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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.6 n.1 Brasília  1986

 

EM DEBATE

 

A sociedade dos descartáveis

 

 

Sílvia Maria de Barros Olyntho de Arruda

Psicóloga na Maternidade Escola de V. N. Cachoeirinha, em São Paulo

 

 

Devido ao grande avanço tecnológico da sociedade moderna, tivemos a oportunidade de constatar uma série de contradições intrínsecas ao próprio sistema sem lhes creditar, no entanto, o justo valor.

Nesta suscinta elaboração de idéias, acreditamos não ser necessário apresentarmos o lado positivo de nosso objeto de análise, mas dedicarmos um pouco da nossa atenção aos efeitos danosos que já assumiram um vulto suficientemente perverso para a própria sobrevivência digna do ser humano.

Muitos daqueles que lerem nosso enfoque dirão que fazemos a apologia do "velho" — um grupo tão minoritário quanto o negro, homossexual — e questionarão a validade do mesmo. Não negamos esta pertinente colocação, só gostaríamos de ressaltar que o "velho" é um dos muitos que sofrem discriminação, mas ao mesmo tempo único por excelência: somente este engloba todos os outros num determinado momento de nossas vidas.

 

Qual o objetivo último da vida?

Engajados na luta do dia-a-dia, na tentativa de sobrevivermos num ritmo que se nos impõe cada vez mais alucinante, fomos pouco a pouco nos esquecendo de nossa "vida". Aparentemente contraditória, esta afirmação se faz clara quando tentamos defini-la: "Num infinitezimal espaço de tempo que nosso corpo tenta preencher e atingir a felicidade, batalhamos para conseguir aquilo que subliminarmente nos é ensinado e, tão bem feito e gradativo foi este processo que o consideramos natural, ou pior, nem ao menos nos detemos mais para perguntar: mas, qual é o objetivo último?"

Nossos valores foram paulatinamente sendo modificados para se coadunarem com esta nova ideologia. A "falta de tempo" para obter e conseguir gozar tudo que nos é ofertado, nos deixou angustiados e sem espaço para que nos detivéssemos e analisássemos com um pouco mais de zelo o que tal mudança nos traria no futuro que se faz presente.

 

A metáfora da nossa época

Sem qualquer intenção de nos apresentarmos irônicos, acreditamos que nenhuma outra metáfora simboliza melhor a "doença da nossa época: o descartável". A sociedade que se caracteriza pelo uso prático, rápido e indiscriminado de produtos a serem consumidos e facilmente descartáveis, sendo de pronto substituídos por outros "sempre de melhor qualidade". Vale a pena nos lembrarmos de que estes mesmos produtos estão nos trazendo, atualmente, uma série de malefícios, pois na realidade eles acabam por exterminar o nosso próprio mundo juntamente com o seu lixo.

Ingênuo seria acreditarmos em casualidade, portanto observamos que em total conformidade a este modus vivendi fácil e impensado, também agimos assim com nossa própria gente: os ditos "velhos". A única e suprema diferença é que são seres humanos e não podemos apenas ensacá-los como fazemos com o lixo do mundo.

Não é porque não vemos que os fatos não ocorrem: não enxergamos o detrito, mas ele está nos destruindo; não enxergamos o que se passa atrás dos muros dos hospitais psiquiátricos, mas sabemos que os insanos existem e os recolhemos para não nos importunarem na nossa alienada viagem.

Muitas são as coisas, os fatos que procuramos esquecer; como também os velhos. Colocá-los no seu devido lugar, ao invés de contribuirmos para uma auto-imagem cada vez mais negativa, seria algo extremamente perigoso para a manutenção de nossa automatizada existência e do nosso mundo de fantasia.

Se por um minuto apenas nos detivermos superficialmente para analisarmos este processo, de imediato várias explicações nos surgem para apaziguar os ânimos. A primeira que se nos aponta, seria a necessidade premente de absorvermos produtivamente a mão-de-obra barata deste contingente jovem que, em progressão geométrica, se lança no mercado de trabalho totalmente ineficiente e incapaz de utilizá-lo, se não houver na outra ponta da linha um esvaziamento.

