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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.1 n.1 Brasília jan. 1981

 

O toxicômano: dados psico-sociais e estrutura psico-dinâmica*

 

 

Richard Bucher; Maria José C. Ulhoa; Sérgio M. Longo

Departamento de Psicologia - Universidade de Brasília 70910 - BRASÍLIA/DF

 

 


RESUMO

Toxicómanos foram examinados mediante um questionário e o teste projetivo de Szondi. A divisão em três grupos (dois masculinos e um feminino) permitiu efetuar comparações estatísticas e interpretar as estruturas pulsionais bem como suas características diferenciais.
Os resultados do teste de Szondi revelam um desequilíbrio profundo da personalidade e de suas possibilidades de relacionar-se com outros, sendo que estas dificuldades afetam os dois sexos de maneira diferente. Ambos os grupos em cura de desintoxicação apresentam numerosos sintomas psicopatológicos, consequências prováveis tanto do consumo de tóxicos como de desestruturações anteriores. O terceiro grupo (toxicômanos encarcerados) apresenta conflitos que parecem ser mais diretamente sociais do que familiares ou psicológicos. Nos outros grupos, as dificuldades de estruturação psíquica e de integração psicossocial parecem ser devidas à problemática familiar.                                                           '


SUMMARY

Drug users were examined with a questionnaire and Szondi's Projective Test. They were divided into three groups in order to permit statistical comparisons and interpretation of their drive structures as well as differential characteristics.
The results of Szondis Test reveal a profound imbalance in personality and in the possibility of object relationship, the latter showing differences beween the sexes. Both groups react with numerous pathological symptoms, which are likely due to the consumption of drugs and to previous destructuring. The institutionalized drug users present conflicts which appear to be social rather than familial or psychological. For the other groups, difficulties of psychic structure and social integration appear to be due to family probems.


RESUMÉ

Jeunes toxicomanes ont été examine avec um questionnaire de données personnelles et le test projectif de Szondi. La division en trois groups (deux masculins et un fiminin) permit d'effectuer des comparaisons statistiques et d'interpréter les structures pulsionnelles ainsi que les caracteristiques différentielles. Les résultats du test de Szondi montrent un desequilibre profond de la personnalité et des difficultis de relation qui, toutefois, affectent les deux sexes de façon différente. Les deux groupes en cure de disintoxication font preuve de nombreux symptômes psychopathologiques, conséquences probables autant de l'absorption de drogues comme de déficiences des structurations antérieures. Le 3e groupe (toxicomanes encarcérés) manifeste desconflits qui paraissent plus directement sociaux que familiaux ou psychologiques, à l'opposé des deux premiers, ou les difficultés de structuration psychologyque et d'intégration psychosocial semblent dues à la problématique familiale.


RESUMEN

Toxicámanos fueron examinados mediante um cuestionario y el test proyectivo de Szondi. La division en tres grupos, dos masculinos y uno femenino, permitió efectuar comparaciones estadísticas e interpretar las estructuras pulsionales, así como sus caracteres diferenciales.
Los resultados del test de Szondi revelan un desequilíbrio profundo de la personalidad y de sus posibilidades de relacionamiento con los otros, siendo que éstas dificuldades afectan los dos sexos de manera diferente. Ambos grupos en una cura de desintoxicación presentan numerosos síntomas psicopatológicos, consecuencias probables tanto por el consumo de tóxicos como de desestructuraciones anteriores.
El tercer grupo, toxicómanos encarcelados, presentaran conflitos que parecen ser más directamente sociales que familiares o psicológicos. En los otros grupos, las dificultades de estructuración psíquica y de integración psicosocial, parece ser debido a problemática familiar.


 

 

INTRODUÇÃO

Numa tentativa de investigar e analisar os aspectos sociais e psicodinâmicos de jovens toxicômanos na realidade brasileira, empreendemos uma pesquisa com uma população na faixa etária de 15 - 25 anos, recolhidos em instituições do Distrito Federal .

