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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.1 n.1 Brasília jan. 1981

 

Psicologia científica: realidade ou mito?*

 

 

Richard Bucher

Departamento de Psicologia, Universidade de Brasília - 70910 Brasília/DF

 

 


RESUMO

Na ocasião do centenário da fundação do primeiro laboratório de psicologia experimental, a psicologia científica é questionada sob um ângulo epistemológico, no que diz respeito a suas fundamentações teórica e metodológica e as suas implicações ideológicas ou "míticas". As repetidas crises desta psicologia testemunham um mal-estar profundo, relacionado com a sua entronização artificial, com a definição insuficiente e unilateral do seu objeto e com a discrepância entre a ciência e a experiência psicológicas. O contexto histórico da implantação da psicologia como ciência é lembrado, com uma analise crítica de suas premissas positivistas de abstração, objetivação e quantificação. Estas são incapazes, quando transpostas das ciências exatas ao estudo do homem concreto, de investigar as significações psicológicas e antropológicas das suas experiências vividas. Uma "psicologia negativa" deveria fazer justiça às experiências negativas e irracionais do ser humano, sendo que o pensamento mítico ilustra a tentativa do homem de dominar e representar esta irracionalidade e suas contradições, conjurada pelo cientista. Finalizando, é enfatizada a necessidade de uma epistemologização da psicologia positiva e de uma relativização das suas posições e pretensões de cientificidade.


SUMMARY

In the centennial year of the founding of the first psychological laboratory, cientific psychology is questioned from an epistemological perspective with respect to its theoretical and methodological foundations and its ideological or "mythical" implications. The repeated crises of this psychology are a testimony to its deep uneasiness which is related to artificial enthronement, its insufficient and unilateral definitions, and the discrepancy between psychological science and experience. The historical context of the establishment of psychology as a science is reviewed in a critical analysis of its positivist premises of abstraction, objectivity, and quantification. These, when transposed from the exact sciences to the study of man, are useless for investigating the psychological and anthropological meanings of his experience. A "negative psychology" must explain man's negativ and irrational experiences, like mythical thought that illustrates his attempt to dominate and represent this irrationality and its contradictions, denied by the scientist. Finally,the need for epistemologizing positivist psychology and for a reconsideration of its positions and scientific pretentions is emphasized.


RÉSUMÉ

A l'occasion du centénaire de la fondation dupremier laboratoire de psychologie expérimentale, la psychologie scientifique est mise en question sous unangle épistemologique, en ce qui concerne ses fondements théorique et méthodologique et ses implications idéologiques ou "mythiques". Les crises répétées de cette psychologie témoignent d'un malaise profond, mis en rapport avec son intronisation artificielle, avecla definition insuffisante et unilatérale de son objet et avec la divergence entre la science et l'experience psychologiques. On rappelle le contexte historique de l'implantation de la psychologie comme science, en faisant une analyse critique de ses premisses positivistes d'abstraction, d'objectivation et de quantification. Transposées telles quelles des sciences exactes à l'étude de l'homme concret, celles-ci sont inaptes à reveler les significations psychologiques et anthropologiques de ses expériences vécues. Une "psychologie négative" devrait rendre justice à ses expériences négatives et irrationnelles, etant donné que la pensée mythique illustre précisément la tentative de l'homme de dominer et représenter cette irrationalite et les contradictions qui en découlent, tandis que le cientisme tente de les conjurer. On souligne finalement la necessité d'une épistémologisation de la psychologie positive et d'une relativisation de ses positions et prétentions de scientificité.


RESUMEN

Con motivo del centenario de la fundación del primer laboratório de psicología experimental, la psicología cientifica es cuestionada bajo un ángulo epistemológico, con respecto a sus fundamentos teóricos y metodológicos y a sus implicaciones ideológicas o "míticas". Las repetidas crisis de esta psicologia dan testimonio de un malestar profundo, relacionado con su intronización artificial, con la definición insuficiente y unilateral de su objeto, y con la divergencia entre la ciencia y la experiencia psicológica. Es presentada una reseña del contexto histórico de la implantación de la psicología como ciencia, y una analisis crítica de sus premisas positivistas de abstracción, objetivación y cuantificación. Cuando transferidas de las ciencias exactas al estudio del hombre concreto, ellas son incapaces de investigar las significaciones psicológicas y antropológicas de sus experiencias vividas. Una "psicologia negativa" debería hacer justicia e las experiências negativas e irracionales dei hombre, pues to que el pensamiento mítico ilustra la tentativa del hombre de dominar y representar esta irracionalidad y sus contradicciones, conjurada por el cientismo. Finalmente, se insiste sobre la necesidad de un análisis epistemológico de la psicologia positiva y de relativizar sus posiciones y pretenciones de cientificidad.


 

 

O título deste trabalho pode parecer polêmico, mas não o e necessariamente. Pelo menos não o é na minha intenção, uma vez que, em meu conceito, "mito" em nada e uma noção pejorativa, mas representa, pelo contrário, um fenômeno complexo e tipicamente humano, com características e funções próprias. Pretende-se analisar o "mito da cientificidade", da psicologia em particular, aproveitando-se do transcurso centenário do primeiro laboratório de psicologia experimental. Considero que este centenário, mais do que uma ocasião para comemorações triunfalistas, poderia e deveria ser uma oportunidade para uma reflexão de ordem epistemológica sobre as bases desta psicologia científica, sobre suas fundamentações teórica e metodológica e sobre suas implicações não-científicas, quer dizer, ideológicas.