Sob o nosso ponto de vista, isto é uma política mal orientada que, ao invés de valorizar o conhecimento obtido no decorrer da vida de uma pessoa, o menospreza, o descarta como a um bagaço, alegando que, se assim o faz, é porque não podemos negar a evidência biológica do declínio de uma curva normal.

 

O medo do tempo e da morte

Paradoxalmente, o incremento de pesquisas e o acúmulo de conhecimento científico possibilitam atualmente uma sobrevida mais longa. É fácil, então, percebermos imediatamente a contradição: ao mesmo tempo que acenamos ao homem com a possibilidade de um viver mais longo, lhe dizemos por metalinguagem que este seu tempo, no entanto, lhe será concedido por mera complacência e que em breve ele será considerado um peso morto e oneroso, carente de proteção, dada a sua situação física precária.

Passamos a encará-lo como a uma criança, só que com um fator agravante e, no caso, decisivo: na criança a sociedade investe e programa seu retorno de capital, ao passo que para o velho qualquer benefício que este usufrua é, a priori, considerado como caridade, investimento improdutivo.

Cremos ser este o ponto primordial. Nós conseguimos que o velho internalizasse esta auto-imagem negativa, desvalorizada, de uma pessoa gasta, vencida e cansada e que nada mais tem a fazer do que esperar o triste passar do tempo, sem qualquer objetivo e perspectiva, seja ela de que ordem for. Numa época onde o valor da pessoa é medido pela sua capacidade de trabalho que, em última instância, significa o obter coisas, não pode mesmo haver qualquer esperança, só havendo lugar para a tristeza e a famosa depressão. Depressão esta que justifica nada mais que o nosso próprio egoísmo, forjado e insuflado pela competição.

Muitos podem nos estar considerando por demais categóricos, e que existem vários idosos com força total. Cabe apenas lembrarmos que "a exceção confirma a regra".

Para finalizar, cremos ser pertinente perguntar se, quando nos livramos do "bagaço" dentro do conceito de produtividade e utilidade, não estaríamos apenas tentando apagar de nossas mentes aquilo que mais nos assusta: o tempo e a morte?

Acreditamos que respeitando o "velho", no sentido mais humano desta palavra, não o devemos fazer apenas por ser um indivíduo, mas principalmente por ser experiente e credenciado credor desta mesma sociedade que agora o expurga, por já não ter que carregar consigo o enorme peso de ser um "cidadão bem-sucedido". Devemos respeitá-lo por toda a sabedoria da própria essência de uma vida que o "velho" traz consigo, e não mais oferecendo-lhe como única recompensa a banalidade do ócio.

Poucos são aqueles que se posicionam cônscios sobre este tema. É certo que a verdade é única para cada um de nós e há de ser respeitada. Neste ponto, filósofos e poetas discursam há séculos: a busca pela verdade absoluta, sem no entanto encontrar a resposta.

Há, entretanto, algumas colocações gerais que exporemos brevemente a seguir, que nos mostram a "interessante alienação" em que vivemos. Ela nos afasta de duas constantes inequívocas: o fluir irreversível do tempo, que traz ao homem o terrível e inegável desgaste biológico, e a morte, pelo menos da forma de vida que conhecemos. São dois pontos extremamente angustiantes.

No entanto, para nos afastarmos deste ininterrupto sofrimento, contamos com uma série de "alucinógenos", sabiamente oferecidos e subrepticiamente desenvolvidos de forma a revertê-los em produção e consumo, que nada mais fazem, em última instância, do que manter a engrenagem funcionando a todo vapor.

No afã diário de nosso trabalho, pequenas doses de esperança de realização nos são apresentadas através da mídia. Metas a que fomos condicionados a atingir outorgam àqueles que as alcançam: o poder, o sucesso, enfim o "tudo".