Se bem que, nossa meta principal era analisar as estruturas psicodinâmicas subjacentes à personalidade desses jovens, não menos importantes seria sensibilizar a família e os responsáveis a nível social e político, em geral da urgência de medidas preventivas da toxicomania, antes que seja preciso recorrer a ações terapêuticas sempre duvidosas. De fato, as estatísticas concernentes à toxicomania tornam-se cada vez mais inquietantes, atingindo, hoje, uma idade muito precoce em todas as camadas da sociedade.

Todavia, não podemos assegurar quanto à metodologia empregada no levantamento dos dados estatísticos" e à significação destes para uma definição operacional do problema.

Na América do Norte, segundo um levantamento de Schafer (1973, citado por Ajuriaguerra), 40% dos americanos experimentam drogas pelo menos uma vez. Em relação ao conjunto da população americana de 18 a 21 anos, os jovens toxicômanos graves ("fixos"), representariam 3,5%. Entretanto, parece que o aumento anual dos jovens consumidores de drogas está diminuindo na América do Norte. Na Europa, o uso de drogas parece ser de menor extensão.

Segundo Ajuriaguerra, uma das raras investigações fundamentada em uma amostra verdadeiramente representativa é a de Muller & Cols (1972), referente a toda população masculina de 19 anos que, em 1971, passou pelo recrutamento em Zurich (Suiça). As estatísticas revelaram que 65% dos consumidores não são mais que experimentadores; 72,9% podem ser classificados de usuários "ligeiros", que provam só a Haschisch e alucinógenos; o grupo de toxicômanos graves ("fixos") representa 7,11 % do total de consumidores. Porém, o autor não indica a proporção de toxicômanos na população examinada.

No Brasil, carecemos de dados oficiais sobre o consumo de drogas, referente a uma amostra nacional representativa. Entretanto, temos conhecimento de uma clara agravação do fenômeno, maior difusão geográfica , progressão nos casos de dependências e uma idade mais baixa dos sujeitos.

Costuma-se abordar a toxicomania de uma maneira unidimensional, considerando como toxicômanos os indivíduos que, fazendo uso de drogas, violam as prescrições legais ou transgridem as normas habituais da vida em sociedade. Ora, esta é uma definição puramente descritiva que não leva em consideração as motivações, nem a personalidade dos sujeitos.

No âmbito internacional, os numerosos trabalhos da Organização Mundial de Saúde visam não só pesquisar a natureza do problema entre os jovens, mas, acima de tudo, empreender programas de ação terapêutica e preventiva. Estes, entretanto, variam de acordo com a concepção que se tem da toxicomania. Assim é que, na Grã-Bretanha, os problemas de tratamento e de reinserção das pessoas em estado de dependência fazem objeto de uma regulamentação e se fundam sobre a concepção de que os toxicômanos são enfermos. Nesta convicção se baseia o relatório estabelecido em 1967 pela "Comissão Brain", dando origem às atuais clínicas de tratamento do "National Health Service", instituidas no fim dos anos 60, para que se pudesse beneficiar de tratamento um número crescente de toxicômanos (Relatório da UNESCO, PARIS 1977).

Semelhante concepção encontramos no trabalho realizado por Holotan (1972) que, numa tentativa de caracterizar a personalidade de adolescentes que fazem uso de drogas, investigava a presença de sintomas psicopatológicos, utilizando cinco escalas do M.M.P.I. O autor comparou um grupo de 50 adolescentes toxicômanos com outro de 50 não toxicômanos.

Os resultados demonstraram uma significativa diferença entre ambos os grupos que concerne aos scores referentes à psicopatia, esquizofrenia e hipomania. Entretanto, os scores referentes à histeria e introversão social não foram significativos.