Falar aqui de ideologia, também não é necessariamente polêmico, se entendemos por ideologia, o conjunto de representações sociais, políticas, econômicas, antropológicas, psicológicas e filosóficas que marcam a mentalidade de uma época e suas produções culturais. Um autor como Levi-Strauss (1958), alias, considera as nossas ideologias (políticas) como equivalentes, ou melhor, como substitutos do pensamento mítico, chamadas a preencher um certo vazio deixado pela profanação ou pela desmistificação das nossas representações míticas, das nossas mitologias implícitas - atrofiadas, sem dúvida, sob o impacto da nossa era tecnológica.

 

AS "CRISES" DA PSICOLOGIA

Comemorações triunfalistas também não cabem, ao meu ver, porque a psicologia encontra-se numa crise, como nos foi lembrado recentemente por Ades(l978), ou ainda por Fraisse (1976). O primeiro nos fala da "descrença" geral que se manifestaria sobre o método científico em geral e, dentro da psicologia, sobre o método experimental em particular. Surgem, frequentemente, dúvidas sobre a validade da própria postura epistemológica da psicologia - dúvidas, porém, que não são recentes, como também não o é, me parece, a "crise" da psicologia, antes permanente do que decorrente somente das suas últimas evoluções. Permanente, no sen. tido de ser ligada à própria "criação" da psicologia científica, nascida não de maneira "natural", evolutiva ou cumulativa, como as outras ciências, mas "entronizada" por decreto (pelo rei da Saxônia, em Leipzig, na data de 1879...) - o que significa que esta psicologia começou por ser uma instituição antes de ter um conteúdo definido, antes de ter disposto de um conjunto de resultados que poderia ter formado, aos poucos, o "corpus" desta ciência (cf. Koch,1977). Destarte, operou-se um corte preciso entre uma psicologia científica, positiva e uma psicologia pré-científica, remontando esta aos primórdios da humanidade e acompanhando a sua evolução cultural, através de auto-representações cada vez mais diferenciadas.

Este corte, no entanto, não corresponde a um corte epistemológico no sentido de Foucault, porque não era o produto de uma evolução histórica, preparando ou exigindo uma mudança através da transformação de um paradigma científico anterior, transformação esta que deveria obedecer a toda uma complexa lógica interna. Para utilizar uma imagem, não se tratava, portanto, de um parto natural, mas de um corte institucional, de uma cesariana que deu à luz um filho não somente prematuro, mas ainda ilegítimo, porque não descendente da psicologia secular anterior, mas de pais adotivos, a saber, das ciências exatas.

O fato desta entronização por decreto é único na história das ciências. Ele testemunha um certo artefato, presente já no ato de nascimento desta ciência, o que não permite, evidentemente, falar desta criação como de uma "revolução científica" no sentido que Kuhn (1970) atribuiu a este termo. No entanto, esta criação não "caiu do céu "mas situa-se num contexto específico, a saber, o contexto positivista do século passado, que teremos que examinar em suas implicações ideológicas ou ainda "mitológicas", uma vez que estas implicações têm pesado muito sobre os desenvolvimentos da psicologia e suas repetidas crises.

A concepção da ciência em vigor naquela época, determinou necessariamente a evolução da jovem disciplina, impondo a ela um rumo unidirecional, pela referência a um modelo emprestado de outros domínios do saber. Desde o início, então, a psicologia como ciência foi construída sobre alicerces problemáticos, enviesados e "críticos" (no sentido, precisamente, de provocar facilmente crises) - e isto a partir, em primeiro lugar, da indefinição de seu objeto. Sabemos que uma das definições possíveis da atividade científica se refere à presença de um objeto específico, sobre o qual a ciência recolhe dados empíricos (experiências, descrições, experimentos...), seguindo, nesta sua exploração, uma certa metodologia; a partir dos dados acumulados são elaboradas hipóteses verificadas novamente no contato empírico, no campo do objeto investigado e que, aos poucos, são articuladas em conjuntos teóricos. Acrescentamos que os conhecimentos empíricos e as teorias edificadas sobre estes podem (ou devem) ainda permitir uma prática sobre o objeto, prática esta que utilizará certas técnicas visando à transformação deste objeto.

Pois bem, encontramos então sérias dificuldades em definir o "objeto" da psicologia cientifica, dificuldades aliás bem conhecidas. A psicologia racional, cartesiana, tomou como objeto a alma, oposta à matéria extensa, utilizou como método a introspecção e criou um conjunto de noções conhecidas como "mentalismo". A psicologia positiva (ou positivista) substituiu este objeto pelo observável, pelas reações psico-fisiológicas e suas medidas e, finalmente, pelo comportamento. Este "objeto", quando referido ao homem, tem a particularidade de não englobá-lo na sua totalidade vivida, mesmo se percebemos um certo consenso, hoje em dia-por falta de uma definição mais adequada - de não mais limitar este comportamento à "fachada" externa do ser humano. Um experimentalista como Fraisse (1976) chega mesmo a propor uma volta à psyché, como objeto da psicologia, para que esta possa sair da crise... Mas um outro aspecto bem que poderia pesar mais ainda: o fato de o objeto "comportamento" não ser próprio nem do ser humano, nem da psicologia, uma vez que a biologia, a fisiologia, a etologia também estudam o comportamento, tanto animal quanto humano.

Porém, esta falta de especificidade do objeto da psicologia tem como corolário sua unilateralidade, mesmo quando aceito no sentido mais amplo. Definir o comportamento como objeto único da psicologia representa, de fato, uma delimitação artificial e arbitrária, decorrente de um contexto cultural e ideológico preciso e que comporta nada menos do que uma mutilação da experiência psíquica de cada um - experiência que ninguém gostaria de perder, se pensarmos, por exemplo, na experiência do amor, da felicidade ou na fantasia, no desejo, no sonho - ou, ainda, na satisfação que o pesquisador encontra no seu laboratório. Finalmente, todo comportamento nada mais é do que o aspecto observável de um portador necessariamente subjetivo.

