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Revista da ABOP

versão impressa ISSN 1414-8889

Rev. ABOP vol.1 no.1 Porto Alegre jun. 1997

 

ARTIGOS

 

Associações – Contexto sócio-econômico e compromisso social dos profissionais 1

 

 

Marilu Diez Lisboa 2

Conselho Especial de Ex-presidentes da Associação Brasileira de Orientação Profissional

 

 

Em primeiro lugar, gostaria de manifestar minha satisfação em estar participando desta Mesa Redonda e a honra de estar presente neste encontro a convite do colega e companheiro de embates na área da Orientação Profissional, especialmente na ABOP - Associação Brasileira de Orientadores Profissionais, Professor Dr. Tabajara Dias de Andrade.

O tema Associações aliado ao compromisso do profissional com a sociedade no atual contexto histórico me é muito caro, uma vez que pertenço a uma geração que viveu os últimos momentos de uma luta em nome do bem estar social, do coletivo, da preocupação com o outro enquanto ser, sujeito da sua e da história dos seus semelhantes.

Tratar deste tema tem, sido o resgate de uma história pessoal que se iniciou e foi cortada, como tantas outras, deixando um vazio em realizações objetivas nos moldes então pretendidos, mas nunca uma ausência de idéias, preocupações e, fundamentalmente, do ideal de busca de um mundo melhor.

O tema compromisso social do trabalho vem sendo desenvolvido em conjunto com os estudos sobre trabalho, por alguns autores. Chamou-me a atenção, entre todos, o do professor Paulo Freire, em seu livro Educação e Mudança, onde dedica um capítulo, com o nome "O compromisso do profissional com a sociedade". Os conteúdos referentes a esse trabalho serão aqui enfocados posteriormente.

Através de estudos referentes à economia e à história vimos encontrando a relação direta e, até elementar enquanto concepção, do trabalho com a transformação social. Ou seja, desde que o homem se constituiu como tal foi necessário, para a sua sobrevivência, o desempenho de atividades que propiciassem o convívio e a superação dos fenômenos da natureza que sempre representaram uma forte ameaça à própria vida humana. Como uma escalada em busca da superação dos desafios à vida, o ser humano foi evoluindo através dos tempos de forma que passou a dominar muitos fenômenos naturais se fortalecendo e transformando não só a natureza como as relações que foram se estabelecendo nesse processo: o da formação da sociedade.

Digamos que esta seja uma forma muito simples de introduzir a representação da atividade humana - o trabalho - como responsável pela superação da natureza e a formação da sociedade humana, sendo a segunda, necessariamente, legitimada pelo primeiro.

Reportando-nos aos dias atuais, momento em que o ser humano evoluiu a níveis talvez inimagináveis em termos do que se possa chamar de superação dos desafios impostos pela natureza bem como nas relações sociais que daí decorreram, parece ter havido uma espécie de dissociação da relação existente entre evolução, ou construção e transformação social, e trabalho. Ou seja, poucos são aqueles, em nosso contexto, que possuem a consciência de que o seu fazer diz respeito, diretamente, a um processo social amplo quer em termos de manutenção quer em termos de evolução da sociedade. Em especial entre os jovens essa consciência parece inexistir, como concepção de trabalho ou, até, simplesmente como um dos fatores pertencentes ao seu iminente futuro desempenho profissional.

Cabe referir aqui, a título de ilustração, sobre um trabalho que realizei com aproximadamente duzentos jovens de classe média, em escolas particulares de São Paulo, sobre a escolha da futura profissão. Ficou constatado que, exceto raríssimas exceções, a motivação para a escolha profissional futura centrava-se no ganho financeiro, caminho para a aquisição de bens materiais imediatos e representativos de conforto e status. Jamais foi colocada qualquer preocupação com o trabalho vinculado à construção ou à transformação da sociedade. Em alguns casos foi trazida a concepção de trabalho como um fim de realização pessoal sendo, ainda assim, dada prioridade ao ganho indireto que o trabalho poderia representar, ou seja, a obtenção de bens materiais através do exercício profissional futuro. Faz-se importante salientar que refiro-me, aqui, a uma pequena fatia da população que ainda tem a chance de escolher uma futura profissão, escolha esta muito mal cuidada em nossa sociedade uma vez que os pais e as instituição escolares muito pouco se preocupam em dar, efetivamente, uma assistência aprofundada aos jovens nesta fase de vida, quer por desinformação quer por impossibilidade de vincular-se ao assunto de forma mais equilibrada.