Estes achados sugerem a existência de certas características de personalidade que diferem os toxicômanos dos não toxicômanos, sendo que os primeiros se caracterizam por impulsividade e uma rejeição às convenções sociais. Esta visão psiquiátrica do problema, se limitando a classificar os sujeitos como portadores de doenças mentais, implica em uma falsa ideologia e se assemelha à visão dos juristas, dois pontos de vista autoritários segundo os quais o infrator deve ser enviado ou ao hospital psiquiátrico ou ao cárcere.

Ora, o aspecto social do problema não pode ser negligenciado e, atualmente, são inúmeros os trabalhos realizados à. luz desta nova dimensão. Assim é que, um grupo de estudiosos da OMS (Genebra, 1973) foi encarregado de examinar em uma perspectiva ampla a natureza do problema entre os jovens.

Este grupo, a partir de pesquisas realizadas junto a jovens toxicômanos de vários países, chegou à conclusão de que uma ou várias motivações estão associadas as primeiras experiências com droga à sua repetição. Ao lado dessas motivações certas circunstâncias externas podem encorajar uma pessoa a experimentar drogas, provocando em seguida uma dependência, a saber: a permissividade da sociedade a respeito do emprego de drogas, para aliviar um estado de angústia ou modificar o humor; a mobilidade geográfica atual das pessoas, das idéias e dos objetos; a influência da família e dos sub-grupos culturais, assim como a origem e a qualidade da informação sobre o uso de drogas.

Baseadas nesta ultima dimensão são as pesquisas realizadas por Rollins & Holden (1977 - 1978) na Islândia. Através de entrevistas com 167 drogados, os autores chegaram à conclusão de que a experiência social tem uma considerável influência sobre a iniciação ao uso de drogas.

Também é de particular interesse o trabalho de Cordéiro (1975), que, a partir de observações e atuação clínica junto a jovens pacientes, interpreta o fenômeno sob os pontos de vista sociológico e psicodinâmico.

Segundo este autor, a droga e um meio de fugir do mundo e de rejeitar a sociedade. O desejo intenso de fugir sugere que o toxicômano quer livrar-se de seu ambiente, em consequência de uma angústia profunda e intolerável por não encontrar seu lugar na sociedade.

Não são raras as investigações realizadas com o objetivo de compreender a personalidade do jovem toxicômano. Em uma recente pesquisa, Gschwend e Sieber (1978) aplicaram o teste de Rorschach em dois grupos de jovens, consumidores e não consumidores de drogas, estabelecendo uma comparação multidimensional de síndromes.

Os resultados mostraram que os consumidores de drogas reduziam o controle da realidade e usavam um processo cognitivo global. Eles apresentavam uma maior ansiedade e preferiam certas formas de negação, como mecanismo neurotico de defesa. Também dirigiam seus impulsos agressivos contra si mesmos.

Lamentavelmente, os autores não se referem ao tamanho da amostra, nem à natureza dos conflitos ou à dinâmica da personalidade desses jovens.

Nesta mesma ordem de idéias, mas com um alcance mais vasto, é o trabalho que vem realizando Olievenstein, em Paris. O autor, através de suas observações clínicas com pacientes toxicômanos, considera que a descrição analítica clássica negligencia muitos problemas. O primeiro é a transgressão social que é evidente, mas, há também a transgressão à lei do pai. Por outro lado, uma das dimensões do consumidor de drogas è o desejo de morte, e não somente um desejo de prazer; mas o que parece manifestar-se com uma particular frequência são as tendências homossexuais, com ou sem passagem ao ato. Existiria uma angústia diante dessa homossexualidade, que marcaria a estrutura psicológica. De onde, a fuga diante da relação com o outro, com o "tu", que não se atribui a um distúrbio de contato, mas que é um pânico que se supera em uma união de si com o si, por intermédio da "droga".

 

METODOLOGIA

1 - Amostra:

O projeto inicial pretendia entrevistar e testar dois grupos de 30 adolescentes toxicômanos de 12 a 18 anos, divididos segundo o sexo, com o intuito de comparar os dois grupos.