Podemos nos perguntar, pois, se não é esta mutilação, esta discrepância entre o objeto da ciência psicológica e o objeto da experiência psicológica, que produz esta crise permanente, bem como as discussões tantas vezes polêmicas e apaixonadas, "subjetivas", dos psicólogos. Parafraseando Freud, podemos falar de um "mal-estar na psicologia", devido a esta exclusão da dimensão vivencial, da significação existencial, do campo da psicologia científica. A evolução desta ciência, hoje, em duas alas quase que diametralmente opostas, E (experimental) e H (humanista), para falar com Ades (1978), ilustra o impasse criado pela definição tão restrita e parcial do objeto da psicologia, sendo que a corrente H é considerada como "não-científica", porque carente de uma metodologia "positiva", quando ela se propõe a estudar o ser humano na sua dimensão antropológica mais ampla e mais significativa.

Diante deste impasse, desta cisão entre duas metodologias e dois objetos - que determinam também duas crenças - vale talvez o esforço de enfatizar mais uma vez a complementaridade destas duas abordagens, para que a psicologia científica, depois de ter rejeitado ser ancila da filosofia, não se torne (ou não continue) a ser simplesmente ancila da biologia...

Não pretendo, evidentemente, resolver este dilema, mas contribuir com uma reflexão critica sobre a origem e as implicações desta psicologia científica. Não ignoro que uma grande parte dos estudiosos do comportamento aceita, hoje em dia, a distinção entre "estruturas de superfície" e "estruturas profundas", distanciando-se, desta maneira, da concepção de uma "caixa preta" vazia. Ás primeiras, os comportamentos, são, nesta visão, facilmente consideradas como "expressões" de processos subjacentes (orgânicos ou cognitivos, por exemplo), cuja autonomia, no entanto, não escaparia ao todo poderoso esquema S-R. Para que a complementaridade acima mencionada seja aceita pelos cultores da psicologia científica restritiva - aceita não somente como um mal necessário, mas como um enriquecimento que faz justiça à complexidade do homem - não é supérfluo, me parece, insistir mais uma vez sobre as "contaminações ideológicas" que esta psicologia sofreu, desde a origem, apesar de sua pretensão de cientificidade pura.

 

O CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA POSITIVISTA

Sabemos que o contexto cultural que presidiu à instituição da psicologia experimental era o contexto positivista, na sua forma cientista e sobretudo fisicalista. Entretanto, não podemos abordar aqui a evolução do positivismo como filosofia (absolutista), apesar da influência incontestável que esta exerceu sobre a metodologia das ciências positivas. Limitar-me-ei a lembrar um pequeno fato, ligado à sistemática das ciências proposta por Auguste Comte. Nesta sua sistemática (que ele chamava de hierarquia natural, em oposição à hierarquia metafísica, reinando até ali), ele colocava em primeiro lugar a matemática, ciência a mais geral e a mais pura. Esta é seguida pelas ciências de complexidade crescente, a saber, a astronomia, a física, a química, a biologia e, finalmente, a sociologia, que teria como objeto a investigação das regras ou leis das interações humanas. Comte, pois, não reservou lugar nenhum para a psicologia, contestando mesmo, explicitamente, qualquer veleidade que pretenda fundar a psicologia como uma ciência independente! Segundo os postulados positivistas por ele elaborados, podem ser observados e descritos (e ser objeto de uma ciência) somente os objetos percebidos como partes do mundo físico; fatos psíquicos só se deixam examinar sob o ângulo social - dependente, pois, da sociologia - ou sob o aspecto de suas bases biológico-fisiológicas. Ele nega, portanto, a possibilidade de uma pesquisa psicológica autônoma.

Esta classificação parece-me interessante no que diz respeito precisamente à criação da psicologia científica: de fato, até hoje ela não dispõe de um lugar reconhecido entre as ciências, o que certos psicólogos, inspirando-se nas mesmas premissas que Comte, tentaram contornar pela limitação ao comportamento - tentando, deste modo, afastar-se das conclusões as quais ele tinha chegado com muita consequência. Mas uma psicologia que assim se limita para fugir da tutela da filosofia, torna-se, necessariamente, ancila da biologia (se não das ciências exatas), uma vez que não é possível aceitar as premissas metodológicas e filosóficas do positivismo e querer negar o que decorre logicamente delas - a saber, que elas não deixam espaço para uma psicologia científica, ou melhor, que uma psicologia "positiva" só será possível naquelas condições; mas surge então a questão, legítima, de saber se uma tal ciência ainda será "psicológica", ou se Comte não tinha razão, afirmando que neste seu edifício a psicologia não cabe. Por conseguinte, ou a psicologia efetivamente não é uma ciência (positiva), ou então ela é uma ciência de um outro tipo, com outra metodologia que não a fisicalista...

O fato de o positivismo - e toda a corrente metodológica inspirada nele - recusar a psicologia como ciência, deve ter incomodado (e incomoda ainda) muitos psicólogos, receosos, sem dúvida, de "não serem levados a sério" pelos colegas de disciplinas "mais puras", mais objetivas - ou, ainda, menos complexas, como já indagou o próprio Comte. Reduzir a complexidade do objeto da psicologia não-restritiva (o ser humano) a alguns poucos componentes é, pois, uma tentação, se não uma promessa de reabilitação - como se fosse necessário se "reabilitar" deste modo, para readquirir a estima publica do mundo científico, perdida por causa da não-cientificidade do objeto e dos procedimentos da psicologia. Apresentar, em compensação, números, quantidades, cálculos e estatísticas sobre este objeto poderia, neste sentido, bem ser encarado como a promessa de uma cientificidade acima de qualquer suspeita...

