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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.4 n.1 Brasília  1984

 

Trabalhos em comunidade: seu significado para a produção de novos conhecimentos científicos

 

 

Alberto Abib Andery

Professor do Departamento de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia da PUC-SP

 

 

Queremos partir da experiência em curso de um Projeto multidisciplinar centrado na Prevenção de Saúde Mental da população trabalhadora de um bairro da periferia da Grande São Paulo. Esse Projeto está sendo levado adiante por uma equipe de Psicólogos e outros Profissionais ligados ao Departamento de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia da PUCSP e do URPLAN (Instituto de Urbanismo e Planejamento) da mesma PUCSP

Essa equipe de trabalho já atua há mais de três anos e meio nessa área da periferia e preocupa-se não só em estar presente no bairro e aí exercer atividades comunitárias mas também na avaliação dos conhecimentos científicos ao seu alcance para levar avante o trabar lho de atuação comunitária.

Na área de Psicologia há diversas indagações que precisam ser respondidas e às quais o atual repertório transmitido pelos nossos cursos universitários e pela bibliografia disponível parece ainda insatisfatório.

 

BREVE HISTÓRICO SOBRE O PROJETO

O Projeto nasceu, nos anos 1976-1977, a partir de dicussões e propostas dentro do Departamento de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia da PUCSP quanto à programação de cursos profissionalizantes para os estudantes de Psicologia dos dois últimos anos em que se aliassem à abordagem clínica conteúdos e prática sociais relevantes.

Surgiu então do debate a proposta de um curso eletivo com conteúdos teóricos e estágio profissionalizante centrado sobre o problema da saúde-doença mental nas camadas populares e uma prática profissional que viesse de fato ao encontro dessa população visando antes uma intervenção educativo-preventiva e menos uma intervenção curativo-reabilitadora.

Temas centrais dessa proposta foram, pois, a redefinição da saúde e doença mental - um conceito muito impregnado de contribuições biomédicas e pouco analisado sob o ângulo psicossocial e psicocultural; a prática da Psicologia Clínica acusada de excessivo elitismo, servindo na sua construção teórica e na prática cotidiana quase que prevalentemente às classes sociais mais abastadas. A presença da Psicologia junto as classes populares é mais para atestar, através de diagnósticos, o grau de deficiência mental ou doença mental dessa população para fins de exclusão do sistema escolar e de trabalho e para fins de internação na rede hospitalar psiquiátrica.

Tomamos como referencial teórico-prático as publicações que desde a década de 1960 surgiam na Europa e nos Estados Unidos sobre Psicologia na Comunidade ou Psicologia Comunitária onde se enfatiza a ação preventivo-educativa e a presença dos profissionais nos meios populares sem esperar primeiro que a população adoeça e vá procurar ajuda nas clínicas psicológicas ou hospitais psiquiátricos.

Simultaneamente ajudou-nos a confecção do Projeto o fato que na própria Universidade Católica de São Paulo tem aumentado nestes anos a preocupação por uma Universidade mais voltada nos seus trabalhos de docência e pesquisa para a realidade social brasileira onde predominam vastos segmentos da população completamente marginalizados das contribuições do progresso e da ciência. Procura-se uma nova aliança entre os intelectuais e essa população no sentido de superação das dominações seculares a que essas camadas populares brasileiras se vêem submetidas.

Escolhemos então um bairro da periferia de São Paulo para ai atuar após uma Pesquisa bem conduzida sobre os recursos da comunidade e as características socioeconômicas da população desse bairro escolhido.

O Instituto de Planejamento Regional e Urbano (URPLAN) da PUC-SP criado na mesma época pelo Prof. Luiz Eduardo W. Wanderley acolheu a idéia do Projeto preventivo-educativo na área de Saúde Mental e deu apoio logístico para que recursos das agências nacionais ou internacionais de ajuda à Pesquisa tornassem possível levar à frente o Projeto.

A área escolhida contava com alguns moradores e lideranças que foram colocados a par dos objetivos do Projeto e acolheram com satisfação a chegada da equipe de trabalho e ajudaram apresentando à equipe pessoas, famílias e as poucas instituições que atuam na área: escola pública de 1.° grau, igrejas, sociedade amigos de bairro e clube de mães.

