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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.6 n.2 Brasília  1986

 

DEPOIMENTO

 

Oficina de saúde da mulher

 

 

 

É um trabalho destinado à promoção da saúde integral da mulher, que vem sendo desenvolvido nos bairros da periferia da cidade de São Paulo, pelo Serviço de Orientação à Família (SOF). A colega Cecília Elena Fuentes Guedes, da equipe do SOF, tem participado desse trabalho que procura garantir simultaneamente dois objetivos: a melhoria da qualidade dos atendimentos à população nos Centros de Saúde da rede pública e a formação e organização dos grupos e entidades que lutam pela saúde.

O Serviço de Orientação à Família (SOF) é uma entidade civil que recebe subsídios nacionais e internacionais de órgãos ligados ao planejamento familiar. Há cerca de 20 anos vem aperfeiçoando formas alternativas de atendimento à saúde da mulher, em duas regiões da periferia da cidade de São Paulo, a Zona Sul e a Leste, onde estão instaladas as suas sedes. Essas formasalternativas são desenvolvidas por equipes multiprofissionais que atendem grupos de mulheres formados de acordo com seus interesses ou necessidades, como menopausa, preparação para o parto, sexualidade, entre outros.

Recentemente, o Ministério da Saúde vem tentando implantar o Programa de Atendimento Integral à Saúde da Mulher, a nível da rede pública municipal, estadual e federal. O número de mulheres atendidas nas duas sedes do SOF era mínimo quando comparado à capacidade de atendimento da rede pública. Deste modo, deixamos de atender a esse número limitado da população. Achamos que era mais importante passar a atuar na comunidade para que ela própria lute pela garantia de um bom atendimento nos Centros de Saúde.

 

As necessidades de saúde da mulher

Resolvemos atuar no sentido de questionar os Centros de Saúde, para que, na implantação do Programa de Atendimento Integral à Saúde da Mulher, não fosse oferecido somente um atendimento médico, mas que se atendesse às necessidades de saúde global da mulher. Em geral, a população nos conta que, por exemplo, o atendimento de uma mulher grávida consiste em medir a barriga, receitar medicamentos etc., reduzindo-se a consultas avulsas, sem continuidade. Neste atendimento, a relação especialista-paciente caracteriza-se pelo fato de somente o especialista deter o conhecimento e o poder da saúde. Discordamos dessa atitude porque, na nossa abordagem, procuramos fazer um atendimento que acompanhe o processo de cada mulher, a partir do conhecimento que ela já possui sobre saúde. É de importância fundamental que a pessoa conheça e tenha o controle do corpo, assumindo a responsabilidade pela própria saúde.

Atualmente, o SOF está atuando com Oficinas de Saúde destinadas aos grupos ou entidades como Conselhos de Saúde, Clube de Mães, Associações de Bairro etc., assim como aos funcionários e técnicos dos Centros de Saúde. A nossa proposta atual é a de trabalhar com estes grupos já formados que serão capacitados para coordenarem outras Oficinas, funcionando como agentes multiplicadores. Desta maneira, a proposta de mudança de atendimento integral à saúde da mulher estará ao alcance de uma parte expressiva da população.

 

Cartilha e dramatização

Procuramos criar recursos que possibilitem formas de multiplicação de tais atendimentos. O relato de uma experiência pode ilustrar como esses recursos são criados na prática. Numa Oficina realizada com as conselheiras de saúde da Vila Curuçá, em São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo, foi solicitada uma atividade específica sobre menopausa, pois a faixa etária delas era em torno de quarenta a cinqüenta anos. Ficamos durante dois meses promovendo encontros semanais em que esta situação era trabalhada de diversas maneiras. No final dessa Oficina, a avaliação foi feita, na linguagem delas, através de desenhos, colagens etc. Disso resultou uma cartilha sobre a menopausa. Elas pediram para reproduzirmos a cartilha, pois poderiam usá-la quando fossem falar com outras mulheres nos Centros de Saúde e, também,como uma proposta de atendimento a ser feito nos próprios Centros.

Um outro recurso de atendimento, bastante usado por nós, é a dramatização de um tema ou situação. Por exemplo, a Oficina de Pré-Natal em que as mulheres podem expressar suas dificuldades, dúvidas etc., através da dramatização de cenas significativas para elas e criadas por elas. Na dramatização, elas revelam que em geral, sentem uma falta total de preparo para o parto. Muitas mulheres, que vão ter o seu primeiro filho, nem sabem quais são os primeiros sinais de parto. Como não sabem o que vai acontecer, elas ficam apavoradas. Ao dramatizarem a situação, elas vão adquirindo os conhecimentos necessários, trocam experiências entre si e fazem exercícios corporais para facilitar o nascimento do bebê.

Depois de o filho ter nascido, elas retornam para contar como foi o parto. Elas relatam que se sentiram mais preparadas: não ficaram apavoradas e conseguiram lembrar do que tinha experienciado e vivido na Oficina de Pré-Natal. Nessa ocasião, trazem o bebê para o grupo conhecer. Procuramos garantir essa oportunidade de retorno das mães, porque se forma um vínculo forte entre as participantes da Oficina, que estiveram juntas ao longo do período pré-natal.

 

A participação na política de saúde

Ao procurar garantir ou melhorar a qualidade do atendimento nos Centros de Saúde, procuramos também promover a organização e a formação política dos grupos ou entidades civis, nos movimentos populares.

