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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.7 no.1 Brasília  1987

 

EM DEBATE

 

O déficit pode ser real

 

 

 

"Nos anos 60 e 70, a teoria piagetiana desenvolveu-se no Brasil, primordialmente, como aplicação nas escolas pré-primárias. No entanto, os estudos teóricos só vêm se desenvolvendo recentemente. Por que isso aconteceu?"

Zélia Rampzzi Chiarottino — Essa, talvez, seja a visão dos leigos, mas os estudiosos de Piaget sabem que não foi assim. Piaget entrou no Brasil através da teoria. A professora Amélia Americano Domingues de Castro conta que um professor de Escola Normal do Rio de Janeiro escreveu, em 1936, um trabalho sobre a noção de tempo na criança, a partir da leitura da primeira edição de "O Nascimento da Inteligência da Criança". Em 1957, quando eu estava no terceiro ano da Faculdade de Filosofia, a professora Annita de Castilho e Marcondes Cabral incentivou-me a estudar a teoria de Piaget, pois eu já tinha um conhecimento razoável da filosofia de Kant. Aliás, desde 1947 ela já vinha introduzindo a obra de Piaget na bibliografia para os seus alunos. Em 1955, o professor Cruz Costa, da Cadeira de Filosofia, pedia a leitura do livro "Psicologia da Inteligência". Ainda no final da década de 50, formou-se um grupo de estudos piagetianos dirigido pela professora Amélia Americano, na cadeira de Didática. Nessa época, não havia a intenção de aplicação prática imediata. Buscava-se, antes de mais nada, entender um pouco da teoria de Piaget.

 

Os primeiros estudos

Em 1963, fui lecionar na Faculdade de Filosofia de São José do Rio Preto, no interior do Estado de São Paulo, onde encontrei Carlos Prosperi, professor de Matemática e Estatística. Ele havia estudado bastante a teoria de Piaget e tinha montado um pequeno laboratório, onde pesquisava a noção de probabilidade, repetindo algumas das experiências de Piaget e inventando outras.

Em 1965, fui para a França fazer pós-graduação em Filosofia. Dois anos depois, defendi a minha tese "Approches du concept de structure chez Piaget", orientada pelo professor Gilles Granger. Era uma tese teórica, tratava do conceito de estrutura na obra de Jean Piaget. Ampliando este trabalho, fiz minha tese de doutorado, na Universidade de São Paulo, sobre os conceitos de modelo e estrutura em Piaget. Esta tese foi publicada em 1972, sob a forma de livro, com o título, "Piaget: modelo e estrutura".

Em 1968, de volta a São Paulo, comecei a dar cursos sobre Piaget, no curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia. No que diz respeito à pesquisa, comecei por adaptar as provas piagetianas para serem usadas aqui. Já nesta época, algumas pessoas começaram a me procurar pensando numa aplicação prática de Piaget às escolas pré-primárias. Eu sempre adverti a estas pessoas: "Antes de partir para a prática é necessário um sólido embasamento teórico". De maneira geral, poderíamos dizer que os estudiosos de Piaget no Brasil nunca intencionaram abrir escolas "piagetianas".

 

A aplicação prática

No Brasil, pode-se dizer que surgiram inicialmente as reflexões sobre a possibilidade de aplicação prática e, anos depois, a aplicação prática propriamente dita. A professora Orly Mantovani de Assis, por exemplo, iniciou seu trabalho prático por volta de 8 a 10 anos depois dos seus primeiros estudos teóricos e de suas pesquisas. Com o professor Lauro de Oliveira Lima aconteceu a mesma coisa. Antes de abrir a sua escola, a Chave do Tamanho, ele estudou, deu cursos introdutórios, e desempenhou o papel de divulgador da obra de Piaget no Brasil. Além disso, foi a primeira pessoa, no Brasil, a ter idéia de aplicar a teoria piagetiana à Psicologia Social.

Acho que o fato de Piaget ter sido utilizado por pedagogos desconhecedores da sua teoria foi péssimo porque isso começou a deturpar sua imagem de filósofo e cientista. Muitas pessoas pensam que podem abrir escolas "piagetianas" sem conhecerem a teoria. Acontece que, se a teoria é difícil, a aplicação prática é mais difícil ainda. Começou-se também a dar uma ênfase tão grande à teoria dos estágios (que é um detalhe do sistema piagetiano) que afinal a parte ficou entendida como se fosse o todo, como diz Antonio Battro.