Diante da impraticabilidade de abordagem de adolescentes toxicômanos "ativos", ou seja, praticando o uso de tóxicos em liberdade, este projeto teve de ser mudado e adaptado à realidade com a qual nos deparamos. Os limites etários foram ampliados e se estendem agora dos 15 aos 25 anos, sendo nossa amostra constituida de adolescentes como de jovens adultos.

Conseguimos finalmente, em prazo de 15 meses, examinar 34 pessoas, todas consumindo tóxicos por vários anos e demonstrando acentuada dependência de drogas. Os sujeitos foram divididos em três grupos: Grupo A: 13 homens encarcerados por uso de tóxicos em núcleo de custódia policial, aguardando julgamento em tribunal; idade média: 21 anos**. Grupo B: 12 rapazes recolhidos numa instituição religiosa de recuperação de jovens toxicômanos; idade média: 20 anos. Grupo C: 9 moças recolhidas na mesma instituição religiosa: idade média: 18 anos ***.

Devido à dificuldade de encontrar sujeitos não toxicômanos nas mesmas instituições onde foi realizada a pesquisa, não nos foi possível constituir um grupo de controle; trata-se pois de uma pesquisa de caráter exploratório.

2 - Instrumentos:

Para consecução dos nossos objetivos, utilizamos os seguintes instrumentos: a) - um questionário de dados pessoais e clínicos com 105 variáveis (dados de identificação, sócio-culturais, antecedentes familiares e pessoais, sintomas anteriores e atuais), a ser preenchido pelo entrevistador após uma ou várias entre vistas semi-dirigidas; b) - o teste de Szondi (Com 05 aplicações).

Assinalamos que as normas brasileiras do teste de Szondi estão em via de estabelecimento, como parte de uma pesquisa mais ampla, visando também contribuir à validação interna do mesmo (cf. Bucher, 1977,1980). As entrevistas foram realizadas em condições desiguais: no grupo A, o entrevistador conseguiu conversar livremente com os sujeitos e testá-los num prazo restrito. Já no grupo B, não foi possível entrevistar os rapazes detalhadamente, por razões inerentes à instituição. Disto resultou uma alta frequência de faltas de respostas (SR) no questionário. No grupo C, finalmente, estas dificuldades puderam ser parcialmente contornadas e os questionários foram preenchidos quase que completamente.

Nossa amostra de 34 jovens toxicômanos e deveras pequena demais para a retirada de conclusões estatisticamente valida. Não obstante, achamos interessante apresentar os resultados do questionário a título indicativo, por acreditarmos que a pesquisa, realizada em condições desfavoráveis - típicas, aliás, de pesquisas conduzidas fora do laboratório - representa uma experiência piloto que podera e deverá atrair o interesse por investigações similares com populações maiores e, se possível, "in vivo".

Como os resultados do Teste de Szondi são baseados em cinco aplicações, do que resulta um total de 170 perfís pulsionais, uma análise estatística ( teste de significância X2 ), faz sentido apesar dos grupos serem pequenos.

 

3 - DADOS DO QUESTIONÁRIO

Apresentamos na tabela I alguns dados revelantes de identificação para melhor especificar a nossa amostra. Percebemos que os sujeitos do grupo A são oriundos, em media, de famílias mais numerosas e, provavelmente, de baixa renda (escolaridade fraca, profissões pouco qualificadas). A proporção de imigrantes do Nordeste é elevada, o que vale também para o grupo B. Este, porém apresenta um nível sócio-cultural mais elevado, em oposição ao grupo C das moças que, no conjunto, são também mais novas. E de se notar que os sujeitos dos grupos B e C têm pouco tempo de residência no Distrito Federal, ao passo que os membros do grupo A imigraram já há algum tempo para Brasília. É de se supor que estes já estejam mais integrados ou mais "organizados" no novo ambiente. Desse fato inferimos que no Grupo A, recorrer à droga obedece, provável mente, a motivos outros do que no caso dos jovens recolhidos para uma cura espitirual de desintoxição. Também não podemos excluir o fato de os custodiados policiais ser tanto traficantes quanto consumidores de tóxicos.