Ao analisarmos outros segmentos da população de trabalhadores, o fator ganho imediato representativo de conforto e status se configura igualmente como o mais importante em detrimento da preocupação com o grupo social, da evolução deste grupo, das bases para que os mais jovens venham a desenvolver ou criar, futuramente, os projetos ora concebidos ou novos projetos. Ou seja, encontraremos a quase ausência de uma visão mais abrangente enquanto sociedade, enquanto compromisso com um presente e um futuro que representem as condições necessárias para cada um "ser mais" - conforme nos coloca Paulo Freire: ser mais no sentido da humanização e da hominização.

Cabe aprofundar por um momento o que venha a ser trabalho e compromisso com a sociedade e, como base para esta vinculação, o que venha a ser consciência.

 

Trabalho e Compromisso com a Sociedade

A vinculação do trabalho como compromisso com a construção e a transformação da sociedade deve partir de dois pilares fundamentais que são: a compreensão do que é trabalho e a clarificação do que se entende por transformação da sociedade.

Iniciando pela compreensão do que seja trabalho, podemos nos reportar a MARX e ENGELS, que afirmam estar a essência do ser humano no trabalho. O que os homens produzem é o que eles são. Assim, o homem é o que ele faz. E a natureza dos indivíduos depende, portanto, das condições materiais que determinam sua atividade produtiva. Deixam aparecer em muitos textos uma teoria antropológica do trabalho, colocando que o trabalho seria o fator que faz a mediação entre o homem e a natureza. E o esforço do homem para regular seu metabolismo com a natureza. E assim também, através do trabalho, o homem se transforma a si mesmo.

Trabalho, pode então ser aqui entendido dentro da concepção acima exposta, ou seja, abrangento todo o fazer humano e seu papel na construção filo e ontogenética do homem. Se constitui no exercício de atividade que permita a criação, o ser mais, o estar consciente de seus atos e de sua história, construída por si mesmo, para si mesmo, com o grupo e para o grupo.

FERRETTI (1988) nos diz que nas sociedades atuais, mesmo as pessoas que realizam uma atividade artesanal aparentemente isolada (por exemplo uma bordadeira), dependem de outros para executar seu trabalho. Ela depende, por exemplo, dos comerciantes que lhe vendem o tecido e a linha, dos que anteriormente produziram esses bens, dos que os transportarem etc. O trabalho engendra a vida
social e, ao mesmo tempo, é por ela determinado. Assim, querendo ou não os homens, para transformar a natureza em seu benefício, constituíram, ao mesmo tempo, formas de relacionamento com outros homens.

Nestas dimensões colocadas pelos autores citados é possível o compromisso. Segundo FREIRE (1988), o compromisso seria uma palavra oca, uma abstração, se não envolvesse a decisão lúcida e profunda de quem o assume. Se não se desse no plano do concreto. Ao mesmo tempo, a primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido está em ser capaz de agir e refletir. E preciso que seja capaz de, estando no mundo, saber-se nele. Saber que, se a forma pela qual está no mundo condiciona a sua consciência deste estar, é capaz, sem dúvida, de ter consciência desta consciência condicionada. Se a possibilidade de reflexão sobre si, sobre seu estar no mundo, associada indissoluvelmente à sua ação sobre o mundo, não existe no ser, seu estar no mundo se reduz a um não poder transpor os limites que lhe são impostos pelo próprio mundo, do que resulta que este ser não é capaz de compromisso. E um ser imerso no mundo, no seu estar, adaptado a ele sem ter dele consciência.

O homem somente pode comprometer-se pela relação homem-realidade, homem-mundo. Para FREIRE (1988) esta relação homem-realidade, homem-mundo, ao contrário do contato animal com o mundo, implica a transformação do mundo cujo produto, por sua vez, condiciona ambas, ação e reflexão.

O existir humanamente consiste no que queremos dizer enquanto possibilidade de transformação social. Parte-se do princípio de que através do trabalho seja possível caminhar no sentido da hominização uma vez que a transformação deve ficar entendida como um movimento no sentido de "ser mais", tanto individual como coletivamente.

Ainda segundo FREIRE (1988), a neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso. Este medo quase sempre resulta de um "compromisso" contra os homens, contra a humanização, por parte dos que se dizem neutros. Estão, sim, "comprometidos" consigo mesmos, com seus interesses ou com os interessos dos grupos aos quais pertencem somente. E como este não é um compromisso verdadeiro, assumem a neutralidade impossível. Comprometer-se com a desumanização é assumi-la e, inexoravelmente, desumanizar-se também.

