• um ser que busca equilíbrio e auto-realização, organizando-se naturalmente para alcançar suas preferências e satisfazer suas necessidades, através de trocas com o meio;
• um ser que busca respostas existenciais para suas vivências, encontrando-as apenas no seu momento experencial presente;
• um ser voltado para a consciência, ou seja, atento ao mundo que o cerca e a si mesmo.

Estas duas modalidades de trabalho: Gestalt-Terapia e Estratégia Clínica de Orientação Vocacional fundamentam-se numa concepção humanística, o que faz com que muitos dos pressupostos filosóficos que estruturam a Abordagem Gestaltica, já descritos acima, estejam presentes no dia a dia do orientador profissional.

Um maior aprofundamento de alguns conceitos teóricos e metodológicos desta abordagem, em muito pode contribuir para o aprofundamento e entendimento da eficácia da modalidade clínica, assim como auxiliar na construção de um modelo teórico da problemática vocacional.

A Gestalt-Terapia organiza-se a partir de uma metodologia que busca compreender com o seu cliente, suas dificuldades, conflitos, vivências.., utilizando para isso um referencial fenomenologico – existencial e afastando-se deste modo das explicações causais e estruturais. Dos diversos conceitos que compõem esta teoria, destacarei:

• capacidade de auto-regulação do organismo (ciclo de contato)
• figura e fundo (parte/todo);
• o tripé: aqui-agora / contato / fluxo de conscientização (awareness); buscando correlacioná-los com a nossa prática.

O ciclo de contato é um conceito fundamental na formulação da Abordagem Gestáltica Ele provém das influências que Perls recebeu da Teoria Organísmica de Kurt Goldstein. Esta compreende o homem, como um organismo que interage com o meio através do processo de homeostase, estando por isso em constante relação de troca com este.

Para Golstein: "O organismo é uma só unidade, o que ocorre numa parte, afeta o todo" (10, p. 107). Além disso ele acredita que o homem possui em si., um potencial para a ‘auto-realização : "A auto-realização é uma tendência criativa da natureza humana. E o princípio orgânico pelo qual o organismo se desenvolve plenamente"(10, p. 111).

Perls, partindo deste conceito fala:

"Chamamos de organismo qualquer ser vivo que possua órgãos, que tenha uma organização e que se auto-regule. Um organismo não é independente do ambiente... O organismo sempre trabalha como um todo... Saúde é um equilíbrio apropriado da coordenação de tudo aquilo que somos" (6 p. 19-20).

Joseph Zinker no livro El Processo Creativo en la Terapia Guestaltica (12,p.77-84), resume estes conceitos através da formulação do Ciclo de
Auto Regulação do Organismo descrito abaixo:

 

 

O ciclo inicia-se com o indivíduo (organismo) em estado de retraimento, contudo quando surge uma necessidade que é assimilada pelo sujeito através de uma sensação ou sentimento ( ex.: "Minha boca está seca" ), ele começa naturalmente a buscar a satisfação desse desejo, através da sua relação com o meio/mundo. Toma consciência da necessidade - "Estou com sede" - mobiliza energia para a satisfação desta e parte para a ação - Anda até a cozinha para pegar um copo de água. Ao beber a água estabelece um contato satisfatório, saciando a sua sede, e podendo retornar novamente ao estado de retraimento até que outra necessidade se instaure.

É nesta compreensão que o Gestalt-Terapeuta baseia a sua terapia e a crença de que se o seu cliente tiver um meio adequado, ele será capaz de voltar a auto-regular-se, resolvendo seus conflitos. Ele acredita que as dificuldades de seu cliente são oriundas das diversas interrupções sofridas por este no seu processo de auto-realização.

Esta formulação teórica em muito contribui para a compreensão do processo de escolha do adolescente e os benefícios obtidos por este numa abordagem clínica de Orientação Profissional.

O orientando quando chega à Orientação Profissional vem com uma necessidade - escolher unia profissão. Nós, orientadores, acreditamos que ele é capaz de optar, ou seja, que este adolescente tem condições de tomar uma decisão e partindo desta crença. oferecemos a ele um meio adequado, no qual ele possa naturalmente percorrer o ciclo de auto-regulação e satisfazer sua necessidade.