 

 

A tabela II apresenta as informações obtidas sobre o relacionamento social dos nossos sujeitos.

 

 

É obvio que tais informações são sujeitas a dúvidas no que tange a sua sinceridade, pois, podem ser truncadas mesmo involuntária ou inconscientemente, sobretudo por tratarem de dados que poderiam (na mente dos entrevistados) comprometê-los.

Não obstante está dúvida que paira sobre todas as enquetes, por questionário ou entrevista - achamos valido comunicar os dados recolhidos sobre o relacionamento social em geral, por causa da relativa constância das suas respostas. Em todos os grupos, o relacionamento com a família se destaca como o mais insatisfatório. O relacionamento com amigos é considerado bom pelos entrevistados (sobretudo nos grupos B e C); possivelmente trata-se aí de grupos fechados de amizade substituindo as famílias maçantes por uma íntima convivência grupal, da qual pode fazer parte o uso de tóxicos.

Na tabela III, enumeramos os sintomas mais frequentes. A maioria dos sujeitos sofre de estados de depressão e/ou angústia, apresentando, ocasionalmente, fobias e distúrbios do sono. A incidência de enurese é elevada nos grupos A e C, sendo que dois membros de cada grupo indicam uma incontinência urinaria atual.Este sintoma deve chamar a atenção como índice de uma perturbação mais profunda, relacionada mais provavelmente com problemas oriundos da infância do que decorrentes do uso de tóxicos. Os sintomas psicóticos no entanto, devem resultar da tomada de tóxicos, representando um efeito bastante comun.

 

 

 

Os tipos de drogas utilizadas são diversos, sendo que a maioria dos sujeitos são politoxicômanos, consumindo, frequentemente, também bebidas alcoólicas. Tensão, agitação, instabilidade, angustia e outros efeitos pós-tóxicos parecem ser combatidos, sem dúvida em escala crescente, pela tomada de anti-distônicos, em geral auto-administrados, o que só faz intensificar o círculo vicioso da dependência.

As idéias de suicídios são frequentes. Elas surgem quase inevitavelmente quanto o toxicômano, depois de uma fase de "lua de mel", começa a sentir o efeito debilitador da droga sobre o seu organismo, quanto os estados de felicidade, de devaneio ou de "rush" se fazem mais raros e espaçosos - ou ainda, quando as drogas almejadas se tornam inacessíveis. Segundo as informações obtidas, 11 dos nossos sujeitos, ou seja , 1/3 da amostra, já chegaram a cometer tentativas de suicídio.

No conjunto, verificamos que as moças do grupo C apresentam mais sintomas psicopatológicos que os outros sujeitos . Podemos questionar se este fato não é devido a conflitos maiores ou mais profundos com a família e a sociedade. Parece-nos possível que a revolta contra certas condições familiares e sociais - e o consequente recurso aos tóxicos - produz efeitos mais devastadores ou mais trágicos ainda sobre a adolescente do que sobre o rapaz. A análise do teste projetivo poderá, em seguida, informar sobre o alcance deste efeito e seu eventual poder desestruturante.

 

04 - RESULTADOS DO TESTE DE SZONDI

Todos os nossos sujeitos foram testados cinco vezes com o teste projetivo de Szondi, o que nos forneceu um total de 170 perfís pulsionais.

A tabela IV apresenta os resultados por fator dos três grupos.

 

 

Decidimos efetuar duas comparações estatísticas, comparando os dois grupos masculinos ( A e B) de um lado, os grupos da instituição de recuperação ( B e C ) de outro. Percebemos na tabela V que existem algumas diferenças significativas: nos fatores d e m em ambas as comparações; no fator s na primeira e no fator hy na segunda comparação.

