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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.5 n.1 Brasília  1985

 

LEITURA CRÍTICA

 

Do livro de Regina Vieira: Psicologia da Criança e Problemas de Desenvolvimento

 

 

Célia Maria Lana da Costa Zannon

Universidade de Brasília

 

 

Escrito para mães, em uma linguagem simples e de fácil compreensão para o leitor leigo, este livro é proposto pela autora como um auxílio para a reflexão sobre dúvidas e soluções encontradas pelos pais no relacionamento com seus filhos nos dois primeiros anos de vida.

A autora salienta, dentre seus objetivos, a divulgação da importância prática da Psicologia do Desenvolvimento, caracterizando seu livro como uma fonte de informação para a compreensão do comportamento da criança.

Baseia-se em proposições de autores como Fenichel, Gesell, Piaget, Rogers, Spitz e Winnicott, em manuais tradicionais de Desenvolvimento da Criança (Hurlock, Jersild, Mira Y Lopes, Mussen Conger e Kagan), em opiniões de pediatras como Delamare, Salk e Spock e em suas próprias experiências como Psicóloga na área clínica infantil.

A organização dos capítulos confere ao texto uma estrutura que, embora não explicitada pela autora, adquire relevância, visto que encerra uma orientação e uma hierarquização da importância dos diferentes agentes sociais responsáveis pelos cuidados da criança nos primeiros anos de vida.

Poder-se-ia dizer, que o livro tem três partes. Os dois capítulos iniciais, sobre a relação mãe-criança e o papel do pai, compõem uma parte dedicada aos primeiros e principais agentes adultos no desenvolvimento da criança pequena. Os dois capítulos seguintes comporiam uma segunda parte, de descrição das mudanças comportamentais no primeiro e no segundo anos e de apresentação de problemas e dúvidas mais comuns nos diferentes estágios do desenvolvimento. No que seria a parte final, a autora retoma a questão dos agentes sociais e apresenta, em dois capítulos, aspectos referentes aos cuidados por parentes (tios e avós) e por babás, no contexto da necessidade de separação mãe-criança.

O texto tem aspectos positivos e relevantes em uma proposta de orientação: o destaque dos problemas comumente relatados pelos pais no contexto do atendimento clínico; a atenção à variedade de situações e variáveis que podem estar envolvidas em vários dos problemas relatados; a apresentação de alternativas diferentes de solução para alguns problemas; a busca de suporte no conhecimento acumulado na área de Psicologia de Desenvolvimento e a desmistificação de certos tabus na educação de crianças, por exemplo, quanto aos cuidados pelos avós, ao apego da criança com outros adultos, mesmo não-familiares e ao trabalho da mãe fora do lar e sua relação com a qualidade da interação criança-mãe e do desenvolvimento afetivo da criança.

Com relação ao contexto social e afetivo, a autora privilegia os agentes adultos, ressalta a importância do contato da criança com a mãe, apresenta a questão das mudanças sociológicas relacionadas à participação de outros agentes e enfatiza a função da mãe na efetivação das diferentes modalidades desta participação.

Apresentado com destaque em um capítulo especial, o papel do pai e sua participação na educação dos filhos têm sua importância reduzida de um modo subliminar quando, na descrição das mudanças comportamentais ("segunda parte"), apenas a mãe aparece como contexto social em que se processa o desenvolvimento. Nota-se, na apresentação de questões específicas ao relacionamento da criança com o pai e com outros adultos, o retorno constante ao tema da relação mãe-criança.

Em suma, desde a introdução e em todos os capítulos, percebe-se a ênfase quase dramática na relevância da mãe como personagem principal, fonte e centro de alternativas e decisões. Embora óbvia pela destinação do texto, tal ênfase resulta, de fato, do destaque conferido pela Psicologia à interação mãe-criança, no processo de desenvolvimento nos primeiros anos de vida. Endossando este destaque, a autora superdimensiona, exagera e, de um modo consistente, induz o leitor a personificar a questão dos cuidados da criança e da qualidade de seu desenvolvimento social e afetivo. As demais personagens e a própria criança estariam submetidas, inexoravelmente, a um sistema matriarcal de educação.

