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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.5 n.1 Brasília  1985

 

EM DEBATE

 

Ideologia: o ponto fundamental da discussão

 

 

 

Wanderlei Codo: A proposta da Tecnologia Social se apresenta como uma nova abordagem em Psicologia Social, capaz de resolver problemas que vão desde a ' 'persuasão da esposa quanto à melhor localização de um móvel na sala até a resolução de crises internacionais". Mas o que há de novo na Tecnologia Social? Segundo o próprio Varela, a novidade é exatamente esta: o uso da Psicologia para resolver problemas sociais, formando um aparato tecnológico. Evidentemente, qualquer ciência — e principalmente a nossa, voltada à compreensão do comportamento humano — tem como razão a intervenção social.

Tomemos Freud como parâmetro: sua preocupação era resolver conflitos de seus pacientes e por isso, exatamente, fundamentou e desenvolveu toda uma teoria que ainda hoje influencia a nossa compreensão do Homem. A diferença nas duas abordagens é a consciência da complexidade dos problemas humanos, que Freud sempre explicitou e Varela parece ignorar. O trabalho de Varela constitui uma autêntica "receita" para resolver problemas sociais. Nesse sentido se assemelharia muito aos livros que entulham as livrarias do tipo "como fazer amigos e influenciar pessoas", não fosse um certo colorido cientificista emprestado pela citação de alguns nomes respeitados na área.

Vejamos um exemplo de intervenção do tecnólogo: um dos problemas que resolveu foi o seguinte: uma empresa decidiu trocar o gerente e o escolhido para o posto foi uma pessoa de outra filial, provocando uma reação de mal-estar nos funcionários preteridos para o cargo.

O cientista foi chamado, então, a intervir exatamente para que a decisão se concretizasse "sem traumas para a empresa". Qualquer pessoa de bom senso saberia que as causas desse problema estão sediadas na estrutura alienada de trabalho na sociedade contemporânea — que permite aos diretores alterar a seu bel prazer os quadros de profissionais da empresa sem que os próprios tenham direito a opinar sobre isso — e nas características do mercado capitalista, em que a competição frenética angustia qualquer trabalhador numa perspectiva de mudança. O que fez o senhor Varela? Tratou de persuadir os trabalhadores, candidatos naturais para o cargo, de que não eram as pessoas mais aptas para aquele posto.

Estamos diante de um duplo engodo: nem a realidade social cabe no receituário do tecnólogo e muito menos as soluções encontradas são capazes de resolver qualquer coisa, exceto o problema imediato do dirigente empresarial. Estamos diante de uma Tecnologia Social sem dúvida voltada a encobrir os problemas sociais e a serviço dos meios de produção.

Quando se pergunta qual o papel da Psicologia Social nesse contexto, eu diria que o que pode nos interessar é o seguinte: porque o mero exercício do charlatanismo merece atenção de alguns pesquisadores considerados sérios nessa área de conhecimento?

Estamos vivendo numa sociedade psicologizada. Nunca os psicólogos tiveram tanto espaço nos meios de comunicação de massa como hoje. Alguns de nossos livros ganham status de best-seller, como ocorreu com Skinner, revistas especializadas são encontradas em qualquer banca de jornal, nosso vocabulário técnico está popularizado, etc.. E, infelizmente, não é por uma demonstração cabal de competência dos psicologos que essa situação se apresenta. E antes, por atravessarmos a mais grave crise que o capitalismo já enfrentou, por estarmos diante de um quandro social carente de mudanças e com uma população desorganizada politicamente para enfrentar essa necessidade. Ou seja, uma situação propícia para o aparecimento do charlatanismo. De um lado, uma espectativa cada vez maior de soluções para a crise social e, de outro, a falta de instrumentos concretos para realizá-las.

Eis algo em que concordo literalmente com Jacobo Varela: o mundo está carente de uma Tecnologia Social. Mas que seja capaz de resolver não apenas querelas administrativas das empresas mas, principalmente, capaz de instrumentalizar o cidadão para a busca de sua própria cidadania.