 

 

Para poder interpretar as estruturas pulsionais arroladas bem como as suas diferenças características , julgamos útil estabelecer, a partir das reações proporcionalmente prevalentes, os perfis médios dos três grupos (Tabela VI). Aproveitamos para inscrever nesta tabela as cargas quantitativas (!) , ou seja, as reações fatoriais que apresentam acumulações ou tensões quantitativas.Estas indicam represamento nas respectivas áreas pulsionais, índice que pode contribuir à caracterização da estrutura profunda da personalidade. O número de tais cargas quantitativas, no entanto, é relativamente, pequeno em nossa amostra.

 

 

Os membros do grupo A, custodiados no núcleo policial, revelam uma estrutura pulsional bastante comparável à do homem comum, com uma sexualidade funcional integrada ( S++ ), afetos hostís e angustiados ( P-- ) e um Eu disciplinado e submisso ( Sch-- ). Porém, reações narcísicas são relativamente frequentes (k+, p+), o que indica a presença de certas ambições de "ser" e de "ter", de ideais elevados, de uma propensão a fugir no imaginário e de desejos eventualmente excessivos de auto-realização. Estes devem entrar em choque com certas limitações impostas pela realidade concreta. Finalmente, o contato testemunha - igual ao vetor do Eu ( Sch ) - uma certa instabilidade e indefinição, o que significa que não existem, neste setor, reações específicias para este grupo, ou então, que uma tal instabilidade das relações objetais marca os próprios indivíduos, divididos e hesitantes diante da necessidade de se fixar em determinadas direções ou posições.

O grupo B difere do primeiro no fator s, atestando reações muito mais passivas e até masoquistas, o que deve ser ligado a uma certa dificuldade na identificação masculina (rejeição ou fuga do engajamento viril e da assunção do corpo próprio). Uma tal dificuldade se reflete ainda no vetor do Eu, caracterizado por uma estruturação predominantemente feminina, mas conflitiva quanto à aceitação dos ideais mais femininos ou bissexuais. A frequência da reação k± testemunha ainda uma certa compulsividade, uma tendência a controlar os desejos inflativos por mecanismos obsessivos, sem dúvida para conjurar as dificuldades de integração masculina -tentativa, todavia, que não parece bem sucedida. A configuração do contato se revela, em oposição ao primeiro grupo, bem estruturada e estável, até um tanto rígida. Não podemos concluir disto que existe uma verdadeira fixação oral ( ou incestuosa ), mas uma inclinação ( compulsiva ) para a procura de satisfações orais parece--nos provável, a relacionar sem duvida com a toxixomania.

O grupo C, das moças, embora menor que os outros, apresenta reações bastante uniformes em seis fatores, mas revela uma indiferenciação surpreendente no fator P.

No conjunto, sexualidade funcional relativamente equilibrada, com dissimulação enérgica (hy-!) dos afetos - predominantemente hostis (e-) - e tendência ao conformismo social, mas também a preocupar-se sensitivamente com a opinião dos outros. Neste sentido, a tomada de tóxicos bem poderá representar uma revolta contra uma certa repressão social ou familiar que, por ser fortemente interiorizada e assimilada, não pode ser liquidada pela mera atuação externa. Pelo contrário, esta poderá ainda aumentar o dilema e provocar, a médio ou longo prazo, um desabamento progressivo da personalidade, perturbando sobretudo a identificação feminina. A nítida depressividade e labilidade do contato deve ser visto nesta mesma linha: reação a um desejo de revolta e de fuga para frente, mas que não pode ser realizado por falta de assessoria e consistência internas.

Resumindo, podemos dizer que as estruturas psico-pulsionais evidenciadas demonstram uma elevada semelhança, mas também algumas diferenças significativas .Nos dois grupos masculinos, a problemática da identificação sexual caracteriza mais o grupo B. Os membros do grupo A parecem possuir, no conjunto, estruturas mais estáveis e menos sujeitas a perturbações o que poderá ser um indício de se tratar mais de delinquentes "comuns" do que de toxicômanos, ou seja, vítimas mais de problemas sociais (aos quais eles reagiram com os meios disponíveis) do que de conflitos psíquicos ou familiares.