Piaget não é pedagogo nem psicólogo do desenvolvimento. Ele criou uma teoria do conhecimento que tem suas origens na Biologia e que é uma teoria sobre o organismo humano, sobre o processo de cognição ou da construção da inteligência do ser humano. Acredito que haja possibilidade e interesse em se aplicar a teoria de Piaget à pedagogia, mas jamais se pensar em transformar essa teoria numa pedagogia. Por exemplo, eu mesma utilizo a teoria de Piaget para a reeducação de crianças com distúrbios severos de aprendizagem e socialização. Faço isso através de técnicas criadas a partir da teoria de Piaget.

"Qual é a contribuição dos estudos piagetianos para o desenvolvimento lingüístico e cognitivo das crianças de classe baixa?"

Zélia — Depende do que se entende por processo de cognição e do que se entenda por linguagem. Se você considerar o processo de cognição tal como Piaget entende, então pode-se dizer que a teoria dele tem contribuições para se atingir esse desenvolvimento. Mas é preciso acreditar que o processo de cognição é resultado da troca ou da interação do organismo com o meio. Se você acreditar nisso, obviamente a teoria de Piaget vai contribuir para resolver problemas de cognição e de linguagem da criança, que possam surgir em qualquer classe social e não só nas menos favorecidas.

Se você acreditar que a linguagem resulta da representação da organização da experiência vivida pela criança em termos de espaço, tempo e causalidade, como diz Piaget, então você pode utilizar esta teoria para tentar resolver os problemas de qualquer criança, ou simplesmente para melhorar a sua performance.

 

A criança "sem discurso"

Para Piaget, a cognição é a própria inteligência, e depende da troca do organismo com o meio. Se uma criança tem qualquer "defeito" na cognição, pode-se dizer que houve algum problema nessa troca, e é preciso compensar a deficiência havida na troca. Isso acontece quando a criança não representa adequadamente o que já viveu, quando se expressa mal, ou não sabe falar. Há quem diga que estas crianças da periferia — classificadas por mim como "sem discurso" — têm "outro código" e por isso pensamos que ela se expressa muito mal. Eu não concordo que se trata de "outro código". Essas crianças realmente não sabem falar a respeito do que fazem, a respeito do que vivem, porque não foram solicitada de forma adequada. Uma vez corrigida esta solicitação, elas podem superar esse "déficit" e tornarem-se capazes de pensar e falar como qualquer um de nós.

As crianças que vivem em determinados meios adquirem características específicas, diferentes de crianças de outros meios. Por exemplo, a criança do campo tem as noções de espaço e tempo mais elaboradas do que a criança da cidade. No entanto, se você perguntar para uma criança do campo quanto tempo leva para ir de sua cidade a uma outra, ela provavelmente responderá baseada no tempo que ela levaria para fazer este percurso a pé ou a cavalo (e não obviamente de automóvel), porque se baseia na sua experiência.

 

Como chegar à abstração

A criança do campo necessitaria de um material didático um pouco diferente das crianças da cidade, no que diz respeito ao seu conteúdo. É necessário partir da experiência dela para ensinar-lhe qualquer coisa, como fazia Freinet. E bom lembrar que Freinet nunca pretendeu fazer as crianças estacionarem em sua própria prática. Ninguém poderia chegar ao "baccalauréat" (o exame ao final do curso secundário, na França), falando apenas da criação de animais de sua aldeia.

Se uma criança já sabe fazer contas nos dedos, é preciso aprender a fazer contas no papel. É necessário chegar a abstração. A matemática é abstrata; tentar esquecer isso é agir antimatematicamente. Não basta pedir para o aluno encontrar "triângulos" e "retângulos" na natureza. Os triângulos e retângulos matemáticos são abstratos e, portanto, o que importa é chegar à abstração dessas formas, a partir de algo semelhante a elas. A criança precisa entender que o que um professor desenha na lousa não é um vetor, mas o símbolo do vetor. É preciso ter a pretensão de fazar com que a criança que conta nos dedos comece a fazer conta em pensamento expresso no papel. Como ser humano, ela tem uma bagagem hereditária que lhe permite chegar à abstração. E a teoria de Piaget pode colaborar, mostrando que, quando solicitada adequadamente, a criança supera cada etapa do desenvolvimento partindo para outro mais adiantado.

 

Os piagetianos no Brasil

Alguém que não tenha Piaget como referencial teórico pode pensar que esta teoria pode ser usada para explicar apenas um aspecto da inteligência. Isso equivaleria a afirmar que, num pomar, as maçãs caem de acordo com a teoria de Newton e as pêras, segundo os princípios da física pré-socrática.

