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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.6 n.1 Brasília  1986

 

LEITURA

 

A Psicanálise como saber e prática

 

 

Marlene Guirado

Professora do Instituto de Psicologia da USP, conselheira-presidenta do CRP/06 e autora dos livros A Criança e a Febem e Instituição e Relações Afetivas

 

 

Estudos Sobre Psicanálise: Epistemologia e Política, de Carlos Roberto Aricó, Edições NEPP, 136p.

Endereço da editora: rua Wanderley, 246, CEP 05011, São Paulo.

Costuma-se ouvir (e) dizer que os lacanianos falam e escrevem para eles próprios, tal a concisão de seu discurso...

Em alguma medida, é o caso deste livro, Estudos Sobre Psicanálise: Epistemologia e Política. Não há como lê-lo, especialmente em sua primeira parte ("Alguns conceitos fundamentais da Psicanálise e a etiologia das neuroses"), se não se fizer acompanhar de informações pela Psicanálise de Lacan e da Escola Francesa.

Em outras — e muitas outras — medidas, o autor consegue romper o cerco e falar para os outros. É assim que se apresenta um belo capítulo sobre Psicanálise e Poder, bem como considerações incisivas sobre o movimento do sujeito inconsciente no ato de conhecer, ou sobre a apropriação do saber psicanalítico pelas instituições que acabam por legitimá-lo.

Carlos Roberto Aricó toma, em princípio e como pano de fundo, ao que parece, a psicanálise lacaniana. Esta filiação à Lacan fica clara, quando constrói seu discurso sobre o inconsciente e que permanece apenas denunciada, ou sobre a epistemologia da psicanálise, ou sobre o determinismo econômico em sua relação com o determinismo inconsciente. Nesses momentos, é Freud o autor explicitamente citado, em longos trechos, e a cujo pensamento se retorna como apoio para dizer do nascedouro e da evolução da teoria e das práticas em Psicanálise.

A "Introdução" do livro traz a preocupação central do autor: "Estes estudos foram elaborados no campo de resistência à ortodoxia e aos dogmas relacionados com a Psicanálise 'oficial' bem como no campo de perplexidade frente a tantos modismos atuais que também auto-intitulam de psicanálise freudiana" (p.12).

Outras duas citações também retiradas da "Introdução" do livro: "(...) pretende-se inicialmente formular em termos científicos a hipótese do inconsciente através da epistemologia dialética e estruturalista" (p.12). (...) "Trata-se de uma tentativa de articular o determinismo econômico preconizado pela filosofia marxista com o determinismo inconsciente elaborado a partir da metapsicologia freudiana" (p.13).

Desde o desenho da capa somos introduzidos no universo da Psicanálise e do Materialismo Dialético: sobre um divã no fundo de uma sala, está um capacete, desses que já se convencionou ver ou ter nas cabeças dos operários nos momentos de trabalho.

O que surpreende, no entanto, é o corte que os capítulos da primeira parte fazem na expectativa do leitor já afeito a discussões e "aproximações" entre Freud e Marx. Para tanto, Aricó trata da etiologia das neuroses, perversões e psicose, fundando seu dizer nos mecanismos inconscientes da repressão, denegação, recusa e rejeição ou forclusão. Só com um esforço do próprio leitor, esclarece-se a relação entre este início e o que o autor passa a desenvolver em seguida: é com o conceito de Inconsciente de Freud que se inaugura a Psicanálise enquanto sistema teórico, e é sobre ele que incide o estudo epistemológico dessa área do saber humano.

A segunda parte do livro tem exatamente este objetivo. As relações entre Psicanálise e Epistemologia são enfocadas no duplo sentido de: 1º trazer à luz a natureza científica do conhecimento que a Psicanálise produz, considerando-se desde o ângulo do estruturalismo de Althusser, que enriquece o materialismo dialético; e 2° de apontar para o componente paranóico da relação com o desconhecido ou com o (des)conhecimento. Ou seja, a questão do conhecimento é vista enquanto produzida pelo sujeito e enquanto conjunto constituído do saber psicanalítico. No movimento instituinte e instituído, portanto.

Na terceira e última parte, encontra-se, a nosso ver, um dos mais interessantes momentos do livro: a análise das relações entre a ciência do inconsciente e as estruturas de poder e dominação. Estabelece-se a distinção entre poder e coerção e se discute a dominação que ocorre no interior das instituições psicanalíticas — quer na forma de se constituírem os institutos responsáveis pela transmissão desse saber, quer na relação mesma analista/analisando por meio das convenções de contrato, duração e freqüência de sessões. Aricó aponta, aí, para a inscrição do exercício da Psicanálise na ordem burguesa e na reprodução do modo de produção capitalista. Se antes, como fez na segunda parte do livro, Aricó olhava a Psicanálise de um ângulo exterior, passa agora a olhar esse exterior do ângulo da Psicanálise. Nesse sentido, faz considerações a respeito das características do discurso paranóico e do discurso do ditador. E termina por rever o Freud-Marxismo enquanto uma "correspondência linear dos discursos de ambas as correntes" ou enquanto uma "mescla , superposição e reducionismo entre os conceitos mais importantes da Psicanálise e do Materialismo Histórico", sem distinguir a Psicanálise enquanto ciência, ideologia, prática e doutrina. Cita um autor muito conhecido entre nós, Bleger, como um dos que repete este engodo.

Nesse percurso todo, o livro de Aricó tem o efeito de recuperar, de forma intrincada, mas decisiva, o lugar do sujeito na elaboração da ideologia, das teorias, da ciência. Resgata a presença do inconsciente, da lógica da desrazão, do desejo nas práticas de constituição do saber científico. Isto, "sem subordinar a Teoria do Conhecimento à Psicanálise", nas palavras do autor.

Quase sempre os parágrafos são densos: há muitas — e preciosas — informações escritas de forma a exigir do leitor acentuado exercício de atenção e discriminação. Nem sempre a exposição de suas idéias recebeu destaques formais, ou uma distribuição tal no interior de cada capítulo que facilitasse a compreensão e a leitura.

Este fato, no entanto, não compromete a importância de sua contribuição, especialmente para os psicólogos e os psicanalistas que procuram pensar a Psicanálise para além dos cânones das instituições que reivindicam o monopólio desse saber e desse fazer.

Este fato não compromete, também, sua contribuição para que se distingam as críticas precipitadamente feitas à Psicanálise a partir do marxismo, daquelas que — ainda advindas do marxismo — fazem sentido e podem conduzir à transformação da prática concreta.

Entre afirmações categóricas e dúvidas nem sempre nomeadas, mas certamente estabelecidas no leitor, este livro é um convite à reflexão. Munam-se dos vocabulários de psicanálise, dos operadores para leitura de Lacan, dos dicionários de filosofia e sociologia e, principalmente, das inquietações no exercício cotidiano da profissão, mas não deixem de ler esse livro!