 

Consciência

Com base no que sé tem constatado através de observações sobre a relação entre trabalho e compromisso social, na grande maioria dos indivíduos, em nossos dias, no contexto sócio-econômico-cultural brasileiro, não seria possível fazer-se a vinculação entre trabalho e compromisso com a sociedade sem levar-se com consideração o que seja consciência. Parece estar ocorrendo que, através do exercício da consciência, é possível nos aproximarmos desta relação e que, sem ela, cada vez mais se efetiva a concepção de trabalho primordialmente como o caminho para a obtenção de bens materiais, incrementando o individualismo, o egoísmo, o distanciamento do outro e, consequentemente, do compromisso social.

Segundo MERANI (1977) a definição mais comum de consciência psicológica ou intelectual é a do sentimento ou intuição, mais ou menos nítido, do que se passa em nós e fora de nós; é perceber o que acompanha a atividade psiquica - mental ou afetiva - e a apresenta como real ou atenuante, por assim dizer, em qualquer momento.

Para FREIRE (1988), a consciência se reflete e vai para o mundo que conhece: é o processo de adaptação. A consciência é temporalizada, isto é, o homem é consciente e, na medida em que conhece, tende a se comprometer com a própria realidade.

Observamos um ponto se faz presente na conceituação dos autores citados: é a questão da ação. Parece impossível consciência sem ação ou atividade. Nesta medida, voltamos necessariamente para a discussão do compromisso, pois consciência aliada a ação - dentro do conceito de consciência crítica, ao contrário de consciência ingênua - leva ao compromisso.

 

Compromisso Aliado ao Papel das Associações

O compromisso não se caracteriza por um ato isolado. O ser comprometido o está com algo ou com alguém. Se com algo, mesmo assim estará com alguém, pois os processos se dão nas relações estabelecidas entre as pessoas.

Assim, o compromisso pressupõe o envolvimento de outros seres, pressupõe a associação de pessoas, a ajuda mútua.

Segundo CUSTODIO (1979), o problema das associações data dos primórdios da humanidade, uma vez que se encontra consignada na Bíblia Sagrada. É um problema de todos os tempos, com características próprias de cada época porque se origina não somente dos elementos inerentes à natureza humana e à vida em sociedade, mas também dos fenômenos próprios da evolução social. Em nenhum período a história nos oferece o exemplo de uma vida ideal. Ao contrário, nos chama a atenção que em todos os períodos nos chegam exemplos de injustiça e os protestos daí decorrentes. Platão concebeu uma sociedade ideal, os utopistas chegaram a planejar um estado social ideal e, no século XIX, a crítica social dá origem a movimentos revolucionários. Com o desenvolvimento do capitalismo constata-se cada vez mais o ser humano voltado para si mesmo no sentido do "ter mais", e do "fazer" em função de ter. Parece que tudo se justifica em nome da obtenção do querer obter mais, e, ainda, mais que o outro. A solidariedade passa a ter um lugar cada vez mais restrito uma vez que a preocupação com o grupo, com o coletivo, não tem mais a importância devida ou, mesmo, a importância que tinha em outros tempos ou, ainda, em outros tipos de sociedades. Não se trata de idealizar outros sistemas, mas é fato que o capitalismo induz ao individualismo. E o culto ao individualismo é um passo para o egoísmo. A competição vai tornando-se desenfreada em nome da necessidade de obtenção de um espaço: na sociedade, de reconhecimento, de consumo, no mercado de trabalho. Acredito que hoje já poderíamos falar de algo como "mercado da vida", uma vez que todos os setores da existência humana estão sendo tomados pela competição, pelo "ter". O modelo é do "ter". Ter status, ter saber, ter coisas, necessariamente em relação ao outro, pois a vida em sociedade pressupõe a relação e a referência é sempre o outro. Enquanto as pessoas voltam-se mais e mais para si e distanciam-se mais e mais do outro, vão perdendo a condição específica e máxima do "ser": a condição humana. Perdem nas relações, perdem nas conquistas já realizadas, não as valorizando ou delas resgatando o que têm de positivo, perdem, enfim, para si mesmas e de si mesmas.

Não podemos deixar de considerar que nos últimos tempos, dado ao que chamamos de evolução nas diversas áreas: técnica, econômica, social e política, embora se distanciando mais do que nunca faz-se necessário que os homens se associem uns aos outros, porque fundamentalmente está provado que a obtenção de qualquer fim se torna muito mais difícil se partir de uma ação isolada. Nesta medida, torna-se da maior importância o papel desempenhado pelas associações.