Posso relatar o caso de um trabalho em andamento no Jardim Etelvina, na Zona Leste da Cidade de São Paulo, onde nem foi construída a sede do Centro de Saúde. O Conselho de Saúde é uma estrutura de participação já prevista nos regulamentos oficiais da rede pública. As conselheiras são eleitas pelos moradores do bairro, mas não estão preparadas para exercer esse papel. Elas ficam inicialmente preocupadas só em fiscalizar a construção da sede. Entretanto, podem atuar não só a nível de fiscalização, como também a nível de propostas, interferindo nas questões de atendimento e discutindo desde a situação da saúde no bairro, a qualidade de vida e de trabalho dos moradores, até a Política Nacional de Saúde.

Procuramos fortalecer a organização dos grupos já formados, como também inseri-los numa articulação política mais ampla. Atuamos no sentido de organizar os grupos ou entidades do bairro para participarem dos movimentos populares tanto na região quanto na cidade, no Estado e no País. Com este objetivo, fazemos reuniões mensais com os grupos e entidades da região para que se articulem e se fortaleçam. No caso de ocorrer problema num dos bairros, os outros ficam sabendo do que está acontecendo e podem unir-se na luta comum da região.

Uma das lutas atuais é a que resultou de uma série de atos públicos para garantir o Sistema de Módulos que começou a ser implantado em São Paulo. Esse Sistema consiste numa integração sincronizada dos serviços prestados por hospitais e Centros de Saúde num mesmo bairro ou região, para obter uma maior retarguarda de atendimento da população. Por exemplo, a mulher grávida faz exames no Centro de Saúde que, por sua vez, está conectado ao hospital mais próximo da região. O próprio Centro de Saúde encaminha a paciente para o hospital na época prevista do parto. Depois do parto, o hospital faz a matrícula do bebê no Centro de Saúde.

Esse Sistema foi uma reivindicação da população que agora continua mobilizada para que seja implantado e se garanta a sua manutenção.

 

As questões políticas das mulheres

A grande força dos movimentos populares de saúde está nas mulheres, donas-de-casa, que têm um trabalho de suplementação de renda familiar sem se afastarem de casa (costuram ou lavam roupa para fora, tomam conta de grupos de crianças etc.). Os seus maridos ou companheiros trabalham num local fora do bairro, durante a semana toda e muitas vezes trabalham também aos sábados. Existe participação masculina nos movimentos de saúde, mas é mínima no bairro; eles participam mais dos movimentos fora do bairro, por exemplo, nos sindicatos.

Ao discutir questões políticas, deve-se abrir ao mesmo tempo espaço para que as pessoas coloquem questões cotidianas da sua vida. Na participação política das mulheres, elas evidenciam que têm grande dificuldade de participar das atividades, porque "o marido não aceita, muitas vezes, que fique saindo de casa". Isso não acontece só com uma ou com outra, mas com a maioria delas. Diante desta constatação, tantamos fazer com que elas busquem encaminhamentos por si próprias. Um destes encaminhamentos é o de procurar levar as discussões feitas nos movimentos de saúde para serem compartilhadas com os maridos ou companheiros em casa. Dessa maneira, elas não vão procurar transformar só a comunidade, mas também o cotidiano e a sua vida, tentando juntar o politico com o privado.

 

Os técnicos e as mulheres

Trabalho com as mulheres e eu sou uma mulher. É um trabalho que tem me construído como pessoa. Nele ocorre muita troca de vivências. Encontro muitos pontos em comum com as mulheres de periferia, mas também encontro muitos pontos diferentes. Existe a diferença de classe social e acho que ela deve ser colocada claramente e não deve ser escamoteada pelo técnico. Em geral, o técnico costuma adotar um dos dois extremos: ou ele se coloca como alguém distante das pessoas, num pedestal, dando receitas para o que elas devem fazer; ou o técnico nega a diferença de classe que normalmente costuma existir entre ele e a população atendida nos Centros de Saúde. Nenhum destes dois extremos têm dado resultado, o ideal é que haja troca entre as duas partes envolvidas na relação. As pessoas estão querendo que o técnico dê alguma coisa para elas, mas o técnico também deve apontar quando as pessoas estão dando alguma coisa para ele. Nessa troca, podemos buscar uma linguagem comum através das contradições existentes, lidando com elas, para que ocorra inclusive o crescimento de ambas as partes.

 

A busca de novos modelos

É muito difícil para os técnicos dos Centros de Saúde mudarem de postura. Por isso nunca endossamos uma atitude de checá-los, mas de fazer uma nova proposta a ser discutida com eles. Há técnicos mais abertos e receptivos a estas novas propostas. Alguns deles até chegam a solicitar a assessoria do SOF. Atualmente, estão muito preocupados com seu trabalho, porque está sendo implantado o Programa de Atendimento Integral à Saúde da Mulher e eles não têm obtido um suporte de treinamento suficiente para este tipo de atendimento.

Ao implantar este tipo de atendimento, é preciso abrir espaço no Centro de Saúde - e continuar alerta a fim de garantir a manutenção deste espaço—para que não se tente aplicar um modelo clínico de consultório particular, porque é o que em geral se espera de um psicólogo. A saida é tentar organizar os que trabalham nessa área de saúde pública, para que ninguém se sinta sozinho, e para que possam trocar experiências e sistematizar as idéias e os conhecimentos, comprovando que é um trabalho viável.

 

 

Endereços: SOF/Sul, Rua Engenheiro Thomas Whately, 204, tel. (011) 521-9822, CEP 04742, São Paulo.
SOF/Leste, Rua Amadeu Gamberini, 134, tel. (011) 297-3834, CEP 08000, São Miguel Paulista, SP.