O modelo o mais acessível - e o mais sedutor -era, na época (e é ainda) o modelo fisicalista, preconizado por Comte em geral e por John Stuart Mill (seu discípulo) em particular, no que diz respeito às "ciências morais", das quais a psicologia faria parte. Assim Mill pronuncia, em 1843, a célebre frase segundo a qual "o atraso das ciências morais só pode ser superada recorrendo ao auxílio dos métodos da física"... Este modelo fisicalista suscitava em certos circulos de pesquisadores uma verdadeira exaltação, em que podemos precisamente reconhecer, com a necessária distancia, o surgimento de um novo "mito".

Desta exaltação, basta apresentar um pequeno exemplo, particularmente interessante no tocante à escola da qual emanava Wundt. Trata-se da célebre escolade Helmholtz, a "Sociedade Fisicalista de Berlim", fundada por quatro jovens pesquisadores que mais tarde ficaram famosos, a saber Helmholtz (o mais importante), Du Bois-Reymond, Ludwig e Bruecke (mais tarde professor em Viena e um dos mestres de Freud). Esta sociedade, fundada em 1845, era baseada em um juramento de 1842, do qual temos conhecimento graças a uma carta de Du Bois (então com 24 anos) a um amigo. Segue a tradução de um trecho desta carta: "...nós juramos fazer prevalecer a verdade segundo a qual não há, no organismo, outras forças atuantes além das forças comuns, fisicoquímicas; quando estas não bastam para explicar, a causalidade em questão deve ser procurada utilizando o método fisicalista-matemático...ou então devem ser postuladas novas forças, da mesma dignidade que as fisico-químicas, inerentes à matéria e sempre redutíveis a componentes de atração ou de repulsão."

Ora, vejamos, noções tais como juramento, verdade, dignidade, ou ainda a convicção materialista declarada, ultrapassam de longe o âmbito científico e dizem respeito a uma postura subjetiva ligada a uma crença e um entusiasmo bem juvenil que, no entanto, não perdeu nada do seu ardor com o decorrer dos anos. Esta declaração testemunha ainda um desejo, o de explicar o mundo pelo modelo fisicalista e de conquistá-lo pela aplicação das forças descobertas (ou postuladas), conquista esta que começaria pelo próprio mundo dos cientistas.

Este juramento e sua postura implícita demonstram bem como, em reação à filosofia naturalista romântica (e mística), o mesmo entusiasmo, a mesma exaltação sentimental foram aplicados ao novo modelo, contribuindo, desta maneira, mais a um novo movimento ideológico (conhecido como cientismo) do que a uma ciência consciente de suas limitações e de seu objeto restrito.

Estes pesquisadores ultrapassaram, destarte, a posição de Fechner, que já tinha professado um fisicalismo (ou materialismo) metodológico, mas baseado ainda na aceitação de uma "vida interior", de uma consciência (concebida num enfoque especulativo, de dimensão quase cósmica). A este respeito, Fechner falou precisamente da "outra cena", inacessível à observação e à experimentação - termo que mais tarde foi utilizado por Freud para designar o inconsciente e sua "alteridade" radical.

Esta metodologia, contudo, evoluiu, sob a influencia do cientismo, para um certo absolutismo fisicalista, do qual faz parte a negação de uma consciência imaterial e não-metrificável, ou mesmo da mera possibilidade de uma tal consciência existir como centro de experiência subjetivo. Sob o impacto deste fisicalismo, definiu-se progressivamente uma certa abordagem dos "fatos psíquicos", reduzidos de mais em mais a componentes elementares, atomísticos - redução inevitável para satisfazer os critérios de exatidão e de repetição e que trouxe, de fato, uma soma impressionante de descobertas sobre o funcionamento psíquico nos seus aspectos materiais, psicofísicos e psicofisiológicos. Não há dúvida, entretanto, de que esta investigação febril dos "fatos psíquicos" foi levada a cabo na esperança de poder, paulatinamente, aumentar a "certeza" objetiva sobre este funcionamento, até finalmente alcançar a fórmula matemática pura e unívoca.

A psicofísica de Fechner e depois de Helmholtz exerceu um efeito muito grande, entre outros, sobre Wundt, que participou do mesmo entusiasmo e otimismo para criar a "psicologia exata". Sua ambição abertamente expressa era de fundamentar não mais a psicofisiologia, mas a psicologia como ciência exata, baseada na experimentação. Todavia, para distinguir a psicologia da física e da psico-fisiologia, Wundt ainda referiu-se à noção de vivência (ou de experiência), quer dizer, ainda reconheceu uma consciência subjetiva. Deste modo, quando uma estimulação sensorial atinge os nervos sensoriais, tratar-se-ia de um processo físico; mas quando esta estimulação dos nervos sensoriais produz uma sensação vivida, experimentada, estamos diante de um fenômeno psíquico.

