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Revista da ABOP

versão impressa ISSN 1414-8889

Rev. ABOP v.2 n.2 Porto Alegre  1998

 

 

O processo clínico de orientação profissional

 

 

Maria Luiza Camargos Torres3

Faculdades Integradas Newton Paiva - Departamento de Psicologia

 

 


RESUMO

O artigo visa a proporcionar uma interlocução entre o trabalho de Orientação Profissional e a teoria freudiana, uma vez que esta teoria pode servir de subsídios para a modalidade clínica da Orientação. As experiências vividas pela criança a nível consciente e inconsciente deixam nela marcas significativas, que servirão para o alicerçamento do seu funcionamento psíquico e para a estruturação de sua personalidade. Dessa forma, a escolha de uma profissão está inteiramente relacionada com a forma de ser e viver do sujeito humano no mundo. Optar por uma ou outra carreira é trilhar um caminho que começa, na verdade, a ser percorrido no tempo da estruturação psíquica.

Palavras chave: Orientação profissional clínica, Psicanálise, Estruturação psíquica, Identificação, Escolha profissional.


ABSTRACT

The article has in view provide na interlocution between the work of the professional orientation and the freudian theory, once this can serve of the subsidy for one new model by orientation that is one work of the clinical emphatic. The chidren lives experiences for level conscious and unconscious give in her significatives marks that serve for basis of her psychic performance and for personality struture. From this form choose one profession is completily related with this form of be and live of the subject in the career is thrash one way who begin, in the true, searching in the time of the psychic performance.

Keywords: Clinical professional orientation, Psychoanalysis, Performance psychic, Identification, Profession choice.


 

 

Quando lançamos um olhar na história construída pelo homem no campo profissional, constatamos que, inicialmente, para ele, uma profissão se referia às primeiras ocupações rentáveis, que não incluíam a prática comercial ou trabalho manual. Na concepção atual, a profissão é vista dentro das ciências sociais como uma capacitação que inclui instrução acadêmica ou algo que equivalha, pois, com o desenvolvimento das sociedades industriais, fez-se necessário ampliar a gama de ocupações que exigiam habilidades específicas.

Desse modo, o processo de profissionalização envolve a qualificação que está associada à escolaridade, ambas garantidas pelo reconhecimento legal.

No entanto, percebemos que só o tempo de preparação não é suficiente para endossar a qualidade do exercício profissional e nem sempre recorre-se ao ensino acadêmico para conseguir tal capacitação. Max Weber destacou o quanto as profissões são importantes na sociedade ocidental moderna. Ele reconheceu no processo de profissionalização, a passagem de uma ordem tradicional para uma outra, que é pautada no status que cada profissão oferece, dependendo do tipo de atividades que são exercidas. São tarefas referendadas por critérios racionais, de competência e especialização. São também desempenhos construídos pelo homem, na medida em que optam e assumem tais tarefas em busca da sua manutenção, do sucesso e reconhecimento.

Apesar disso, pode acontecer ainda que nem sempre o sujeito humano consiga passar por um processo que culmine numa escolha que lhe seja satisfatória. E, igualmente, nem sempre consegue cumprir tarefas (como propõe Max Weber) que lhe dêem um lugar diferenciado e de sucesso na sociedade à qual ele pertence.

Parece-nos que existem outros fatores de ordem intrapessoal que contribuem para que esse desempenho possa ser de uma ou outra forma, já que o homem é influenciado por forças motivadoras que o impulsionam a realizar suas atividades, no sentido de confluir duas metas: a da utilidade e da obtenção de satisfação.

Queremos ressaltar a importância das implicações de caráter inconsciente às quais estão sujeitos os seres humanos, pois, na medida em que fazem parte da construção de suas histórias de vida, acabam interferindo no nível de investimento e comprometimento que esses homens possam fazer, seja profissional ou pessoalmente, no mundo em que vivem.

Sabemos que existem várias teorias que defendem a idéia de que o homem opta conscientemente dentre várias alternativas por aquela que melhor lhe aprouver, utilizando-se de todos os recursos de seu pensamento para solucionar uma escolha concebida enquanto meta a ser alcançada.

Já dentro da teoria freudiana, essa noção de aplicabilidade e objetividade não é inteiramente pertinente. Se partimos da crença na existência do inconsciente, todo esse aparato racional toma outro aspecto e toda a possível certeza decorrente dele merece ser revista.

A partir da leitura instauradora que Freud fez sobre o inconsciente, novos caminhos interpuseram-se na tentativa de compreender as atitudes e ações humanas. Por isso, acreditamos que, quando se opta ou escolhe uma profissão, o ser em questão está exercitando um modo de funcionamento que foi construído nos seus primeiros anos de vida, e que lhe servem de referência básica no seu trato com os objetos, com as pessoas e o mundo.