A partir de 1979, estava consolidada a atual equipe composta por dois docentes da PUCSP: Prof.ª Sílvia T. Maurer Lane depois substituída por Prof.ª Odete Godoi Pinheiro e Prof. Alberto Abib Andery e pelos seguintes Psicólogos: Elvira Ma. Leme, Hélio Rubens G. Figueiredo, Silvana Hemsi e Sonia Lourdes Manholer; pela Socióloga Maria Luiza Luz do prado e pelo Administrador Sérgio Luiz Avancine.

As atividades da equipe de trabalho na área obedecem no momento a dois eixos principais: -Ações de caráter educativo- preventivo e ações de atendimento ambulatorial.

As ações de caráter educativo-preventivo têm como alvo mulheres em clube de mães e na organização de uma creche local; crianças e adolescentes através de atividades lúdicas e de expressão corporal; atividades organizativas e culturais em forma de criação de biblioteca e peças de teatro e curso de capoeira.

Há ainda a programação de um curso anual de Saúde com a finalidade de assessorar com conhecimentos agentes populares de saúde, tornando-os mais conscientes sobre os problemas e soluções na área de saúde mental.

No atendimento ambulatorial, recebem-se crianças, adolescentes e adultos com queixas para um diagnóstico a atendimento em terapia breve ou então para encaminhamento quando isso é necessário e possível.

Após esse breve histórico em que se omitem muitos pormenores e particularidades em respeito ao tempo que nos é concedido nesta Comunicação, passo agora a levantar algumas questões e colocações surgidas dessa prática.

Essas questões dizem respeito à própria definição de doença mental; ao exercício da Profissão de Psicólogo no nosso meio e aos conhecimentos da Psicologia sobre o Homem trabalhador brasileiro.

1.ª Questão: A redefinição do que vem a ser saúde e doença mental.

A maioria dos cursos de Psicologia trabalha quase que exclusivamente com um enfoque organicista quando se refre à doença mental. Ora, trata-se de um enfoque parcial e muitas vezes secundário porque o sofrimento orgânico é resultante de fatores psicossociais ligados a situações ambientais hostis que vão desde a desnutrição da mãe grávida e do bebê na primeira infância até os vários "stresses" ligados às condições desumanas de trabalho, transporte, habitação e convivência vicinal e familiar.

Cuidar apenas dos indivíduos orgânica ou psiquicamente doentes e omitir-se quanto às causas maiores da doença mental que são de origem social é talvez mais cômodo e mais de acordo com o '"estabelecido" mas contraria as abordagens atuais da Psiquiatria Social, da Sociologia da doença mental e da própria visão mais atualizada da Psicologia Clínica.

É a partir de um enfoque psicossocial sobre a doença mental que se está estabelecendo uma nova prática profissional que defende a interdisciplinariedade e atenção prioritária à população-em-risco, chegando até ela com esclarecimentos apropriados, fortalecendo os grupos sociais ai existentes, apoiando-os e redirecionando-os às lutas por melhores condições de vida.

Estamos chegando a uma redefinição da saúde mental como a participação do indivíduo e do seu grupo social na melhoria das condições de vida e não apenas como episódio individual aleatório e puramente hereditário.

Essa redefinição leva a uma prática profissional mais perto da população e mais empenhada em apoiar suas lutas cotidianas por transformações culturais e sóciopolíticas, desde mudanças pequenas nos hábitos, atitudes e expectativas até lutas maiores por transformações econômico-sociais e políticas.

O instrumental básico que resta ainda a desenvolver dentro da nossa equipe de trabalho é o que vem da prática da Educação Popular numa linha de Paulo Freire e de Carlos Brandão e de técnicas de desenvolvimento de grupos naturais numa população que prima pelo isolacionismo e individualismo. Aqui reside nossa maior dificuldade presente enquanto profissionais neste Projeto, porque o domínio desse instrumental leva anos de persistente trabalho em campo.