Percebemos, pois, que Wundt não defendeu uma posição absolutista, como também não defendeu a psicologia experimental como fonte única de conhecimentos psicológicos. Segundo ele, outros métodos podem alcançar um grau elevado de certeza, como por exemplo o "método histórico", aplicado por ele na sua "psicologia dos povos", cuja edição ultrapassou dez volumes. Todavia, não foi com esta obra que Wundt entrou na história da psicologia,mas como fundador da corrente experimental. Mueller (1979) lembra, aliás, a este propósito, que as contribuições propriamente cientificas de Wundt não merecem o mesmo destaque que a fundação do primeiro laboratório (e da primeira revista) de psicologia, o que testemunha mais uma vez o artefato do nascimento da nova ciência.

 

AS PREMISSAS DA PSICOLOGIA CIENTÍFICA E SEUS MITOS

Wundt, com certeza, não pode ser considerado como responsável pelos abusos ou ainda pela absolutização cometidos pelos defensores da "psicologia exata", mesmo que tenha participado ativamente em sua implantação. Tentarei em seguida uma abordagem menos histórica e mais sistemática, insistindo sobre certas premissas desta psicologia exata ou positiva, bem como sobre as implicações ideológicas desta "postura".

O positivismo, disse, substitui o cartesianismo, base da psicologia racional (ou introspectiva), acabando desta maneira com a visão essencialmente dualista do ser humano - dando ênfase então a um certo monismo, à prevalência da quantidade. Podemos até dizer que o positivismo tentou acabar com o mito da natureza dupla do homem, mas sem considerar a sua globalidade, pelo fato de simplesmente rejeitar um componente deste dualismo.

Se o modelo científico de base do cartesianismo era a mecânica arquimediana - numa visão essencialmente estática - o positivismo refere-se a eletro-dinâmica, representada de maneira exemplar pela física experimental. Mas a física, quando se refere à matemática como ciência pura ou ideal, já perde um pouco desta "pureza", por causa do aspecto material do seu objeto, os "fatos físicos", empíricos. Na fisiologia, as quantidades são mais "afetadas" ainda, por causa da interferência não somente da matéria, mas da vida, ou seja, dos processos orgânicos dinâmicos que escapam à tentativa de encerramento em números e estatísticas. Os psicólogos, finalmente, recebem a matemática de terceira mão, sendo que, em cada etapa, o nível do espírito científico sofre uma queda, na sua procura de exatidão - com o risco de se transformar finalmente, como disse Politzer, em uma "mágica de números", sendo que o entusiasmo pela forma quantitativa das leis assemelhar-se-ia então a "adoração de um fetiche".

Este autor, Politzer, publicou há 50 anos uma "Crítica dos fundamentos da psicologia", referindo-se precisamente ao quinquagésimo aniversário da criação da psicologia científica. Sua crítica, extremamente contundente, vale parcialmente hoje ainda, no centenário desta mesma ciência, e pode alimentar as nossas reflexões, sem que seja necessário, porem, compartilhar do extremismo deste autor. A experimentação, com seus ideais bem conhecidos, é efetuada "seriamente", segundo Politzer, somente na física, onde a técnica permanece "racional" sem jamais degenerar numa prática mágica; mas desde que ela tente aplicar-se à vida, a fenômenos vivos, a irracionalidade faz irrupção e deve ser conjurada através de técnicas cada vez mais sofisticadas, que se tornam então facilmente um certo ritual.

Tanto o ritual quanto o irracional, que o primeiro tem que mascarar, podem facilmente ser relaciona, dos com a noção de mito. O próprio edifício da psicologia científica pode, de fato, ser comparado com uma nova mitologia, destinada a apresentar em moldes novos um desejo antigo, a saber, o desejo de poder remontar as origens e transcender as falhas da própria existência, a própria fragilidade diante do universo circundante, através de representações seguras e estáveis de si -mas eventualmente auto-tapeadoras. Neste sentido, esta mitologia baseia-se em três elementos, três mitos parciais, a saber:

- a quantificação e o mito da sua possibilidade no estudo do homem;

- a objetivação e o mito do seu ideal no estudo do homem;

- a abstração e o mito de sua relevância no estudo do homem.

Estes três princípios são reunidos na exigência da experimentação. Eles, evidentemente, não são míticos em si, mas formam um mito quando transpostos diretamente das ciências exatas para a exploração do homem. Veremos brevemente como estas características "ideais" de uma ciência positiva entram em choque com a realidade humana.

Do aspecto quantitativo já falamos a propósito do modelo matemático e seu ideal de formalização, inaplicável ao estudo do homem concreto, quer dizer, vivo e histórico, portador de significações. A evolução das ciências humanas dos últimos 30 ou 40 anos demonstrou, no entando, que uma formalização das descobertas sobre o ser humano (e suas produções, como, por exemplo, seus mitos) e possível sem referência à mera quantificação, a saber, a nível de certos sistemas relacionais levando em conta aspectos quantitativos e significantes. Utilizados na lingüistica e na antropologia estrutural (ou até na psicanálise), uma tal formalização visa apreender os circuitos simbólicos (cf. Fraisse, 1976) e suas codificações e combinatórias transindividuais. Mas mesmo esta formalização "estrutural" entra rapidamente em contradições insolúveis, quando aplicada ao homem concreto; este representa um sistema essencialmente aberto - e é isolável, quando muito, do seu ambiente, mas não da sua história vivida. Por isso, o modelo quantitativo, baseado no princípio de causalidade (e, em seguida, da conservação da energia), é meramente reducionista quando aplicado a dimensões significantes e simbólicas - que não se deixam encerrar em perspectivas causalistas ou energéticas, como o próprio Freud já reconheceu, apesar de sua formação e crença positivistas.