O orientador vocacional acredita que o sujeito a sua frente não escolhe, por limitação ou incapacidade mas sim porque seu processo de auto-realização foi interrompido. Sua capacidade de auto-realizar-se, ou seja, alcançar sua identidade vocacional - ocupacional, encontra-se bloqueada por identificações familiares, pressões sociais, desconhecimento de si e do mundo ocupacional. O adolescente encontra-se alienado de seus desejos, medos, motivações e muita das vezes desvinculado do seu mundo pessoal/social/cultural/familiar. O processo de Orientação Profissional restabelece a homeostase do organismo, já que oferece ao orientando um espaço para pensar sobre suas dúvidas, falar de suas apreensões, conscientizar-se de suas identificações, contatar com seus interesses, aptidões, desejos e informar-se sobre o meio ocupacional-profissional.

Restaura-se assim, no adolescente o seu processo de auto-regular-se e decidir-se não apenas quanto ao seu futuro profissional mas consequentemente quanto ao existencial - "Quem quero ser ?"

Desenho:

 

 

Tomando por base a frase - "O que quero fazer envolve quem quero ser", introduzo um outro fundamento da Gestalt-Terapia: o conceito de figura e fundo - parte/todo.

Sabe-se que a estruturação da percepção de um objeto-estímulo se dá a partir de uma figura em relação a um fundo e que a nossa percepção sempre apreende qualquer estímulo a partir de uma gestalt - visão do todo.

A figura é parte de um todo e só pode ser compreendida em relação ao fundo, não existindo sem este. Por exemplo, no desenho abaixo, enxergamos a taça, colocando o fundo com a parte escura e duas faces, caso a parte branca torne-se o fundo. Em função da organização da nossa percepção do todo (figura-fundo), alteramos a nossa percepção do desenho, modificamos a nossa gestalt; visualizamos a taça ou duas faces.

Desenho:

 

 

Esta contribuição da Psicologia da Gestalt de Wertheimer, Koftka e Kohlfer (12,p.79-81) permite ao Gestaft-Terapeuta compreender como figuras, as necessidades que mobilizam o indivíduo para ação, nunca esquecendo que estas são partes de um fundo e que figura e fundo juntos, formam um todo, que é igual a mundo existencial do sujeito.

O Gestalt-Terapeuta atua através da focalização da sua atenção nas diferentes figuras que aparecem na sessão de psicoterapia, que podem ser: sentimentos, idéias, expressões corporais, e considera que estas fazem parte de uma totalidade. Entende ainda, que o trabalho em uma parte/figura leva consequentemente a uma mudança na estrutura / todo do cliente.

Durante o processo de Orientação Vocacional, focalizamos a nossa atenção na figura - identidade vocacional - ocupacional do adolescente (desenho 1). Buscamos retirá-la do fundo, desbloqueá-la, se for o caso, e até mesmo atingi-la durante -o processo de orientação. Sabemos, contudo que a resolução da problemática vocacional não tem necessariamente que se dar durante as sessões de Orientação Profissional; desde que a autoregulação se instaure, o processo de resolução se dará naturalmente, num momento, que muita das vezes, como mostra a prática, ocorre após o término dos encontros.

No desenho 2, temos como figura - a necessidade da escolha - e como fundo - as influências que esta tomada de decisão recebe.

 

 

O fundo é construído a partir da relação do sujeito com o mundo (familiar, social, político...). Ele é singular e encontra-se em processo de constante transformação. O constructo figura/fundo - parte/todo reforça a questão de que, ao se trabalhar com o adolescente o que ele quer fazer, mobiliza-se ao mesmo tempo quem ele quer ser.

Através da focalização na problemática vocacional do adolescente alcançamos a questão existencial - " Que pessoa me torno quando escolho, por exemplo, ser Arquiteto?"

O terceiro ponto que gostaria de tratar neste texto, é o tripé: consciência/aqui-agora/contato. Este é um dos principais instrumentos do gestalt-terapeuta no trabalho com seu cliente e interliga os conceitos já descritos.