Se por um lado várias das considerações da autora indicam caminhos para diversificação dos contatos sociais positivos e apresentam noções adequadas para a análise do contexto social amplo em que vive a criança pequena, por outro sugerem a centralização deste contexto na figura da mãe. O texto alerta contra a situação do pai ausente pela recusa de participação ou contra um sistema matriarcal em que a mãe impede e restringe a participação de outros adultos nos cuidados da criança mas, ao mesmo tempo, adapta-se ao sistema e sugere a naturalidade e a importância da limitação desta participação. Exageros podem ser notados em afirmações genéricas sobre tarefas em que a mãe não deve ser substituída ("deve ser sempre a mãe a oferecer a mamadeira, no caso de alimentação artificial"); sobre o significado de aceitação/rejeição da criança e da própria maternidade, tendo como indicadores a contratação e a natureza de tarefas designadas para enfermeiras e babás; ou sobre o poder exclusivo da mãe quanto a qualquer participação de outros agentes ("somente (a mãe) pode levar o homem a se interessar também pela educação dos filhos, permitindo-lhe e mesmo oferecendo-lhe as ocasiões para uma ajuda específica").

Cabe aqui um comentário sobre os objetivos do texto e o discurso da autora. Embora tenha excluído de seus objetivos quaisquer proposições de normas educacionais ou de oferta aos pais de um manual para a direção da vida familiar, a autora carrega o texto de afirmações enfáticas sobre os desejáveis e adequados. A utilização de termos como "é imprescindível que", "deve sempre" e o relato do "conhecimento" sobre conseqüências positivas e adversas de certas condutas dos adultos, resultam em deduções e generalizações, nem sempre apropriadas, a cerca das práticas de cuidados e das características do comportamento da criança.

Com relação a este aspecto e para corresponder a sua intenção e preocupação, a autora deveria rever a linguagem utilizada no texto. Seria bastante promissor que autores de textos para pais assumissem o fato de que palavras adquirem forte poder de controle sobre comportamentos, na medida em que podem funcionar em um contexo de aprendizagem por modelação. Afirmações de um profissional especialista são freqüentemente entendidas como "a voz da autoridade". Pais ansiosos por orientação podem estar buscando, em textos, uma sugestão para suas decisões e, a despeito da intenção dos autores, poderão entender suas considerações como conselhos a serem seguidos. Que sejam, portanto", considerações bem fundamentadas e explicitadas como genéricas ou particularizadas e como cientificamente comprovadas ou especulativas.

Seria interessante exemplificar com um tema importante e controverso na contexto de orientação de pais. Postulando sem explicitação que "a própria natureza determinou que muitos dos cuidados com o recém-nascido cabem quase que essencialmente à mãe" (p.30), e que, no contexto de aprendizagem pela criança dos "conceitos e atributos considerados próprios" de cada sexo, "prejuízos psicológicos" podem advir da "confusão de papéis", a autora recomenda a diferenciação de atuação do pai e da mãe através da "divisão clara de papéis" e de tarefas nos cuidados da criança. Muitos dos comentários, cujo suporte científico não é mencionado no texto, podem ser considerados como especulações resultantes de yieses de interpretação. As considerações da autora sugerem preconceitos sobre o tema masculino-feminino e reforçam posições enviesadas acerca da participação do pai e da mãe nos cuidados da criança ou, de modo mais genérico, do homem e da mulher nas tarefas domésticas. Seriam, no mínimo, questionáveis à luz do conhecimento sobre variáveis envolvidas na tipificação sexual e no confronto com a evolução e revolução culturais do significado dos papéis tipificados.

Podem ser destacadas, assim, certas características do texto que merecem cuidados e questionamentos, tais como as generalizações indevidas, dadas por afirmações de conteúdo hipotético, sem comprovação científica, ou por informações incompletas; a imputação de problemas a certas características de comportamento da criança, não necessariamente problemáticas, e relação destes "problemas" com padrões de conduta dos pais ou outros adultos; e opiniões especulativas, dadas em forma de afirmações do profissional especialista, combinadas com informações de caráter científico, dando a falsa impressão que as orientações da autora, às vezes decorrentes de visão pessoal, teriam o respaldo e o suporte da ciência e profissão.

 

Conclusão:

Os aspectos críticos mencionados comprometem o lado positivo de vários trechos do livro e, principalmente, a intenção e a iniciativa da autora.

Considero um bom texto para debate e análise crítica em situação acadêmica, particularmente em supervisão do atendimento profissional. Entretanto, não recomendaria sua leitura integral ou sem acompanhamento, para pais leigos.