A abstração, em seguida, já foi considerada como característica essencial da nossa civilização; na psicologia, ela seria decorrente de uma "concepção aristocrática do homem" (Politzer), desprezando os pormenores da sua existência. Ela se torna indispensável para a consecução de leis gerais do comportamento. Mas trata-se então, necessariamente, do "homem geral" (ou ainda do adulto normal e civilizado, que não tem "existência", a não ser na ficção). A esta abstração, via obrigatória de qualquer objetivação, opõe-se a implicação de toda relação humana, ou seja, o fato de o observador estar presente, estar implicado na relação com o observado humano, com o qual se estabelecem logo relações de comunicação e de significação, transcendendo a pura observação. A distância abstrativa é, pois, constitutiva do objeto, e isto tanto mais que ela se serve da observação visual. Basta lembrar aqui a análise magistral feita por Sartre do olhar e da objetivação inerente à sua ação, em oposição à presença que, embora não imediata, visa diminuir a distância, podendo utilizar para este fim a mediação da linguagem. Esta visa à vivência concreta do outro, mas mantém uma certa distância, respeitando deste modo a alteridade do outro.

A nível clínico, podemos lembrar ainda a importância da verbalização, enquanto comunicação intersubjetiva (e não somente como transmissão de mensagens a nível objetivo ou comportamental). A verbalização, efetuada numa situação de implicação recíproca, representa um tipo específico de contato empírico; depois, numa segunda etapa, na elaboração teórica da experiência clínica, a abstração intervém necessariamente, mas ela visa à compreensão de um sujeito (e não de um objeto), na sua subjetividade pessoal, histórica, concreta, situacional. Esta, portanto, pode ser investigada a partir da relação concreta de comunicação e pode ser inserida em certas leis regendo estas relações (simbólicas),quando descoberta a codificação simbólica utilizada pelo indivíduo.

Podemos mencionar um outro aspecto que toca à objetivação, a saber a interação (bem conhecida hoje) entre objeto e observador. Ela foi propriamente tematizada por Einstein, quando colocou que o experimentador é o componente mais importante do aparelho experimental; nós podemos "observar" ocorrências (físicas) somente através e pelo observador. Mas este não somente percebe, mas também decide; a significação é atribuída aos fatos baseada numa decisão subjetiva, e esta subjetividade não poderá ser eliminada, nem mesmo pela interpolação de "filtros", instrumentos, equipamentos, procedimentos, testes e outros artefatos heurísticos, cada vez mais sofisticados. Estes filtros só deslocam o lugar de separação entre objeto e observador e adiam o momento, imprescindível, da intervenção do elemento subjetivo, na decisão a ser tomada.

Negando estes aspectos subjetivos (e o peso, a responsabilidade facilmente angustiante da decisão), constituir-se-à a ciência como uma coleção de dados cada vez mais detalhados, mais periféricos e triviais. Com dados objetivos, "puros", recolhidos sem referência a um portador subjetivo, não será possível apreender o que é vivo no organismo, o que é humano no homem...

Neste sentido, podemos dizer com Devereux(1967) que os dados das ciências do comportamento deveriam ser examinados sob três ângulos (interdependentes):

- o comportamento do objeto;

- as perturbações criadas pela existência e pela atividade do observador;

- o comportamento do observador e suas expectativas (que dependem, entre outros, de suas hipóteses!), suas angústias, suas estratégias, manobras (defensivas) e decisões.

Estes aspectos tocam diretamente o problema da experimentação, bastião das três características citadas e tabu sagrado da nossa psicologia positiva. A este propósito, e para resumir estas considerações, podemos lembrar um trabalho de Skinner, de 1958, intitulado "A fuga do laboratório". Alí, o grande behaviorista critica a fuga rumo ao "homem interior" e as "pessoas concretas", como sendo uma tentação à qual devemos saber resistir... Mas antes de estigmatizar uma tal fuga do laboratório, não deveríamos primeiro questionar-mo-nos sobre a fuga para dentro do laboratório? A fuga para a abstração, objetivação, quantificação, diante das dificuldades encontradas em frente à opacidade, à falta de transparência que nos oferece o homem concreto, subjetivo e histórico - opacidade esta que é também a nossa própria, coextensiva à condição humana e responsável pela incompreensão que manifestamos habitualmente diante de nós mesmos. A esta falta de transparência, podemos ser tentados a opor a "clareza" sedutora emanente do laboratório; mas não será uma tal clareza positiva obtida ao preço de uma redução, de uma simplificação excessiva, ou ainda de um empobrecimento da dimensão especificamente humana, considerada tantas vezes como um simples "ruído", parasitário e incômodo, a ser eliminado para que os fatos possam ser encaixados nos moldes positivos...?

Entretanto, este ruído, esta opacidade poderiam conter elementos importantíssimos para a compreensão do homem - apreensível nos seus aspectos qualitativos e subjetivos, desde então, somente através de uma interação, de um movimento dialético complexo. Um tal movimento dialético é" imprescindível na abordagem deste homem subjetivo e qualitativo, porque este representa não um sistema fechado, como já foi lembrado, nem um sistema linear ou causalista, determinado por algumas poucas variáveis, mas um "sistema crono-holístico" (Devereux), ou seja, uma globalidade determinada pelo conjunto de sua memória, sempre presente com todas as suas ramificações. Esta característica - intimamente ligada, aliás, ao inconsciente e à sua atuação dinâmica - impossibilita, ainda, a predição exata de comportamentos futuros, o que significa que um outro critério importante das ciências exatas não se deixa aplicar ao estudo do homem.