Mas essa proposta de redefinição da doença mental e da prática profissional na área de saúde metal esbarra frequentemente com a repulsa de estudantes e profissionais da Psicologia que se perguntam angustiados aonde fica a Psicologia nesse enfoque, aonde o exercício da Profissão do Psicólogo? Não estaríamos assim abandonando a área "psi" e adentrando num trabalho de puro exercício da cidadania política e do proselitismo político-partidário?

Mas entendemos que a réplica é verdadeira: Até que ponto a postura profissional que advoga isenção política no trato com a saúde mental da população, até que ponto a concepção da doença mental como algo da área das ciências "psi" não são também posturas políticas desavisadas ou mal-intencionadas que servem para manter intactas as situações ambientais adversas ao desenvolvimento dos indivíduos das classes populares?

Embora defendamos que a prática profissional preventivo-educativa na área da Saúde Mental não deve cair no atalho da pura militância político-partidária, estamos convictos que essa prática profissional poderá ser uma contribuição importante da Psicologia para o desenvolvimento de uma verdadeira Democracia Social em nosso País.

2.° Questão: A ampliação do conhecimento da Psicologia sobre o trabalhador brasileiro.

O aprendizado da Psicologia na Universidade rege-se em demasia por textos didáticos de origem ou de inspiração estrangeira. Aquilo que é observado, pesquisado ou postulado sobre o homem ou a mulher europeus ou norte-americanos de classe média torna-se conclusão sem contestação sobre a Psicologia e serve de parâmetro de comparação para se avaliar psicologicamente os indivíduos e grupos sociais do nosso País sem maiores reflexões ou pesquisas.

Nas Faculdades de Psicologia é comum desconhecerem-se os aspectos culturais e históricos que moldam a Psicologia do nosso Povo e omitem-se na formação do estudante de Psicologia os contextos socio-economicos e culturais que condicionam os comportamentos comuns e influem nas características psicológicas das pessoas e dos grupos sociais populares.

Aplicar na área profissional da saúde-doença mental esses padrões importados sem maior aprofundamento crítico pode resultar num reforço à visão de marginalidade que a maioria do povo trabalhador oferece aos olhos desavisados do profissional Psicólogo e dos demais profissionais de nível universitário que estudam esse tipo de Psicologia. Dai para a rotulação de excepcionalidade mental e de doença mental é um passo.

Nosso Projeto vai na linha dos que não aceitam como evidentes as conclusões da Ciência importada — Ciência porque Importada — e procuram observar mais de perto e com um mínimo de empatia e participação o cotidiano da vida da população trabalhadora no seu bairro, na sua família, nas suas organizações mais espontâneas e representativas para ampliar, confirmar ou modificar o que já se sabe sobre a Psicologia.

Não aceitamos como prontas e definitivas as teorias de Personalidade e de Desenvolvimento e as medidas e testes psicológicos delas resultantes comumente ensinados em nossas Faculdades.

Há muito a pesquisar ainda nesta área a partir das peculiaridades da cultura popular e dos seus valores que passam desapercebidos pela elite pensante que ocupa os espaços universitários do País.

Para avançar um pouco nesse conhecimento da Psicologia do trabalhador brasileiro é preciso primeiro explicitar o viez de classe média que institui o modelo burguês como padrão de normalidade e julga desviante e marginal a classe trabalhadora como um todo, reservando-lhe o dilema de escolher o padrão de desenvolvimento psicossocial burguês, inacessível de fato, para a classe trabalhadora, ou então resignar-se ao estigma de classe inferior não só socialmente como também psicologicamente.

No Projeto, temos procurado essa aproximação ao cotidiano do trabalhador sem preconceito, convivendo um pouco com ele no seu bairro operário, nas suas organizações populares para apreender sua cultura e forma de vida, suas expectativas, lutas e fracassos e delas partilhar um pouco também não como quem já sabe mas como quem quer primeiro aprender. Esperamos assim entender de forma mais justa a verdadeira Psicologia do trabalhador urbano de nossas Periferias, acreditando que tal conhecimento modificará práticas profissionais vigentes na área da seleção de trabalho, de diagnóstico e tratamento clínico e na programação escolar dos estabelecimentos públicos de ensino de l.° e 2.° grau.