Tais conflitos marcam mais os dois grupos em recuperação (B e C), sendo que tanto os rapazes que as moças reagem com uma grande insegurança quanto a imagem de si e ao papel sexual. Ambos representam sinais de desequilíbrios importantes, mas em áreas diferentes, o que justifica tê-los separados segundo o sexo.

 

05 - DISCUSSÃO

Num estudo anterior (Bucher & Ulhoa,1979), examinamos de maneira semelhante um grupo de jovens delinquentes (não toxicômanos; n = 19) e um grupo de jovens abandonados (recolhidos a uma instituição privada de assistência; n=34). Os resultados do teste de Szondi demonstraram a existência de estruturas psicopulsionais relativamente específicas. Os jovens de linquentes , de um nível sócio-econômico superior, apresentam um desequilíbrio acentuado na estruturação psíquica, oriundo de carências psico-afetivas precoces, em oposição aos jovens abandonados que conseguiram, apesar de todas as frustrações e carências reais, estruturarem-se de maneira socialmente integrante ( embora ao preço de mais sintomas psicopatológicos do que os de nível sócio-econômíco superior).

Contentamo-nos aqui em comparar os perfís médios dos cinco grupos (tabela VI e VII). Percebemos que os grupos A (custodiados) e II (jovens abandonados) revelam reações predominantemente comuns. As poucas diferenças constatáveis nesta comparação parecem responsáveis, no entanto, pela delinquência do grupo A ( o que implica também que não será justo falar, a nosso ver, do segundo grupo como de "pre-delinquentes"). Trata-se das reações narcísicas do Eu, já descritas antes, e da reação m+, sinal de uma certa avidez ( ou mesmo voracidade) oposta à resignação solitária (m-!) dos rapazes do grupo II.

De outro lado, existem afinidades entre os grupos B, C e I, sobretudo no que diz respeito à configuração do centro (vetores P e Sch). Os rapazes ( grupos B e I) apresentam, além disso, uma mesma dificuldade em estruturar-se a nível sexual, hesitando entre uma posição ativa e masculina, e uma posição mais masoquista (ou até auto-destruidora) rejeitando o engajamento viril. Mas os delinquentes evidenciam um contato mais desintegrado (C--), responsável, sem dúvida, pela desestabilização social, quanto os toxicômanos do grupo B se atêm (m+) a um objeto (oral), que eles tentam transformar em fonte de prazer e segurança. Isto parece bem caracterizar a toxicomania: Procura de um objeto substitutivo podendo preencher a falha deixada pela separação da mãe , vivenciada mais como uma rejeição do que como uma evolução natural é necessária.

O grupo C, feminino, destaca-se dos outros pela repressão maciça dos afetos (eróticos e femininos) e pela depressividade do contato, o que não encontramos em nenhum dos outros grupos. Podemos ver nisso mais uma confirmação da nossa suspeita de que as moças toxicômanas são diferentemente atingidas (e talvez mais abaladas ainda) na sua estruturação psíquica do que os rapazes.

Podemos, finalmente, comparar com uma pesquisa publicada na França (Studer, 1974), consagrada ao exame de 30 toxicômanos masculinos e 20 femininos. Nas conclusões, o autor insiste sobre a diferença de posição diante da sexualidade. Nos rapazes, existiria uma tendência à inversão (homossexual), nas moças uma repressão da sexualidade feminina. Esta interpretação se aplica quase que perfeitamente aos nossos resultados dos grupos B e C, em que podemos perceber um indício da validade clínica (e transcultural) do Teste de Szondi.

