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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.5 n.2 Brasília  1985

 

MEMÓRIA VIVA

 

Regina Schnaiderman

 

 

 

Esta é uma homenagem de Psicologia, Ciência e Profissão à Regina Schnaiderman — enquanto profissional, ser humano e cidadã — que faleceu há pouco mais de um ano, em 21 de janeiro de 1985. Ela continua sendo uma lição de vida que não devemos esquecer.

Antes da Psicologia era a Química. Que Regina Schnaiderman lecionava em conceituados colégios paulistanos na década de 40, e que abandonou, deixando de lado os rigores e exatidões matemáticas na busca da compreensão do humano e do subjetivo.

Mais um passo em sua trajetória: passar da Psicologia para a Psicanálise. Após percorrer todos os estudos e linhas dessa área, optou por um estilo próprio, em que a ousadia e a irreverência davam o tom. "Tem até um certo folclore quanto a essa abertura, essa irreverência dela. Uma certa iconoclastia, uma maneira muito pouco estereotipada de se comportar. A Regina quebrava com certas coisas...", diz a psicóloga Vera Colucci.

Regina sempre foi contra diretrizes rígidas e ortodoxas no exercício da psicanálise, embora tivesse clareza em relação ao que constituia o psicanalítico. Foi com esse espírito que criou o curso de Psicanálise do Sedes Sapientiae, em São Paulo. Na verdade, o curso do Sedes só veio formalizar uma prática já antiga de reunir dezenas de estudantes e psicólogos em sua casa para grupos de estudos e seminários.

É sua filha Miriam Schnaiderman, também psicanalista e professora no Sedes Sapientiae, quem diz: "Ela dizia que essas cisões, separações, eram sinal de saúde dentro da instituição, por mais dolorosas que fossem. Para manter uma instituição estabilizada, você pode matar o conflito, a constante indagação, aquilo que constitui o analista mesmo. Ela falava muito da Psicanálise como processo de desalienação".

 

 

Uma de suas grandes preocupações: o conhecimento. Segundo Miriam, ainda, "ela dizia que a gente não pode ser psicanalista sem ter uma formação muito ampla". Buscava sempre se aprimorar, ao mesmo tempo em que proporcionava isso a outros, como lembra a psicanalista e professora do Sedes Sapientiae, Cecília Hirchzon: "Eu senti falta da Regina de várias maneiras mas, entre outras, uma coisa em que pra mim ela é insubstituível é o fato de ter sido alguém a quem se podia recorrer pra indicar uma bibliografia, dar uma informação. Estava sempre super atua-lizada. Não sei por que meios ela sabia tanto, mas estava sempre a par das últimas ondas, tinha uma sensibilidade incrível pra captar coisas novas".

Seja na Psicanálise, na militância política, no seu modo de se comportar, Regina Schnaiderman sempre se caracterizou pela busca de alternativas. Às ortodoxias, ao poder instituído, aos estereótipos. Mas acima de tudo por ter sido um ser humano da maior generosidade.

 

Um Estilo Muito Pessoal

O texto de Ana Maria Sigal, transcrito abaixo, foi lido numa cerimônia em homenagem a Regina Schnaiderman realizada no Sedes Sapientiae, no início de 1985.

"Hoje estamos vivendo, estamos sentindo, a terrível dor que significa nos defrontarmos com a perda. Nos encontramos na dolorosa tarefa de aceitar a falta real, física, cotidiana, de alguém muito querido, com quem compartilhamos diversas facetas de nossas vidas.

Grande amiga, colega de consultório, coordenadora e professora do Curso de Psicanálise do Sedes e constante lutadora, na tentativa de levar adiante um projeto ideológico, sua luta se dava em todas as frentes.

Ela mesma se propunha sempre ser uma presença em constante ruptura. Tinha que questionar, que desorganizar, que quebrar, para tomar parte ao mesmo tempo em uma nova luta, na criação de novas formas e novas estruturas. Questionava para avançar. Criticava para construir.

Várias coisas me vêem à cabeça quando me proponho lembrá-la. Me referirei ao aspecto acadêmico, a sua vitalidade e força? Algumas coisas tristes, outras alegres...

Defronto me, ao mesmo tempo, com a necessidade de assumir o papel que me foi delegado por meus colegas, e é como psicanalista e professora do Sedes que eu desejaria retomar sua história.