Eu dividiria os piagetianos no Brasil em dois grupos: os que usam Piaget como um instrumento qualquer para atingir um determinado objetivo e aqueles que estudam a teoria de Piaget e que têm questões que os inquietam e cuja solução acreditam encontrar nesta teoria. Por exemplo, a professora Maria Tereza Mantoan precisava de um referencial teórico para desenvolver seu trabalho com excepcionais. Ela adotou a teoria piagetiana, aprofundou-se nestes estudos ao mesmo tempo que se aprofundava na questão do excepcional. Assim, está criando novas técnicas de reeducação de excepcional.

Acho que formei uma escola piagetiana no Brasil com meus primeiros alunos e vários orientandos que se especializaram em Piaget comigo. Entre eles, Lino de Macedo, hoje meu colega livre-docente do Instituto de Psicologia da USP; Orly Mantovani de Assis, doutora da UNICAMP; Fernando Becker, doutor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Adrian Dongo Montoya, da UNESP, Léa Fagundes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Jandira Ribeiro Santos, da Universidade Federal da Bahia; Vera Barros de Oliveira, especialista em reeducação, em São Paulo; Maria Alicia Ferrari Zamorano, especialista argentina em reeducação de surdos, em Buenos Aires. Esses "discípulos", por sua vez, orientam outros que formam hoje a nossa grande família.

"Existem ou não diferenças de desenvolvimento cognitivo e lingüístico entre crianças de classes altas e crianças de classes baixas?"

Zélia — O desenvolvimento cognitivo é um conceito variável. Em determinadas culturas, a intutição é privilegiada como elemento do desenvolvimento da cognição. Segundo Piaget, a criança deve ser inicialmente capaz de estruturar o real, ou seja, construir as noções espaço-temporais e causais. Depois, deverá ser capaz de representar o que estruturou. Em seguida, verbalizará aquilo que representou a respeito do que estruturou. Depois caminhará no sentido da organização a nível da representação.

Nos primeiros anos de vida, as crianças de classes menos privilegiadas estão mais adiantadas do que as crianças das classes média e alta, no que diz respeito às construções espaço-temporais e causais. Elas têm muito mais desenvoltura nas ações, para correr, pular e cumprir tarefas práticas. Às vezes, uma criança dessas, aos cinco anos, já sabe preparar seu almoço, ou cuidar do irmão mais moço.

Na fase seguinte, quando a criança adquire a possibilidade de elaborar sua vivência a nível da representação, as crianças de classes média e alta passam à frente. Estas têm mais solicitações, mais conversas, mais perguntas, mais livros, enfim mais possibilidades de elaborar suas atividades e vivências.

 

Elas não são, mas estão inferiores

As crianças de baixa renda têm, em média, um "déficit" cognitivo, ou seja, não são capazes de verbalizar suas ações através de um discurso coerente. Considero isso um "déficit" e não apenas uma "diferença". Isso não significa que elas sejam inferiores: superando este "déficit" elas podem ir até mais longe do que as outras. Estas crianças estão em situação de inferioridade em relação a sua capacidade de expressão, porque a troca do organismo com o meio não foi adequada. Esta troca com o meio foi adequada a nível prático e material, mas a nível abstrato não foi. Quer dizer, elas não são inferiores, mas estão inferiores. Só que seu problema precisa ser superado na época adequada. Se elas passaram dos dez anos, a situação se complica. Se chegarem à vida adulta, aí a situação fica difícil mesmo.

A criança parte de uma organização prática do mundo, posteriormente representa esta organização, para depois estruturá-la logicamente, chegando a sistemas que comportam inclusive hipóteses. É quando surge no adolescente a vontade de mudar, de transformar o mundo, de experimentar outras possibilidades. Pode-se dizer que um ser humano que estacionou numa organização totalmente prática da sua vida está menos desenvolvido do que aquele que organizou a sua experiência a nível de representação. Aquele que sabe que a organização da sua vida, do seu país, do seu mundo, é apenas uma forma de organização, dentre as muitas possíveis, está mais adiantado, mais evoluído cognitivamente do que aquele que pensa que a organização do mundo dele é a única que existe.

"Como vê hoje o debate de suas idéias pela Maria Helena Patto e pela Bárbara Freitag?"

Zélia — Em relação a Maria Helena, eu tenho a impressão de que ela não deu a devida importância ao conceito de interação como explico em minha tese, defendida em 1982 e publicada posteriormente em forma de livro pela Editora Ática, com o título, "Em Busca do Sentido da Obra de Jean Piaget". Tudo o que a Maria Helena diz "contra" o que escrevi parece ter origem em um não-entendimento do conceito de interação do organismo com o meio. À luz deste conceito, qualquer deficiência, qualquer dificuldade é explicada em termos de troca. Se uma criança não aprende na escola, a causa nem é a escola e nem a criança. O problema está na troca da criança com a escola. Para resolver a questão, seria necessário resolver o problema da interação criança-escola. Apesar de Maria Helena ser uma das pessoas mais inteligentes que conheço, acredito que ela não tenha entendido este ponto. De fato, o conceito de interação em Piaget é algo novo na História das Idéias Ocidentais.

