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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.7 n.1 Brasília  1987

 

Vicissitudes na hospitalização de crianças*

 

 

O presente trabalho foi feito na Unidade de Pediatria do Hospital de Base da Fundação Hospitalar do Distrito Federal, onde são internadas crianças de 0 (zero) a 14 (quatorze) anos de idade, sendo na sua maioria vindas de outros estados e cidades satélites de Brasília.

O trabalho foi desenvolvido através de várias atividades que tinham por objetivo oferecer atendimento psicológico às crianças internadas, assim como aos seus familiares, desde o momento da admissão: a) acompanhamento da criança no momento de sua internação, com o objetivo de minimizar as angústias no processo de hospitalização, envolvendo a separação da mãe, o ambiente desconhecido, a doença, entre outros; b) observação de crianças em diversas situações, inclusive em grupo, visando à avaliação de suas capacidades de desenvolver recursos para uma adaptação adequada; c) assistência psicote-rápica individual, com a finalidade de trabalhar os desajustes por ocasião da doença e internação; d) organização de grupo de mães, visando minorar suas angústias.

 

Descrição das atividades desenvolvidas

A. Acompanhamento individual da Criança desde a internação.

As crianças admitidas nesta Unidade foram acompanhadas por um psicólogo desde o momento de sua internação, até a alta hospitalar.

Uma vez encaminhada a criança para a respectiva enfermaria, ela passava a ser observada sistematicamente em todos os ambientes da Unidade, ou seja, sala de aula, enfermaria, refeitório, sala de recreação e parque, assim como seu relacionamento com a equipe médica e paramédica. A partir destas observações era feita uma avaliação pela equipe de psicólogos, com o objetivo de indicação ou não de psicoterapia. Comprovada a necessidade de uma assistência psicoterápica, a criança passava a ser atendida individualmente em sessões diárias.

B. Grupo de Crianças

O Grupo de Crianças surgiu com o objetivo de proporcionar às crianças oportunidade de se expressarem livremente e liberarem sua criatividade, através de atividades lúdicas, assim como proporcionar feedback do trabalho psicoterápico.

Conforme aconteciam as sessões, foram introduzidas técnicas diversificadas. Entre elas, teatrinho de marionetes, trabalhos de colagem, identificação com figuras previamente escolhidas pelo coordenador, brincadeiras, canções e competições, possibilitando, com isto, que as crianças deixassem fluir naturalmente, e numa linguagem própria, suas fantasias.

Apesar de as participantes serem crianças com doenças agudas e crônicas, e por vezes hospitalizadas por longo tempo, observamos vitalidade e deduzimos que o trabalho, através da liberdade de ação e verbalização, o contato e a oportunidade de estar em grupo realizando alguma atividade, possibilitou, em graus variados, lidarem com as fantasias de separação familiar.

C. Grupo de Mães

No decorrer de nossas atividades na Unidade, pudemos perceber que, além das crianças, o processo de hospitalização traumatizava também as mães.

Entre os problemas que mais as precupavam, destacava-se o da separação. Como fazer para deixar seu filho sozinho no Hospital? De que maneira e quando comunicar-lhe que teria que ir embora, e que não poderia permanecer com ele? Ou, simplesmente, ir embora sem dizer nada?

Eram algumas das dúvidas levantadas pelas mães.

Em contato com estes conflitos apresentados por elas, sentimos a necessidade de formação de um grupo de apoio, para proporcionar-lhes condições de lidar com suas angústias. Esse grupo, inicialmente não-diretivo e aberto, transformou-se depois num grupo onde os temas eram previamente selecionados. A partir de então, o grupo mostrou-se mais motivado.

 

Separação Mãe-filho

A. Referencial Teórico

As crianças no seu desenvolvimento normal, segundo Margareth Mahler (1982), passam por três fases distintas: a primeira é denominada estágio de autismo normal — vai desde o nascimento até o final do primeiro mês de vida, e caracteriza-se por uma espécie de continuidade da vida intrauterina, envolvido por uma concha que denominou concha autística.