Em O Mal-Estar na Civilização (1930), Freud já considerava o trabalho como fonte de investimento libidinal e meio de prender o homem à uma parte da realidade. Diz ele a respeito da:

“...possibilidade que esta técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele vinculados.” (p.99)

E ainda:

... "...a satisfação profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto é, se, por meio de sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos instintivos persistentes ou constitucionalmente reforçados.” (p.99)

Não queremos consolidar aqui, com essa citação, o caráter de liberdade que porventura possa estar imbuído nela. Acreditamos tratar-se de processos relacionados com o modo de subjetivação construído pelo sujeito e a possibilidade de ter ele uma expressão única, que lhe seja peculiar. O processo de subjetivação influenciará ainda o traçado dos caminhos que serão trilhados pelo ser. Só através deste percurso o homem torna-se humano, sexuado e sujeito a uma lei. Estamos aqui nos referindo ao processo de identificação, ou seja, um dos processos psicológicos que, associados a outros, resultam na constituição e diferenciação da personalidade humana.

Retomando a citação de Freud, outras palavras ainda merecem consideração. São “inclinações existentes, impulsos instintivos persistentes”. Pensamos relacioná-las com as marcas deixadas pelo processo identificatório. Vejamos: primeiro, não podemos deixar de levar em conta que Freud se refere-se à pulsão, fonte dos investimentos libidinais; pois, é através dela que a energia sexual incidirá sobre os objetos. Segundo, por inclinações compreendemos a resultante decorrente de todo o processo de subjetivação do ser e ainda as marcas estruturantes por ele sofridas quando se organizou a identificação primária. Inclinações, na medida em que esses registros serão alicerçantes do psiquismo e que, a partir de então, fundam uma estrutura que subsidiará o modo de funcionamento do sujeito.

É com esta idéia que queremos conceber a escolha profissional, também como fruto de investimentos. Quando Freud escreveu

Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância (1910) fez o seguinte comentário: “A observação da vida cotidiana das pessoas mostra-nos que a maioria conseguiu orientar uma boa parte das forças resultantes do instinto sexual para sua atividade profissional.” (p.72)

Assim, uma profissão toma para nós o caráter de um objeto eleito pelo sujeito. Defendemos que esta eleição está referendada por uma escolha anterior, que o sujeito atinge quando vivência suas primeiras relações objetais, ou seja, o modo como aprende a relacionar-se com seus primeiros objetos amorosos. Esse processo é o resultado complexo de como a criança organiza-se e estrutura sua personalidade, privilegiando alguns tipos de defesas e fazendo uma apreensão mais ou menos fantasmática dos objetos. A forma como a criança vivência este processo incidirá mais tarde no tipo de vínculo que estabelecerá com os outros e provavelmente com a profissão que pleiteará.

Pensemos agora em termos de uma matriz simbólica que foi edificada a partir dos traços mnésicos e semânticos quando se deu a entrada do ser no campo da palavra e no âmbito da cultura. Com esse ponto de vista, podemos nos remeter ao conceito de ideal do eu, que resulta da convergência do narcisismo, das idealizações e das identificações com o par parental ou seus substitutos. Por já ser fruto de uma construção, o ideal do eu viabiliza uma posição menos alienada do sujeito, se compararmos com o eu ideal, caracterizado pelo narcisismo e ideal infantil de onipotência. Sabemos que o ideal do eu acontece, quando já ocorreu o recalcamento e a determinação da sexuação. Depois destas etapas vencidas, é que passa a ser possível, mais tarde, a profissionalização, pois, se os investimentos forem só narcísicos (eu ideal), tal escolha se tornará, provavelmente, inviabilizada, na medida em que a pessoa não realizará investimentos objetais além de si mesma.

Cremos que a diferença é significativa entre uma escolha onde o sujeito é tido como cognoscente e então capaz de escolher, entre os objetos que identifica, aquele que melhor lhe apraz e a escolha vista sob o enfoque da psicanálise, que defende a idéia de que as opções feitas pelo homem estão pautadas não somente na sua estrutura racional conjugada com a sua volição, mas também nas influências de fontes que lhe são inconscientes e por isso inacessíveis diretamente à consciência.

Sabemos que existem teorias que ainda consideram que decidir é utilizar-se de sistemas preditivos com os quais se faz uma avaliação das premissas em questão, levando em conta o valor delas. Não pretendemos, portanto, fazer uma avaliação quanto à utilidade ou veracidade de referenciais teóricos pautados na objetividade e na razão, pois foge do nosso objetivo e pretensão.

Queremos, sim, marcar a distinção entre eles e a psicanálise, e alertar para a complexidade em que pode estar imbuída numa simples escolha profissional. Reconhecemos que esse ato é fruto de elaborações psíquicas reunindo todo o aparato sob o qual opera o aparelho psíquico. É também uma produção oriunda da interseção entre representações feitas através da simbolização, conjugadas às produções imaginárias, fantasmáticas e ainda permeadas pelo real.

Levando em conta as considerações feitas, acreditamos que a possibilidade que Bohoslavsky (1993) nos concedeu é de grande valia, pois pensar e exercer uma orientação profissional sob o enfoque clínico é contribuir para uma menor alienação, seja num sentido amplo (social), ou a nível pessoal.

Mesmo que o enfoque dado por Bohoslavsky seja mais em relação aos processos egóicos, esse autor acabou por abrir as portas para um trabalho que ainda merece e tem muito o que ser pesquisado e conquistado.