As associações se caracterizam pela reunião de pessoas com a finalidade de alcançar objetivos comuns, o que, necessariamente, significa abdicar parcialmente dos objetivos individuais em função dos objetivos coletivos.

A globalização, enquanto manifestação econômico/social, encerra em si mesma a contradição de aproximar e isolar ao mesmo tempo os seres humanos. A tecnologia e a racionalidade instrumental se colocam como protagonistas do momento atual. Enquanto nos servimos, cada vez mais, dos computadores e do sistema de telecomunicações (televisão interativa, telefax, vídeo telefone etc.), que nos porpiciam trabalhar isoladamente de outros seres humanos, torna-se ao mesmo tempo necessária a interação humana através de associações que garantam os princípios das relações características de cada segmento em questão: científico, jurídico, de serviços, sindical, econômico, artístico, literário, religioso, esportivo, beneficiente, educacional etc. , salvaguardando as questões de suas produções e da ética, que competem a cada uma.

Trabalhar em conjunto nunca poderá ser uma forma excluída dos processos econômico/sociais, independentemente de qualquer sistema. O ser humano evoluiu com base no trabalho conjunto e isto terá que permanecer embora novas formas de trabalho e de relações sociais venham a se estabelecer. Os grupos se constituirão necessários enquanto houver relação humana. E parece muito importante não desconsiderarmos que se foi dado ao ser humano o diferencial que reside na capacidade de pensar e se comunicar, ele será o agente destes processos por mais que evolua. E está comprovado que a evolução pressopõe a união, a ação conjunta. E as formas de união deverão, cada vez mais, tomar importância no mundo, principalmente se considerarmos o advento da pós-modernidade que, se inclui necessariamente os avanços tecnológicos e a racionalidade instrumental, traz em sua essência a culminação do moderno que produzirá efeitos paradoxais como a saturação da racionalidade moderna, da massificação solipsista e da atomização de mundos sobrepostos nas metrópolis.

Qualquer que seja o nome dado aos próximos tempos, vivemos um momento de "tormenta social" pleno de mudanças por nós produzidas e/ou absorvidas. No entanto, por nossa condição humana a essência - de alguma forma e sob algum nome que talvez ainda não tenhamos encontrado - permanece em suas bases. E como parte dela, a interrelação não se extinguirá. Possivelmente, isto sim, ela necessite se firmar através de formas que já comprovaram sua operacionalidade, como as associações.

Poderia concluir convidando à reflexão sobre algo que tem se confirmado pelos fatos históricos, em qualquer que seja a sua dimensão: a única forma da sociedade civil exercer sua função é através da sua organização, e as associações constituem-se numa delas. Quando não existe este exercício a sociedade não tem como se manifestar e acaba por ser vítima de grupos prepotentes, oligárquicos, que dispõem de uma forma ou outra de poder estatal, militar, religioso etc.

Nos países subdesenvolvidos não há a cultura ou tradição de organização porque o poder, de modo geral, constituiu-se de fora para dentro, pelos colonizadores. Assim tem se dado em nosso país, a começar pelo exercício da cidadania, extremamente comprometido e não efetivado. No entanto, os fatos não são suficientes como confirmações de que não possamos vir a valorizar as questões do coletivo e, consequentemente, da importância das associações. Cabe a reflexão e a ação no sentido d busca que, necessariamente, poderá trazer um comprometimento efetivo com um sociedade mais humana.

 

Bibliografia

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ARENDT, H. A condição humana. 7ª ed. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1995.         [ Links ]

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FERRETTI, C. J. Uma nova proposta de Orientação Profissional. São Paulo. Cortez, 1988.         [ Links ]

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SILVA, E. S. Desgaste mental no trabalho dominado. São Paulo. Cortez, 1994.         [ Links ]

 

 

1 Exposição feita em Mesa Redonda realizada por ocasião das IX Jornadas Regionais de Estudos em Saúde Mental e Trabalho: Saúde Mental e Globalização, em Campinas, de 14 a 15 de junho de 1996. Realização CLADE - Centro Latino Americano de Desenvolvimento
2 Psicóloga. Mestra em Psicologia Social pela PUCSP. Presidente Fundadora da ABOP. Atualmente pertencente ao Conselho Especial de ex-presidentes da ABOP.