A segunda fase é a fase simbiótica — vai desde o segundo até o oitavo mês de vida, e, nesse período, o bebê compõe com a mãe uma unidade dual, revestida por uma membrana simbiótica, onde a mãe é percebida como uma continuidade dele próprio. "Na organização intrapsíquica do bebê, os limites entre self e mãe ainda são mais ou menos confluentes e se confundem." (p.47).

A última fase nesse processo de desenvolvimento, iniciada no nono mês, Margareth Mahler considerou como um momento do nascimento psicológico e divide-se em quatro sub-fases: diferenciação, exploração, reaproximação e individuação; dando a esse conjunto o nome de Separação-Individuação.

B. Fatores que Concorrem para um Trauma na Separação Entre os fatores ambientais, um dos principais aspectos são as condições oferecidas pelo Hospital, que dificultam a permanência da mãe, principalmente nos primeiros dias de internação. Observamos que a separação abrupta da mãe (principalmente em crianças menores de cinco anos), sem dar oportunidade para que a criança estabeleça um vínculo substitutivo, gerava angústia, desconfiança e hostilidade, tornando difícil qualquer aproximação. Posteriormente, observa-se que elas vinham a apresentar um comportamento que caracterizamos como grude, tal a reivindicação exigente e constante de afeto.

Outro fator hospitalar é a própria situação da doença e de tratamento, muitas vezes dolorosos, favorecendo um quadro regressivo, que acentuava mais ainda a importância da presença da figura materna.

Além dos fatores ambientais, destacamos também o potencial adaptativo da criança, que é extremamente individual e depende de toda a história da relação mãe-filho. Segundo M. Mahler (p.64) "a adaptação é, em geral, a relação recíproca entre o organismo e o seu ambiente".

A história pregressa da criança é fator determinante para o desenvolvimento, ou não, de recursos internos que a auxiliarão a adequar-se às situações novas. Portanto, é desde o início da vida que a relação mãe-filho assume destaque, uma vez que a mãe atuando como ego externo estará ajudando seu filho a organizar-se internamente e a desenvolver potencial adaptativo à realidade que o cerca.

O processo maturativo da criança acontece juntamente com seu desenvolvimento emocional. A idade dela influencia na maneira como a hospitalização é vivenciada. Quanto mais nova a criança, mais difícil e traumática será essa hospitalização, pois sua dependência emocional em relação à mãe é muito intensa e ela não possui ainda recursos próprios para lidar com essa situação (vide etapas de maturação).

Situações anteriores de internação, pela qual a criança já tenha sido submetida, influenciam também no modo como ela internaliza essa experiência, que poderá auxiliar ou não a adaptação da criança à reinternação.

Outros fatores que influenciam no potencial adaptativo da criança são: a natureza da doença, que conforme a sua gravidade causará na criança enferma uma angústia de morte e o tratamento clínico empregado, através de exames dolorosos, medicamentos com efeitos colaterais etc., que levam a um acréscimo de angústia e depressão. Por último, um tempo demasiado longo de internação conduz a criança a uma saturação do ambiente hospitalar e conseqüente desgaste de seus recursos adaptativos ou provoca hospitalismo, ou seja, a criança cria uma dependência ao ambiente hospitalar em função da perda de recursos para enfrentar situações fora deste ambiente.

Conforme mencionamos, o tempo prolongado da internação e as condições físicas da criança e seus recursos internos são dados significativos no decorrer da hospitalização. Uma vez que a criança apresente condições para uma constância objetal (p. 51), ela tem a capacidade para conservar a imagem internalizada da mãe por um tempo relativamente longo. No caso que acompanhamos, uma menina de quatro anos, apesar do longo período de internação sem a presença de sua mãe, conseguiu manter intacta a figura internalizada da mesma. Quando do seu reencontro com a família, constatamos que o tempo relativamente longo de afastamento não implicou um desgaste daquela relação.