 

06 - CONCLUSÕES

A nossa investigação piloto demonstrou que a toxicomania, embora considerada como delito, como infração a ser punida pelas penalidades prescritas em lei é um fenômeno complexo no qual se destacam os aspectos psicológicos e sociais. Ela pode ser considerada como um "comportamento desviado", mas uma tal definição é" apenas negativa e se baseia numa duvidosa norma de "comportamento certo". Este comportamento é, antes de tudo, o resultado de um desequilíbrio profundo da personalidade e de suas possibilidades de relacionar-se com os outros. No entanto, os resultados do teste de Szondi revelam que estas dificuldades de relacionamento de comunicação são baseadas numa estruturação deficiente da personalidade, que afeta os dois sexos de maneira diferentes. Com efeito, constatamos tendências bastante unívocas em ambos os sexos, com respeito a desequilíbrios (narcísicos) na identificação sexual, sendo que nos rapazes (grupo B), estes concernem mais a integração do corpo próprio, e nas moças (grupo C), mais a aceitação do papel feminino diante da sociedade.

Ambos os grupos reagem com numerosos sintomas psicopatológicos, consequências prováveis tanto do consumo de tóxicos quanto das desestruturações anteriores. Neste sentido, o uso de drogas nada mais e do que um sintoma entre outros, mas que vem agravar consideravelmente o quadro mórbido, a ponto de dominá-lo completamente e de fazer esquecer que ele mesmo, o sintoma, é resultante de dificuldades anteriores. Podemos ver no consumo de tóxicos uma reação contra as desestruturações, reação inábil, desesperante e facilmente auto-destruidora, típica do mundo inflativo e fantasticamente ilimitado da adolescência.

A nível terapêutico, devemos ter em conta estas características. Os toxicômanos devem sentir-se aceitos e necessitam de um ambiente de confiança (o que com certeza, não será o caso num presidiário) para poder tolerar as frustrações da desintoxicação. Assim, no decorrer destas curas, eles precisam poder vivenciar, de outras maneiras, a amplificação do seu mundo fantástico (necessidade vital para eles), em consequência da tendência insatisfeita para expandirem-se. Esta tendência, porém, deve ser canalizada para moldes socialmente aceitos e integradores. A cura espiritual de desintoxicação , efetuada na instituição religiosa de recuperação dos grupos B e C, oferece, sem dúvida, derivativos para esta necessidade, embora com o risco de se chegar a um outro tipo de alienação, mística ou extrasensorial, que não facilitara a integração do corpo e o engajamento social. Mas, diante da gravidade da situação, trata-se aí de um mal menor, e as autoridades judiciais deveriam sustentar tais instituições de desintoxicação.

Finalmente, o grupo A (custodiados judiciais) corresponde só parcialmente a estas características. Os conflitos parecem aqui ser mais diretamente sociais do que familiares ou psicológicos, o que levanta a espinhosa questão de medidas sociais adequadas. Nos outros grupos, a problemática familiar parece estar na origem das dificuldades de estruturação psíquica e de integração psicossocial. Isto, no entanto, não significa culpar os pais pela toxicomania dos filhos, uma vez que se trata de interações complexas, nas quais tanto os pais quanto os filhos podem figurar como vítimas. Seria um amplo campo para a terapia familiar, mas a grande dificuldade é a de sensibilizar tais famílias para esta necessidade e despertar um consenso dos seus membros. Deste modo, as perspectivas preventivas da toxicomania , a nível familiar e social, parecem bem reduzidas, a não ser indiretamente, pelo combate ao tráfico de drogas e por amplas campanhas de informção sobre seus perigos e implicações.

 

07 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* Pesquisa parcialmente financiada mediante auxílio do CNPq.
** Agradecemos ao diretor do núcleo de custódia por ter permitido o acesso aos presos sob sua responsabilidade.
*** Agradecemos aos diretores desta instituição pelo interesse manifestado para com a nossa pesquisa e pela permissão de entrar em contato com os seus protegidos.