Nestes poucos anos de duração deste Projeto nossas observações ainda não estão de forma alguma nem acabadas nem muito menos sistematizadas. Mas nossa percepção preconceituosa anterior já se modificou e já sabemos que há potencialidades e valores que não constam nas padronizações de testes e nas teorias vigentes, mas que dignificam esse lutador inteligente e criativo que é o trabalhador brasileiro envolvido numa trama de sobrevivência extremamente adversa.

Partilhar esse esforço de compreensão psicossocial sobre o trabalhador brasileiro com os estudantes da Universidade e futuros profissionais na área de Humanas parece ser uma das contribuições deste Projeto às modificações na Sociedade brasileira no sentido de sua real democratização e respeito à Cidadania do brasileiro comum.

3.ª Questão: O Exercício da Profissão de Psicólogo

Esta terceira questão surge num momento em que as formas de aplicação da Psicologia nas áreas profissionais tradicionais da Ps. Clínica, Ps. Industrial e Ps. Escolar mostram-se esgotadas pela crise econômica em curso e pelo grande contingente de alunos que se formam, a cada ano, mas ficam desempregados ou vivendo em empregos que nada tem a ver com os cinco anos de formação acadêmico-profissional na Universidade.

A Psicologia enquanto Profissão tem sido acusada de elitista e de instrumento de controle social das classes subalternas utilizado pelas Classes Dominantes para perpetuar o sistema vigente de dominação e exploração.

Parece-nos que o desenvolvimento, ainda que em caráter experimental dos Projetos Comunitários na área da Psicologia, daria nova relevância social à aplicação profissional dessa Ciência, desde que esses Projetos Comunitários objetivem eficazmente uma prática preventiva educacional e levem o intelectual universitário a fortalecer de fato com sua presença e conhecimentos as lutas populares por melhores condições de vida.

Vai chegar no Brasil o momento em que se voltará a falar da necessidade da mudança da Política Nacional de Saúde, que deverá reorientar-se para uma verdadeira prioridade de prevenção primária através de saneamento e educação. É necessário mudar a atual Política Nacional de Saúde, que visa apenas aos interesses de alto lucro das Empresas de Remédios ou dos Hospitais e Clínicas de cura, é preciso instaurar um Plano mais comprometido com o bem-estar social e a saúde da população.

Seria importante quando chegar esse momento já termos desenvolvido na Universidade um modelo preventivo-educativo de atuação do Psicólogo e dos demais profissionais da área de Humanas e de Educação junto às comunidades de base, bairros populares e associações representativas dos interesses econômicos e culturais do Povo trabalhador.

Esse modelo deverá ir ao encontro das reais necessidades da grande maioria da população brasileira, contribuir dentro da especificidade inerente à atuação profissional do Psicólogo para melhores condições de vida a serem conquistadas através do processo de educação conscientizadora e de capacitação dos agentes populares na direção desse movimento de libertação.

Não adianta lutar pela criação de novos empregos na área comunitária para profissionais das Ciências Humanas e da Educação, se esses profissionais não estiverem preparados a contribuir para o avanço da Sociedade brasileira para formas mais justas, humanas e democráticas de vida.

O compromisso do nosso Projeto é de experimentar em caráter pequeno e local um espaço de discussão e treinamento desses futuros profissionais.

Essa é a contribuição maior à Democracia social a se instalar um dia no País.

 

Bibliografia

BENDER Mike - P. - Psicologia da Comunidade - Ed. Zahar, R. Jan., 1978.        [ Links ]

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BASTIDE Roger - Sociologia das Doenças Mentais - Comp. Edit. Nac., 2.ª ed., 1967. Ver Korshin Sh - o. c.        [ Links ]

ANDERY Alberto Abib - Subsídios conceituais para um programa de saúde mental: um enfoque psicossocial in CADERNOS PUC, n.° 4, março de 1980, pág. 138-144, Edit. Cortez, São Paulo.        [ Links ]

 

 

Trabalho apresentado na reunião anual da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizado em Campinas em julho de 1982.