Independente das condições da criança para uma constância objetal, nos foi possível verificar que a maioria das separações são vivenciadas de forma traumática. Citaremos o caso de uma menina de quatro anos que chegou à Unidade de Pediatria acompanhada de sua mãe, e esta, ao tomar conhecimento da impossibilidade de permanecer com sua filha, não se conformou com o fato, entrando em crise. Esta mãe chorava muito e tentava, por todos os meios, sensibilizar a equipe para que lhe permitisse ficar no Hospital. A criança estando naturalmente assustada com o novo ambiente, e sentindo toda a aflição de sua mãe, entrou em pânico, o que foi agravado com a saída da mesma.

A princípio, a criança chorava muito e permanecia dormindo por quase todo o tempo, não aceitava substitutos e nem mesmo se permitia o contato com outras crianças.

Através de observações sistemáticas, verificamos que esta menina necessitava de uma assistência mais freqüente, ou seja, ela requisitava alguém que pudesse estar o tempo todo ao seu lado. Havia na enfermaria uma mãe, que devido à gravidade do problema de sua filha, lá estava em caráter permanente. Foi esta a primeira oportunidade encontrada pela criança para estabelecer um vínculo substitutivo, que pudesse aliviá-la de seu trauma.

A partir de então, foi criado um vínculo mais forte com a terapeuta e na psicoterapia puderam ser trabalhadas a ansiedade e a ameaça causada pela separação.

Vemos assim, que o nível de angústia da mãe, no momento da separação, influencia no modo como esta transcorrerá. Muitas vezes, a mãe para não sofrer e julgando estar evitando o sofrimento do filho vai embora do Hospital sem avisar, ou mente à criança, sem saber que com essas atitudes prejudica muito mais o filho e seu relacionamento com este. Temos, como exemplo, o caso de uma menina de três anos que, quando a mãe teve que ir embora, esta disse à filha que se ausentaria apenas alguns minutos para comprar balas. A criança permitiu a saída da mãe e ficou relativamente bem, sem chorar. Após dois dias de ausência materna, no final de uma sessão psicoterápica, a criança chorava muito, não permitindo que a terapeuta fosse embora, pedindo a esta que esperasse junto com ela pela chegada de sua mãe, que havia saído para comprar balas e retornaria em breve. Podemos notar o quanto é prejudicial à criança a invenção dessas desculpas, obrigando-a a lançar mão de recursos ou defesas neuróticas, dificultando seu desenvolvimento normal.

Acompanhamos também o caso de um menino de três anos, cuja mãe esperou que ele adormecesse para poder deixá-lo no Hospital. Quando a criança acordou, assustou-se por se encontrar sozinha naquele ambiente estranho. Ouvimos então que ele chorava muito e fomos verificar o que ocorria. A criança nos solicitava que chamássemos sua mãe. Tentamos lhe dizer que ela não se encontrava no Hospital; entretanto ele não acreditava no que dizíamos, repetindo sempre que sua mãe estava no corredor. Mais tarde, pudemos verificar que as fantasias da criança sobre esse fato eram de que o Hospital havia sumido com sua mãe, tornando-o assim um ambiente persecutório e ameaçador, dificultando em muito sua adaptação.

Praticamente as angústias decorrentes de um processo de hospitalização são inevitáveis, porém algumas ainda podem ser evitadas ou reduzidas em intensidade.

Quando a criança chega ao Hospital, é natural que se sinta insegura, pois o ambiente que a cerca é totalmente novo. A esse primeiro impacto, se assim podemos chamar, é inevitável a angústia que ela possivelmente sentirá, pois além de debilitada pela doença, que favorece uma regressão psíquica e que a torna mais sensível a uma separação, nada lhe parece familiar.

Passado esse primeiro momento, vem o contato com o ambiente humano, ou seja, a equipe do Hospital, constituída por pessoas desconhecidas e que a princípio podem gerar algum tipo de angústia. Esse é um fator que pode ser trabalhado, ao se respeitar o que essa primeira impressão está causando na criança, bem como a resposta da mesma a essa situação. A empatia estabelecida será o primeiro passo.