Parece me impossível. Regina era cada momento, e em todo momento, uma multiplicidade de facetas. Todas e cada uma delas a representam.

Sustentava permanentemente um discurso de ruptura e desalienação -fosse em festas de amigos, palestras, auditórios ou no próprio curso. Provocava a todo instante o questionamento, a irritação, nos defrontava com nosso saber e nossa ignorância. Mexia com nossos defeitos e nossas virtudes. Em suma, nos vigiava, provocava nosso inconsciente, deflagava o conflito.

Não provocava isso só nos que tinham o privilégio de compartilhar momentos com ela. Penso que ela própria se provocava. Constantemente se expunha, se mostrava transparente, com seus defeitos e virtudes, seus conflitos.

Tinha assim uma vida rica, na permanente tentativa de descobrir-se, de não estagnar. Uma conduta que desafiava o instituído, as regras sociais, as convenções. Circulava sempre pelas fronteiras da marginalidade. Se desterrava permanentemente. Uma dessas grandes rupturas foi sua passagem da Química para a Psicanálise.

Em constante batalha por uma formação, nunca teve respaldo institucional ou pessoal, nas tentativas que fez de se inserir na única instituição formadora que naquele momento poderia tê-la acolhido, a Sociedade Brasileira de Psicanálise. Não a aceitou: tê-lo feito significaria mexer com sua estrutura, tolerar o questionamento, correr o risco da crítica interna. Regina significava uma ameaça.

Foi assim que, lutando permanentemente pela criação de um espaço onde tivesse possibilidades de troca, aprendizagem e transmissão de seu saber e sua concepção de Psicanálise, se incorporou ao Curso de Psicanálise do Sedes desde sua fundação.

Revisando um texto que escreveu pouco tempo antes de sua morte, resgatei um parágrafo que sintetiza em parte seu pensamento: "Ensinar Psicanálise é um ato psicanalítico, é um projeto de desalienação. Desalienação, dessa vez, não do sujeito analisando mas do discurso que se tem sobre o saber psicanalítico. O que se ensina é de fato um modelo metodológico que subordina todo o saber a uma interrogação, a uma colocação de questão."

Poderíamos dizer: um constante questionamento sobre a nossa teoria, a nossa prática e a nossa instituição. É por isso que a história nos uniu nesse projeto, como psicanalistas e como sujeitos políticos, brasileiros e argentinos.

Regina, com uma clara atitude de solidariedade e coragem, num momento em que a situação política brasileira ainda colocava riscos, junto a outros colegas e amigos brasileiros, nos acolheu do modo mais caloroso possível, demonstrando mais uma vez a coerência de suas ideias. Quando, por razões bem conhecidas por vocês, um grupo de analistas argentinos precisou se afastar de seu país e alguns deles migraram para o Brasil, foi Regina e essa instituição que nos permitiram continuar nosso trabalho.

Em lugares diferentes estávamos desenvolvendo projetos e processos semelhantes. Nossa história se cruzou pela coincidência de uma circunstância histórica e, fundamentalmente, pelo fato de compartilharmos uma postura ideológica, uma prática política e uma posição frente ao saber.

Nosso trabalho foi impulsionado também pelos nossos alunos que participaram lado a lado em toda a nossa luta, no difícil caminho de construir uma alternativa. Houve rupturas, crises; alguns colegas saíram, outros se aproximaram, a equipe se ampliou e se consolidou, buscando desenvolver um projeto comum — ter um lugar de trabalho onde não se desse uma simples veiculação e repetição de conhecimentos, mas um lugar de reflexão e discussão do saber instituído e da realidade social onde esse saber opera e se desenvolve.

Regina levava a frente esse projeto com estilo muito pessoal, o estilo com que mergulhava na vida. Acho que estas palavras de Chico Buarque de Holanda, na peça Gota d'Agua, exemplificam sua vivacidade:

"Você tem uma ânsia, um apetite que me esgota. Ninguém pode viver tendo que se empenhar até o limite de suas forças, sempre, pra fazer qualquer coisa. É no amor, é no trabalho, é na conversa, você me exigia inteiro, intenso, pra tudo(...) você é fogo

Está sempre atiçando essa fogueira, está sempre debruçada pro fundo do poço, na quina da ribanceira sempre na véspera do fim do mundo(...) pra você tudo é hoje, agora, já, tudo é tudo, não há esquecimento não há descanso, nem morte não há."

Regina, sinto saudades de você!"