O gestalt-terapeuta trabalha o tempo todo no aqui-agora do comportamento do cliente. Este torna-se, através da relação com o terapeuta, capaz de focalizar suas dificuldades (figuras) e atualizar seu passado (fundo = situações inacabadas), de modo a dar-se conta (conscientizar-se) de como o seu passado aparece em seus comportamentos atuais, impedindo-o muita das vezes de ter relações satisfatórias e prazerosas.

A terapia se dá através do contato pelo paciente com suas áreas alienadas, suas dificuldades, seus conflitos, sua criatividade..., experenciadas no presente da relação terapêutica. O terapeuta, em conjunto com o cliente, dá luz a este processo, levando-o a çonscientizar-se e responsabilizar-se cada vez mais, pelo seu si mesmo.

"O conscientizar-se fornece ao paciente a compreensão de suas próprias capacidades, habilidades, de seu equipamënto sensorial, motor e intelectüai... O conscientizar-se fornece algo mais ao consciente... O conscientizar-se, o contato e o presente são simplesmente aspectos diferentes de um mesmo processo - a auto-realização. É no aqui-agora que nos damos conta de todas as nossas escolhas, desde pequenas decisões patológicas (ajeitar um lápis na posição exatamente correta) até a escolha existencial de dedicação a uma causa ou profissão" ( Perls,7,p.77-78).

No processo de Orientação Vocacional leva-se o orientando, durante as sessões, a fazer contato com suas dificuldades e facilidades com relação a escolha profissional. Permiti-se qup ele descubra o que está interrompendo o seu livre fluir, o seu processo de se auto-regular e impossibilitando-o de fechar a gestalt - decidir, escolher. A medida que o adolescente possui espaço para: fazer contato com suas possibilidades ,desejos, interesses, aptidões, conflitos, identificações - auto-conhecimento, e com o seu meio ocupacional-social - informação profissional, ele estabelece uma nova percepção do seu momento e da sua decisão.

Dentro da visão gestáltica, esta decisão só pode ser tomada momento presente, que é sempre um momento existencial, no caso da Orientação, a adolescência.

Durante o Processo de Orientação Profissional, o adolescente conscientiza-se da sua responsabilidade, ou seja, do seu compromisso com suas escolhas. Torna-se consciente de que, a opção profissional, alcance da identidade vocacional /ocupacional, se dá a partir de um processo e não de uma resposta. Percebe que a escolha é sua e não do outro e que possui liberdade para mudá-la, já que esta lhe pertence.

O quadro abaixo resume este processo:

 

 

Gostaria de finalizar este texto com a fala de três adolescentes ao final, de um trabalho grupal de Orientação que resume e complementa o que já foi dito anteriormente:

R. 17anos - 3º ano do 2º grau :

"Quando me perguntam agora o que deu na OV, eu respondo: Deu EU e EU escolhi ser advogado", sorri quando comenta isto.

Este adolescente no início do processo, mesmo entendendo a diferença entre este tipo de OV e a OV estatística e gostando da proposta de trabalho, perguntava sobre a possibilidade de ter um laudo para mostrar para as pessoas.

A. 17 anos - 3º ano do 2º grau :

"Embora eu esteja confusa com relação as minhas diversas possibilidades vocacionais, este trabalho foi a melhor coisa que me aconteceu pois eu estou mais consciente de mim mesma e sou capaz de assumir minhas dificuldades e minha necessidade de ter mais tempo para poder optar. O melhor para mim foi ter aprendido a dizer que agora não é o meu momento de escolha".

V. 17anos - 3º ano do 2º grau :

"Eu vou fazer Jornalismo. Entendo que esta é a melhor opção que posso fazer no momento e que tenho a possibilidade de mudá-la mais a frente, caso queira. Eu aprendi que tenho liberdade de opção e que a escolha é para mim mesma".

 

Bibliografia

BOHOSLAVSKY, Rodolfo - Orientação Vocacional - A Estratégia Clínica, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1981.         [ Links ]

FAGAN, Joen e SHEPHERD, Irma Lee - Gestalt - Terapia. Teoria, Técnicas e Aplicações, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1970.         [ Links ]

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* Psicóloga da Fundação Municipal de Saúde de Niterói - RJ - Formação em Orientação Profissional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.