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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.5 n.1 Brasília  1985

 

DEPOIMENTO

 

Delírio delinqüente: a educação pela violência

 

 

Maria da Graça Ferraz e Ferraz

Professora da Faculdade de Psicologia da Unesp
Campus de Assis - SP

 

 

 

Esse campo em que trabalhei foi escolhido em função do tema não propriamente da violência mas das relações de poder: as distâncias sociais entre as pessoas, não só dentro daquele espaço mas no contexto de toda uma influência sofrida por essa instituição específica, a EBEscola da Barra .

Essa escola nasceu de uma forma muito peculiar porque já era, de início, um "ato infrator". Seus fundadores eram ex-operários que conseguiram fazer um curso superior e decidiram abrir a escola como forma de oferecer, aos filhos de operários e à população mais carente da periferia de São Paulo, condições de estudar.

A fundação da EB foi um ato político, um protesto ativo contra um estado de coisas que se vivia na época. Esse grupo de professores invadiu uma fábrica abandonada, colocou algumas cadeiras, uma lousa e uma placa informando que ali funcionaria um curso supletivo de 1º grau. Os alunos foram aparecendo, a escola começou a crescer, recebendo alunos de uma grande parte da periferia de São Paulo . Funcionou quase dois anos na ilegalidade, eles não sabiam o que precisava ser feito para oficializar o diploma dos alunos, se o curso poderia ser reconhecido mais tarde, nada se sabia.

De certa forma a fundação dessa escola foi um ato de violência contra o poder instituído, contra o ensino oficial. Os professores não estavam preocupados com o que se ensinava fora de lá e talvez esse tenha sido o erro do grupo, não participar um pouco da realidade de fora. A ignorância do contexto social político e econômico não ajuda nada.

Era uma atitude violenta, delinqüente e geradora de violência, que eu chamo "delírio delinqüente". Todas as coisas aconteciam na porrada, eles ignoravam que existia toda uma estrutura social que tinha de ser considerada como interferente nesse processo e não negada. Todo o processo de aprendizado era, por parte dos professores, uma tentativa de querer criar ali uma nova microestrutura, um mundo modelo que funcionasse melhor do que o mundo de fora. Eles transcendiam demais o processo de ensinar e aprender.

Essa postura, que tinha muito a ver com o rancor, o ressentimento por parte dos professores e alunos carentes contra o que eles chamavam de burguesia, passou a ser criadora de situações de desatino. Não pagavam dívidas que tinham com empresas, como por exemplo, a fornecedora de papéis para a gráfica da escola: chegavam os cobradores e eles diziam que não tinham dinheiro, que as empresas não faziam mais do que a obrigação em ajudar na educação da população carente, etc. Houve casos de credores enfurecidos, que pagaram marginais para invadir a escola e receber o dinheiro à força. Esse clima de violência foi criando complicações cada vez maiores.

E essa violência era valorizada, no topo da hierarquia estavam os delinquentes. Existiam quadrilhas inteiras interessadas em estudar. Era incrível ver a vontade de saber deles. Eram muito interessados em filosofia e os professores não reprimiam nada que se fizesse, podiam falar o que bem entendessem, sem aquele esquema rígido de disciplina. Era uma escola livre, nesse aspecto era uma coisa muito bonita, criativa, que poderia ter dado muitos frutos.

Acho que existia uma ideologia dentro da escola que era mais ou menos assim: o poder continua, só temos que trocar as pessoas que o exercem. Por isso, os delinquentes no poder e, ao lado deles, a classe operária. A escola funcionou inclusive como refúgio de bandidos, adolescentes que tinham se prostituído eram acolhidos, para que, segundo o "chefe", não continuassem na prostituição.

A minha relação com tudo isso era assim: no começo eu fui extremamente marginalizada, era como se eu fosse a infratora, pela minha condição de "intelectual burguesa", bem alimentada, que estava ali porque não tinha mais nada para fazer. Se eu quisesse participar de fato, tinha de botar a mão na massa, ajudando a construir a escola e não falando sobre ela. O trabalho intelectual era totalmente desvalorizado.

Eles me perguntavam, que pesquisa é essa ? Para quê? Eu dizia que estava tentando levar um trabalho social, uma coisa que a gente chamava de pesquisação, mais militante, prática; mas de qualquer forma eles me cobravam, o que eu podia fazer como psicóloga, para essas pessoas carentes de comida, de saúde? Para dizer a verdade nem eu sabia o que podia ser feito.

Num contexto de aula, numa universidade, é fácil dizer que não se sabe o que é ser psicólogo e que se está tentando descobrir Esse tipo de coisa só dá pra processar com pessoas que tenham o mesmo tipo de dúvida, o mesmo referencialE para aquelas pessoas você dizer que não sabe o que é Psicologia Social é se queimar demais. Eu sabia apenas que aquilo tudo me seduzia, me fascinava. Percebi que estava investindo todo o meu desejo naquilo, eu queria falar disso e conhecer aquelas pessoas. O convívio, o jeito dos alunos, o tipo de paquera, de chegar e passar uma cantada, tudo era extremamente sedutor.