A amplitude do trabalho de orientação profissional de enfoque clínico é proporcional às diferenças individuais e urge lançar mão não só dos recursos existentes e conhecidos, mas também ousar e criar outros que possam complementar, enriquecer ou até transcender os já conhecidos.

É sob esta perspectiva clínica que acreditamos estar enriquecendo o processo de orientação profissional, na medida em que nele o sujeito pode perceber-se como centro do trabalho a ser desenvolvido e da escolha que será (ou não) realizada.

Através dos métodos tradicionais, o grande uso de recursos técnicos pode desfocar esta percepção para a pessoa do orientador, a ponto de ouvirmos inúmeras vezes os clientes dizerem mais ou menos assim: “O psicólogo disse que eu dou para fazer...”, “O resultado do que o psicólogo me deu diz que...”, enfim; tantos outros dizeres que transferem para o orientador a responsabilidade e determinação sobre a vida de outrem. Como nos bem disse Duran 91995),

“...Uma prática em orientação profissional que vise apenas síntese entre aptidões, habilidades individuais e características de profissões, tal como estas se apresentam concretamente, seria trabalhar em favor da conformação do sujeito...”

Outro aspecto relevante é quanto à necessidade de um resultado ao final do trabalho. Na abordagem psicométrica, por exemplo, é esperado que haja esta conclusão e de preferência satisfatória. Dentro da perspectiva clínica, a resposta pode ou não acontecer, dependerá da construção e desenvolvimento seguido pelo cliente, que pode reconhecer-se num momento que seja inviável optar por uma profissão ou curso.

Nem todas as pessoas que procuram por estes serviços têm condições (naquele momento) de elaborações no nível pretendido por este trabalho: investigação sobre si, confrontação com seus medos, ansiedades, limites reais ou fantasmáticos, elaboração de lutos, pensar sobre seus relacionamentos interpessoais enquanto fonte de influência na decisão, tolerar a dor que porventura possa advir, assim como as ambivalências e sentimentos de culpa.

Deparamo-nos, então, com um limite nesta prática. Por ser um processo de curta duração, muitas vezes o cliente não consegue fazer este percurso, pois ele demanda mais recursos e tempo para o cliente aprofundar nas suas questões.

Na verdade, acreditamos que uma opção profissional tem maior consistência quando descoberta ou construída dentro de um processo de análise. Aí o sujeito tem oportunidade de maior investigação sobre si e conseqüentemente sua escolha será pautada em suas reais possibilidades e interesses.

No entanto, não é uma situação comum e nem viável para a maioria das pessoas recorrer a uma análise para esse fim. É aí que a orientação clínica vem contribuir para ampliar a compreensão dos conflitos e da dinâmica do sujeito, com relação à escolha profissional.

Subsidiada pela psicanálise, que fica sendo para nós uma meta - teoria, podemos ampliar as leituras sobre os processos pertinentes ao ser em questão. Propomos, assim, um recorte na teoria freudiana, na medida em que encontramos nas suas palavras fonte de expressão e conteúdo para nos fazer trilhar a formação técnica e pessoal.

É com base nesses pressupostos que essa prática de orientação pretende ser exercida, com o reconhecimento de um modelo fundamental de funcionamento do sujeito, expresso através de seu discurso e, da mesma forma, admitir que como ele aprendeu a escolher na vida repercutirá nomodo como enfrentará também sua opção profissional.

Com isso, o caráter dinâmico e vital desse processo extrapola o funcional e psicométrico de outros, dando assim maior efetividade ao trabalho pretendido.

Acreditamos também que é através de uma profissão, onde a pessoa desempenhará tarefas e exercitará vários de seus potenciais, que ele poderá encontrar uma via criativa para investir suas energias psicossexuais. O trabalho, enquanto objeto carregado de investimentos, pode servir para auxiliar na construção de uma identidade social, onde a pessoa que o executa poderá ocupar um lugar diferenciado e merecer o reconhecimento de seus semelhantes.

Edificar projetos que extrapolem as atividades adaptativas é criar alternativas para uma maior qualidade de vida para si e, provavelmente também, para os outros, qualidade essa que estará permeada pelo desejo e por isso mesmo, mais próxima do sujeito que se aventure neste processo que é o ato de viver.

 

Referências Bibliográficas

1-.ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.        [ Links ]

2-BOHOSLAVSKY, Rodolfo. Orientação vocacional: a estratégia clínica. 9ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.        [ Links ]

3-DURAN, Izidro Rogério. A orientação profissional e a discussão sobre o trabalho. In: A escolha profissional em questão. BOCK, Ana Mercês Bahia (org.). São Paulo: Casa do Psicólogo, 1995.        [ Links ]

4-FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, Rio de Janeiro: Imago, ESB, 1976, v. XXI.        [ Links ]

5-_______________. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. Rio de Janeiro: Imago, ESB, 1976, v. XI.        [ Links ]

 

 

3 Psicóloga e professora do Departamento de Psicologia das Faculdades Integradas Newton Paiva.

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