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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.6 n.2 Brasília  1986

 

LEITURA

 

Da criança ao menor

 

 

José Augusto Guilhon Albuquerque

Professor de Ciência Política na USP, autor de Metáforas da Desordem (Paz e Terra) , Instituição e Poder (Edições Graal)

 

 

Instituição e Relações Afetivas, de Marlene Guirado, Summus Editorial, 213p.

Endereço da editora: rua Cardoso de Almeida, 1.287, Sao Paulo, SP, CEP 05013.

Como toda tese bem fundada, o livro de Marlene Guirado sobre Instituições e relações afetivas não se baseia em idéias e propósitos, mas resulta da organização do "(seu) pensamento e (sua) prática profissional e politica" (p.l6), embora não necessariamente nesta ordem. Estou convencido de que a maneira como percebemos um objeto social (seja uma instituição ou organização, ou qualquer situação socialmente significativa) está intimamente associada à maneira como a praticamos.

Por exemplo: não é difícil entender a incrível falta de urbanidade dos brasileiros quando nos damos conta de que, neste país, a rua e a coisa pública sempre foram para os ricos, o seu quintal e, para os pobres, "coisa dos outros". Já temos aí uma indicação de como è difícil entender, partindo de uma ótica do Estado, o que vem a ser mais essa "coisa dos outros", mais esse quintal da sociedade, dentro do quintal maior da pobreza, que é a institucionalização da criança abandonada e do infrator, em uma palavra: do menor (Deixo as aspas ao gosto do leitor, pois confesso que fui incapaz de escolher as palavras que deixaria sem elas.)

O mérito primeiro e fundamental de Marlene Guirado neste livro é, portanto, o de despir-se de uma percepção previamente institucionalizada e de uma intenção previamente institucionalizadora. É porque sua prática não se confunde com a prática institucional; porque sua prática não tem a pretensão onipotente de ser, para a criança, a plenitude de sua carência, nem a correção de sua inclinação para a infração, nem o controle do seu desgoverno (p. 37); que Marlene pode tentar perceber algo do que se passa na transformação da criança em menor.

De nada adiantaria invocar foucalts e lacans, ou guilhons, grandes e pequenos demônios, sem essa espécie de purificação do olhar e do gesto (exagero deliberadamente nas metáforas místicas), porque sem isso as palavras mágicas serão menos flatus vocis. Isto é, sem a prática da análise dos assim chamados fatos, sem a análise de sua própria relação com o objeto de análise, sem a análise de seu próprio discurso sobre o discurso que se quer objetivar pela análise, as teorias nada mais são do que palavras.

Marlene Guirado pretende entender como a Febem/SP, ao transformar crianças em menores, reproduz permanentemente uma clientela que ocupa o lugar do abandono, da infração e do desgoverno, reproduzindo-se, ao mesmo tempo, como monopólio da plenitude, da correção e do controle. Pretende entender a natureza do vínculo que assim se estabelece e suas significações afetivas para os atores em presença (p.37-38).

Para isso, Marlene recorre à análise do discurso dos atores institucionais significativos e efetivamente implicados na produção do objeto institucional. Para fazer percurso análogo, muitos têm cedido à tentação de desenvolver grandes introduções com o referencial teórico, às quais juntam transcrições literais da fala dos entrevistados—escolhida a partir de critérios de sensibilidade subjetiva—e que culminam com interpretações que, em geral, já estavam contidas nas premissas e nada acrescentam ao preconceito. Marlene, ao contrário, corre o risco da análise.

Ela mostra as cartas desde o início, anuncia sua estratégia e nos deixa conferir até que ponto suas hipóteses se sustentam na prova da análise. Para isso trabalha com o discurso, e com duas perspectivas diferentes.

Para entender como o menor se produz institucionalmente, recorre ao discurso como representação de relações e posições institucionais e, a partir dessas representações, reconstrói as práticas de menorização das crianças e dos funcionários (capítulos III e IV).

Para entender as significações afetivas do vínculo, recorre ao discurso enquanto linguagem e procura encontrar as articulações inconscientes do significante. De um lado, o que eu chamaria de análise de produção institucional, de outro, Lacan.

Para muitos essa dupla referência redundaria em sincretismo. Em conceitos, senão idéias, fora do lugar. No livro de Marlene Guirado, trata-se de análises independentes, cada uma distinta em seu próprio plano de análise, construindo seu próprio objeto.

Só vendo. Ou melhor, só lendo. Garanto que vale a pena.