Eu queria saber o que era aquele grupo de professores, ex-operários, trabalhadores braçais que inventaram um projeto intelectual, eu queria saber o que era isso na cabeça deles, como entendiam essa coisa e para que. Mas no fundo, eles também não sabiam o que estavam querendo. No correr do processo, eles percebiam que não era bem do jeito que eles queriam, porque existia uma força social muito forte, contrária a essa corrente. Porque se você dá paulada, você recebe paulada. Era o que eles estavam fazendo, estavam caminhando desatinadamente contra um pelotão de fuzilamento. Como pesquisadora, eu queria entender as relações de poder ali dentro, mas como psicóloga eu também não sabia o que dava para ser feito. Eu descobri que a única forma de levar adiante a pesquisa era me enfronhando, na prática mesmo, e trabalhando como qualquer outra pessoa de lá. Eles me cobravam um trabalho braçal e eu acabei fazendo de tudo, desde varrer chão até atender na cantina, dar aulas, funcionar como psicóloga, orientadora educacional etc., eu arregacei as mangas e trabalhei.

Eu sentia neles uma vontade muito grande de liberdade, de existir além das normas sociais, de uma moral instituída, de formas de existência social que já estavam reificadas na sociedade. Ali desembocavam todos os tipos de pessoas que de alguma forma não se adequavam ao convívio social. Eram advogados que não conseguiam sucesso na profissão e acabavam dando aulas e sendo advogados da Escola, diretores que tinham sido demitidos dos cargos e assumiam a direção lá, professores aposentados que não faziam mais nada da vida. Inclusive eu, que no começo não sabia o que queria direito. E fui percebendo que o que me aproximava da Escola era essa mesma vontade de liberdade, de existir fora das restrições. Eu posso dizer que me sentia muito violentada, e vi que aquelas pessoas também se sentiam assim. A minha simples presença era uma lembrança da violência social que elas sofriam, de dominador intelecual principalmente, aquele que tem know-how, que detém um saber competente, um saber que é poder. Marilena Chauí e Foucault parece que têm algo sobre isso. Os professores se sentiam muito mal perto de mim, como se eu tivesse ali para avaliar o processo, para dar um feed-back, para ver se o que estavam fazendo era certo ou errado. Eu, na mesma medida, me sentia mal de perceber o quanto era rejeitada, o quanto estava identificada com meu papel no contexto social; era vista como ociosa, alguém que não realiza o trabalho braçal e portanto não merece repartir os ganhos da produção. Eu não tinha direito a nada, sequer dar uma opinião, era sempre educadamente cortada. Quando ia falar alguma coisa, eles cortavam dizendo que eu não sabia nada daquilo, só sabia quem tinha passado fome, trabalhado duro. Uma vez, a primeira em que fui procurar água, não encontrei filtro, nem geladeira e fui perguntar para alguém como eles tomavam água; me respondeu que tomavam da torneira, eu retruquei que era perigoso, então ele falou que eles não ficavam doentes nunca, eles apenas morriam de fome mesmo...

Na minha tese eu resolvi não revelar a identidade de ninguém por causa dos riscos que a escola corria. Se revelasse algumas coisas que eu via acontecerem, tudo poderia ficar muito perigoso. Os professores mandavam os alunos invadirem colégios caros de SP para roubarem microscópios, materiais de laboratório, coisas caras que a Escola não ia poder comprar nunca. Foi muito gostoso, mas foi também muito sofrido fazer o que eu fiz, principalmente porque eu estava muito desarmada nisso de saber o que é ser psicóloga, psicóloga social, dentro da realidade brasileira.

O mais importante nesse trabalho foi perceber o quanto é impossível se ter fórmulas de como fazer, de como ser psicóloga social. A minha dúvida é como dar um parecer sobre a prática, porque no fim acaba-se fazendo juízo de valor, apesar de todo o cuidado.

O importante foi perceber que dentro da EB existia um jeito, o meu jeito de ser psicóloga, que talvez até fosse parecido com o de outros psicólogos que convivessem com aquilo. Em cada lugar é diferente, um jeito singular que é criado dentro de cada contexto, que nasce da sua articulação com a prática. Não adianta ter uma porção de teorias, de coisas prontas para encaixar porque não dá certo. A prática nasce engajada na situação, extremamente articulada ao processo. Tive a oportunidade de entender que aquilo era mais do que a oportunidade de testar teorias, coisas que disseram que estavam certas.

Muitas vezes senti vontade de interromper o trabalho, de parar e me questionar, para que estou fazendo tudo isto, que utilidade tem?Na verdade, até hoje não sei da utilidade que isso possa ter para alguém. Eu fui lá, vi e vivi tudo aquilo, senti a violência na própria pele; morria de medo de ir pra casa às 11 da noite, de esperar o ônibus no ponto da Barra Fundae a própria clientela da escola tinha medo, sempre muito assustadas —, mas no fim acabei fazendo amizade com alguns bandidos maiores, que se ofereciam para me acompanhar até em casa para me proteger. Eu e meu marido dávamos aulas lá nessa época. Na verdade, para mim, o importante mesmo foi perceber que não sabia nada. Que tudo aquilo que tinha pronto na cabeça não servia pra me dar o rótulo de dominadora, que era o fantasma contra o qual o grupo todo da EB lutava.