Diante desta rápida análise da ciência psicológica e das suas premissas positivistas, devemos concordar com Koch (1977) , segundo o qual a psicologia, encarada deste ângulo, se tornava uma "ciência de imitação", uma vez que muitos dos seus conceitos emprestados de outras ciências têm uma significação diferente quando aplicados ao estudo do homem concreto. Uma tal ciência de imitação pode, na opinião deste autor americano, reunir muitos resultados numéricos de detalhe, mas leva inevitavelmente à fuga diante do objeto específico de sua pesquisa e, finalmente, à sua "desvaliação". A história da psicologia científica testemunha suficientemente este aspecto, se pensarmos, por exemplo, no fato de a maioria dos grandes modelos teóricos de uma época não sobreviverem à geração de seus fundadores, sendo eles prontamente substituídos na geração seguinte. De sorte que a psicologia está longe de ser uma ciência cumulativa como o são as ciências exatas (pelo menos ao nível de um paradigma dado, no sentido de Kuhn).

Todavia, me parece que não precisamos seguir Koch quando conclui que a psicologia é uma "disciplina fraudulosa", baseada mais num "rigor científico de imitação". Para caracterizar a evolução centenária desta nova ciência, acho preferível então recorrer à noção de mito (e não de fraude, com suas conotações moralistas), noção que recebe uma configuração mais precisa quando analisarmos as suas premissas metodológicas. O próprio Koch, alias, nos aponta este caminho, quando coloca que "ciência" seja "talvez a palavra mais rica, mais brilhante e mais tranquilizante do moderno vocabulário". Voltarei a este "efeito tranquilizante" na última parte; aqui, permito-me somente indagar se não seria melhor, diante das dificuldades encontradas, renunciar a proclamar a unidade da ciência psicológica. Esta parece ser a opinião também de Mueller (1979), autor que, na sua retrospectiva dos 100 anos desta psicologia como ciência, acredita poder reconhecer progressos científicos importantes, mas que não permitiriam ao psicólogo de hoje definir que ciência é a sua psicologia... Pelo menos, a integração dos achados parciais numa visão unificada da psicologia parece no momento tão irrealizável quanto uma definição unânime do seu objeto.

 

PSICOLOGIA "POSITIVA" VERSUS PSICOLOGIA "NEGATIVA"?

Numa última parte, gostaria, a partir do desenvolvimento efetuado, de propor uma reflexão pessoal sobre a noção de psicologia positiva e seu antípoda que seria, necessariamente, uma "psicologia negativa". A meu ver, trata-se aí de outra coisa do que um simples jogo de palavras sem significação - uma vez que as palavras querem dizer algo e que a noção de "positiva" faz parte de um contexto histórico que quis extirpar, explicitamente, o "obscurantismo" do negativo pelas "idéias claras e distintas"...

O que caracterizaria, então, uma tal psicologia negativa, "banida" pelo movimento cientista do positivismo (e de seus sucessores) da comunidade científica e quase privada dos seus direitos de cidadania? Me parece que devemos incluir nesta psicologia negativa, necessariamente concreta, o estudo de todas estas experiências negativas que o homem está fazendo consigo mesmo e com os outros, ligadas à sua situação "dramática"(Politzer), jogado que ele é (para falar como os filósofos do existencialismo) no universo, na "existência". Fazem parte destas experiências a ansiedade (ou angustia) existencial, a agressividade e a destrutividade humana (até a nossa própria, a de cada um); a mortalidade finalmente, ou seja, o espectro da morte, inelutável na sua certeza objetiva e absoluta - a única certeza não-científica sobre a qual não há dúvida.

De maneira mais ampla, fazem parte destas experiências negativas todos os fenêmenos irracionais - não só a morte, mas também o amor e a sexualidade, ambos banidos do laboratório, ao menos no seu alcance humano. Estes se infiltram, através de nossos desejos, em nossa consciência, fazem irrupção em nosso comportamento, oriundos de um "outro lugar" (Fechner), desta "cena alheia" e do seu efeito "subversivo" sobre as nossas certezas bem ordenadas - efeito que a abordagem positiva tenta precisamente eliminar ou minimizar, referindo-se a uma concepção científica "tranquilizante" do psiquismo e do seu funcionamento. Nesta visão, o homem é neutralizado e "asseptizado" nas suas meras manifestações comportamentais que, além de ser controláveis, são consideradas como respostas lógicas purgadas de qualquer irracionalidade - mas, por conseguinte, também da sua significação humana.

Tais experiências irracionais predominam facilmente em certos estados psicopatológicos, mas se manifestam ainda na vida cotidiana de qualquer um, seja somente nos sonhos - e sempre têm este caráter de estranheza, quando percebemos que se trata de algo nosso, mas que escapa ao nosso domínio. A atitude que adotamos, espontaneamente, perante tais experiências negativas ou irracionais, é a de controlá-las, fugir delas, ignorá-las quando elas incomodam demais - ou ainda de exorcizá-las para dentro de representações mais asseguradoras. E é neste ponto que devemos reintroduzir a noção de mito. O pensamento mítico (que é um pensamento, com todas as características e complexidades de uma estrutura simbólica) pode ser compreendido como uma destas representações construídas para garantir o domínio racional deste irracional enigmático que ameaça o homem "de dentro".

Uma das funções do mito seria, desta maneira, oferecer ao individuo e ao grupo um contexto referencial, no que diz respeito sobretudo à questão da sua origem (os mitos de cosmogonia e de antropogênese) ou ainda à estruturação familiar e social e ao sentido de sua vida no conjunto do universo. Para citar mais uma vez Levi-Straus (1958), a finalidade do mito seria fornecer um modelo lógico para resolver uma contradição -e o autor acrescenta: tarefa irrealizável quando a contradição faz parte da realidade, o que é precisamente o caso no exemplo aqui visado, o dos fenômenos irracionais. Isto significa, portanto, que o mito não poderá resolver o problema existencial do ser humano, mas poderá torná-lo tolerável quando levado à dimensão da representação coletiva.