Ao ser internada, a criança passa por momentos que provocam um aumento da angústia: o berço novo, o pijama, a enfermaria etc., são objetos estranhos para a criança. Poderiam ser evitados, como por exemplo, os exames médicos sem a companhia da mãe ou um substituto confiável. Além disso, os tipos de tratamento, bem como as conseqüências do mesmo, causam na criança também um sentimento de angústia. Ela, apesar de seu desconhecimento sobre o que se passa, não deve ser privada de uma breve explicação do que acontecerá, pois desta forma a sua confiança e a sua personalidade como indivíduo estarão sendo consideradas.

Por fim, vem a separação da mãe, que desencadeia na criança toda uma ansiedade, principalmente porque a mesma está vivendo o processo de desenvolvimento psicológico. Algumas fantasias, como por exemplo a crença de que elas nunca mais voltarão para casa, ou mesmo de que estão no Hospital por serem más, freqüentemente as pertuba. É neste instante que podemos avaliar a importância de como a criança está vivenciando o seu processo de Separação-Individuação, pois que o vínculo de confiança ou de desconfiança, em relação à equipe hospitalar, dependerá de suas condições internas. Isso não quer dizer que com o vínculo de confiança a presença da mãe seja dispensável, visto que, dessa forma, evitaria a vivência traumática da separação e um prejuízo na continuidade de seu desenvolvimento psíquico.

 

Conclusão

Durante o período de 6 (seis) meses em que foi desenvolvido o trabalho, observamos que num total de 80 (oitenta) crianças admitidas nessa Unidade, 60% (sessenta por cento) delas apresentaram algum sintoma ligado a uma separação mãe-filho vivenciada traumaticamente. Esses sintomas puderam ser resumidos em: exigência da presença constante de um adulto ao lado da criança, hostilidade ao ambiente hospitalar associado às reivindicações da presença dos pais, depressão, regressão, hospitalismo, entre outros.

Sabendo que no processo de hospitalização a preocupação recai grandemente na saúde física da criança, enfatizamos a necessidade de preservar também sua saúde mental. Para tanto, faz-se necessária uma assistência psicológica, principalmente às crianças menores de 5 (cinco) anos que ainda não concluíram sua individuação, e, portanto, não são capazes de uma constância objetai que as proteja da vivência de uma separação traumática. A não continuidade da relação mãe-filho, durante a internação, é um fator determinante de distúrbios psicológicos que podem comprometer um adequado desenvolvimento psí-quico-emocional das crianças internadas.

 

Referências Bibliográficas

MAHLER, Margareth. O PROCESSO DE SEPARAÇÃO-INDIVIDUAÇÃO. Porto Alegre, Artes Médicas, 1982.        [ Links ]

 

 

(*) Trabalho Final do Estágio de "Observação de Crianças Internadas", sob a supervisão do Dr. Márcio Nunes de Carvalho, apresentado no "II Encontro Nacional de Psicólogos da Área Hospitalar", ocorrido em São Paulo, de 30 de setembro a 04 de outubro de 1985. Agradecimento ao Dr. Oscar Mendes Moren, Chefe da Unidade de Pediatria, por ter viabilizado e incentivado o desenvolvimento das atividades que deram origem a este trabalho.

Autores responsáveis pela elaboração do artigo:
Denise de Freitas Marreco
Márcia Anunciação da C. Vasconcelos
Miriam Conceição Cardim de Carvalho
Sandra Simão
Sílvia de Fátima Ramella Pezza

Colaboradores:
Cláudia Andrade do Nascimento Rocha
Elizabeth Moreira Pereira
Elyenilda Maroclo Lima
Giovanna Muller da Silva
Elyenilda Maroclo Lima
Giovanna Muller da Silva
Jarbas Barbosa
Josevaldo Francisco Barbosa
Luiz Fernando Miyamoto
Luiz Henriques Sá de Miranda Pontes
Maria das Mercês Avelino de Carvalho
Maria do Socorro Cordeiro Lopes
Sílvia Regina L. Costa
Todos os autores e colaboradores deste artigo são Psicólogos Estagiários da Unidade de Pediatria do Hospital de Base da Fundação Hospitalar do Distrito Federal.