 

O fator social em Piaget

Quanto à Bárbara, ela entendeu perfeitamente o que escrevi, só que atribui ao meu trabalho um mérito que ele não tem: o de levar em conta o fator social. Isso é um dado que o próprio Piaget já levava em conta na sua obra e está implícito no conceito de construção. Quando ele fala de troca do organismo com o meio, o meio não é só o físico, mas inclui também o social. De fato, há quem interprete o conceito de meio em Piaget como estritamente físico-espaço temporal e causal, sem os conteúdos sociais. É uma questão a ser discutida com a Bárbara, pois ela tem aquilo que Piaget chamaria de "condições a priori" ou "condition préalable"para alcançar todo conhecimento possível.

O que escrevo tem a finalidade de levar as pessoas a Piaget. Não pretendo escrever nada que esgote o conhecimento sobre sua teoria e isso nem seria possível. Se a pessoa que lê o meu livro não leu Piaget, não aproveitou o que eu escrevi. Cada um lê e entende de acordo com suas possibilidades, com suas estruturas, seu conhecimento. Não posso querer que meu livro seja entendido por todo mundo. Ao contrário, eu o escrevi para pouquíssimas pessoas. Bárbara Freitag foi uma das pessoas que captou tudo o que eu quis dizer neste livro.

"Como os estudos piagetianos podem orientar políticas educacionais para crianças de classe baixa?"

Zélia — Durante 1984 e 85, trabalhei no setor de crianças abandonadas da Febem. Esse setor foi desativado em 86 (embora haja proposta de ser reativado parcialmente, em 87) e só permaneceu ativo o setor de menores infratores. Ali eu achei que poderia contribuir bastante para uma mudança de objetivos, uma transformação dos métodos educacionais, tentando socializar essas crianças que, pode-se dizer, não foram socializadas. De acordo com a teoria piagetiana, seria necessário que eu conseguisse engajá-las numa atividade que tivesse um sentido de continuidade, e não apenas um trabalho circunstancial que tem começo, fim e depois nada sobra. Era preciso inseri-las num processo, como se cada ato delas fosse parte de um sistema que estivessem construindo — uma atividade que tivesse futuro, história.

 

É preciso um projeto de vida

Um exemplo é o jogador Dada Maravilha que saiu de uma instituição similar a Febem. Quando ele começou a jogar futebol não era excepcional, mas ele mesmo se projetou um grande jogador. Ele passou a se construir, visando a sua realização. Pensou que, não tendo família e nem protetores, precisava inventar uma forma de chamar a atenção. Foi assim que Dario criou o Dadá Maravilha. Ele não diz "eu", diz "o Dadá", e tem razão. Dadá foi criado intencionalmente por Dario. E o que ele fez por si mesmo, o Estado poderia fazer pelas crianças da Febem: projetar uma imagem do que cada criança poderia ser no futuro, para que então sentissem que estão construindo sua história. Se não têm passado, poderão ter futuro.

Foi assim que eu pensei em transformar as terras da Febem de São Paulo num jardim, num local onde houvesse hortas, quadras de esporte — tudo feito pelos meninos que participariam do projeto' a partir da discussão com os arquitetos e paisagistas, na construção da maquete, até as realizações das obras acompanhadas por eles mesmos. É preciso engajar estas crianças num projeto, que se torne o seu projeto de vida, no sentido de Sartre.

Os menores infratores, por exemplo, são justamente os mais inteligentes. Não tendo com que se distrair, não tendo no que aplicar sua inteligência, a única coisa que acharam curiosa e interessante foi participar de assaltos, uma atividade mais sofisticada do ponto de vista cognitivo do que simplesmente vadiar. Se fosse possível engajá-los em outra atividade, poderiam se recuperar, e outros tantos não se tornariam delinqüentes.

Eu tenho a crença de que seria necessário fazer como Freinet: partir de uma atividade comum para daí construir alguma coisa, despertando o interesse da criança por um Projeto. O mais difícil é interessar as crianças. Uma vez adotada uma atividade, a criança pode verbalizar a respeito desta atividade, pode desenhar, pode começar a tentar escrever. Uma criança que não representa adequadamente o seu presente, que não sabe dizer duas palavras a respeito do seu passado, não pode ter um projeto. E é isso que é preciso dar às crianças: condições de lembrar do passado, elaborar este passado, representar o presente e projetar o futuro.