Portanto, o mito pode ser considerado como uma representação positiva, como uma resposta às preocupações decorrentes dos fenômenos angustiantes dos quais o indivíduo tanto e o expectador(privilegiado)quanto a sede, a"matriz".Neste sentido, a psicologia positiva pode ser considerada como um sistema de representações destinado a opor uma barreira racional às ameaças que o homem moderno tem que enfrentar, quando sua própria irracionalidade faz irrupção na sua vivência "esclarecida". Ademais, a referência a um sistema de saber objetivo, imutável, "certo", pode constituir a mesma proteção que o mito ofereceu ao "homem primitivo" - que talvez nós somos todos ainda, devido ao nosso fundo antropológico comum. Reencontramos aqui, sem dificuldades, o aspecto tranquilizante da ciência, evocado por Koch e destinado a apaziguar a nossa irrequietação.

Por conseguinte, quando Levi-Strauss indaga se a lógica do pensamento mítico não é a mesma do pensamento positivo, podemos facilmente ampliar esta idéia e sustentar que se trata de duas operações mentais semelhantes para atingir uma certa verdade (sempre relativa, mas sempre almejada na sua totalidade) e oferecer, destarte, uma resposta às preocupações existenciais do homem.

A minha comparação - cuja pertinência será julgada pelo leitor - não visa a "derrubar" a psicologia positiva e suas pretensões de cientificidade pura, mas pretende desmascarar estas pretensões no que elas têm de desmedido e algumas vezes de arrogante, desconhecendo o fundo histórico e antropológico - e suas implicações sempre presentes - sobre o qual elas cresceram. A cientificidade de tal ou tal estudo de tal ou tal objeto definido não pode ser fixada de antemão, de maneira imutável, nem podem ser importadas metodologias elaboradas em disciplinas alheias, para serem aplicadas, sem discernimento, a outras áreas de conhecimento - se não, nós nos situaríamos rapidamente ao nível de dogmas, que também se deixam entender como produções míticas correspondendo à mesma necessidade do homem de construir referências estáveis e asseguradoras fora de si.

O problema do irracional na conduta humana não deve ser negado ou evitado pela "fuga para o laboratório" ou pela prioridade intransigente atribuída ao estudo do "homem geral", nem pela primazia reservada a aspectos parciais ou ultra-detalhados do seu comportamento; ao lado desta psicologia geral, urge a elaboração de uma psicologia concreta que, longe de pretender alcançar a abstração, aceita a implicação do psicólogo nas interações múltiplas para com o seu objeto - que, precisamente, é um sujeito, a ser apreendido na sua singularidade subjetiva. Esta subjetividade não representa um déficit, uma fraqueza desta abordagem psicológica preconizada, mas uma riqueza para o estudo de fenômenos humanos de alta relevância. Esta psicologia será concreta e universal ao mesmo tempo, se ela conseguir investigar e articular entre si elementos humanos" significantes de uma tal profundidade que revelem os alicerces da estruturação do homem, a um nível trans-individual e propriamente antropológico.

Uma tal abordagem evidentemente não permitirá verificações empíricas diretas ou "positivas", mas nem por isso será necessariamente desregulada, incontrolável, anti-científica, selvagem ou especulativa. Para obedecer a um tal intuito, é preciso basear-se em critérios próprios de cientificidade, que são diferentes dos" das ciências exatas - o que não quer dizer que eles sejam obrigatoriamente menos rigorosos, sendo que o critério de exato (quer dizer, quantificável e metrificável) não é o único critério científico. Qualquer sistema com pretensões de cientificidade se valida não pelo aspecto da exatidão, mas pela coerência lógica das suas proposições e hipóteses teóricas, o que é um problema não quantitativo, mas epistemológico.

Finalizando, gostaria sublinhar que minhas considerações devem ser aceitas como uma contribuição crítica ao problema da psicologia científica, querendo mostrar a necessidade de uma "epistemologização" da posição positivista ,e sobretudo experimental. Esta reflexão epistemológica me parece fazer falta no trabalho de muitos pesquisadores, mais preocupados com a acumulação de miríades de resultados de detalhes (obtidos em círculos fechados e bastante herméticos), do que com a significação destes dados e com o contexto global (do ser humano) no qual eles devem ser inseridos. Neste sentido, é preciso atribuir à psicologia científica um lugar relativo no processo cognitivo da ciência como tal - nesta ciência entendida como movimento do espírito humano visando desvendar os segredos da existência, tanto física quanto psíquica, e onde os critérios de cientificidade não são nem absolutos nem metalógicos, mas ditados pelas especificidades do objeto estudado.

Não quero esquivar-me, finalmente, no que tange à questão colocada como título do meu trabalho. Não será o dilema aí apontado um falso dilema, como se existissem dois tipos de realidade, a positiva-objetiva, representando "o real" como tal, e a fantasmática-mítica, produto da elaboração psíquica incontrolada de cada um de nós, em função de nossas necessidades de defesa e de proteção...? Para superar este dilema, é preciso talvez renunciar à alternativa "realidade ou mito" e visar a integrar o mito da realidade (objetiva, pura) na realidade do mito, para conseguir um dia superar o dilema em pauta que tanto pesa sobre a evolução desta psicologia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* Versão revista e ampliada de uma palestra, pronunciada na sessão comemorativa do centenário da psicologia científica, em junho de 1979 na Universidade de Brasília.