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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.6 no.2 Brasília  1986

 

LEITURA

 

Atendimento ao aluno "difícil"

 

 

Maria Helena Souza Patto

Professora do Instituto de Psicologia da USP, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, autora do livro Psicologia e Ideologia (T.A. Queiroz Editor) e organizadora da coletânea Introdução à Psicologia Escolar (T.A. Queiroz Editor)

 

 

Aconselhamento Escolar. Uma proposta alternativa: atendimento ao "aluno-difícil", de Elcie Salzano Masini, Editora Loyola, 206p. Endereço da editora: Caixa Postal 42.335, CEP 01000, São Paulo.

Elcie Masini é uma verdadeira psicóloga-militante: há anos dedica-se à reflexão crítica do papel que os psicólogs tradicionalmente desempenham junto à clientela das escolas públicas de 1.° grau, especialmente àquelas a quem os especialistas—entre os quais encontra-se o psicólogo—não têm hesitado em chamar de alunos difíceis, mesmo sabendo que as condições de aprendizagem escolar que lhes são oferecidas não resistem a qualquer exame.

Elcie recusa os procedimentos que classificam as pessoas segundo critérios que lhes são alheios, enquadrando-as nas roupas estreitas dos rótulos, dos estereótipos e dos preconceitos. Quer um referencial teórico que lhe dê pistas para perceber as pessoas como elas são. Na procura de um referencial teórico-metodológico que desse conta desse recado, voltou-se inicialmente para Rogers; no entanto, a proposta de terapia centrada no cliente, a seu ver, contém lacunas que se manifestam principalmente na prática do aconselhamento escolar.

Movida pelo desejo de continuar a buscar caminhos alternativos para a Psicologia Escolar na filosofia existencial-humanista — talvez por considerá-la a mais promissora na constituição de uma Psicologia não-rotuladora — Elcie encontra-se com Minkowski (antropólogo que se propôs a estudar as relações primitivas olhando sem instrumentos) e com Boss (psiquiatra que reformulou a prática da psicoterapia a partir da filosofia de Heidegger e criou a Daseinsanalyse que, entre outras características, movimenta-se num sentido contrário à terapia analítica, pois recusa a interpretação). Ambos se propõem a olhar sem deformar, condição para que o Aconselhador possa aproximar-se do mundo de significados do Aconselhando (p. 105), como forma mais autêntica de conhecê-lo e, assim, ajudá-lo a conhecer-se. Será que ainda nos é possível o resgate deste olhar?

Aproximar-se do aluno difícil, num contexto escolar, de modo a tentar compreender a maneira como ele vive, reage, atua, pensa e sente, é o único caminho, desta perspectiva filosófica, para aliar-se a ele no desvelamento do significado de suas experiências. Entre estas, a experiência escolar foi o desafio que se colocou ao grupo supervisionado por Elcie no Curso de Aconselhamento em Pscòlogia Escolar que ela mesma organizou no Instituto Sedes Sapientiae. Juntos, superviora e supervisionandos, dedicaram-se, em 1978 e 79, a delinear uma prática psicológica alternativa junto aos alunos equivocadamente chamados difíceis. O livro Aconselhamento Escolar. Uma proposta alternativa: atendimento ao "aluno-difícil", é o relato de uma pesquisa-ação levada a efeito em escolas públicas de 1.º grau do Estado e do Município de São Paulo.

Durante as sessões de aconselhamento, constantemente discutidas, vistas e revistas pelo grupo, houve uma descoberta: a de que não só o aconselhado tem a possibilidade de entender sua maneira de estar no mundo em sua relação com o aconselhador, mas que este se conhece—ou seja, toma consciência do viés ideológico, do assistenciãlismo e, portanto, do preconceito que o aconselhador nutre em relação a estas crianças—em sua relação constantemente refletida com o aconselhando. Dá-se, então, a principal mudança de ótica em relação às preocupações rogerianas: ao invés de se voltar para a definição das condições facilitadoras do crescimento pessoal do aconselhando, Elcie chama a atenção do leitor para as condições dificultadoras presentes nesta relação que, a julgar pelos textos de Rogers, parece mais fácil do que na realidade é.

Certamente, os aspectos teóricos da proposta comportam uma longa discussão: o caráter a-histórico do ser humano me parece uma característica da filosofia existencial-humanista que a concepção materialista histórica de homem superou. No entanto, não é isto que vem ao caso quando lemos este livro: sua contribuição maior encontra-se no espírito questionador e incansável da autora que—ao conduzir a Psicologia em direção a uma visão de homem que quer, acima de tudo, olhá-lo como ser individual e único— ajuda a distanciá-la da abordagem empobrecedora da norma e das generalizações massificantes.

Nos meios educacionais, olhar para cada criança como se ela fosse única tornou-se uma prática que privilegia a clientela de alguns bons colégios particulares. Com sua proposta, Elcie nos convida a tirar a venda imposta pela Psicologia, que estereotipa e discursa sobre, e a refletir mais amplamente sobre as discordâncias entre o saber, sentir e agir junto ao Outro, sobre os caminhos possíveis para lidar com as distorções da comunicação humana numa busca de recursos para aproximar-se dos significados do próprio existir de cada um e do existir do Outro (p. 120). Este convite será tanto mais rico e proveitoso quanto mais for aceito por todos os que se dedicam à educação de crianças das classes populares, sempre olhadas de maneira tão distorcida.