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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.7 n.1 Brasília  1987

 

LEITURA

 

Quando a Pedagogia é radical?

 

 

Carlos Roberto Drawin

Carlos Roberto Drawin é professor do Depto, de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais

 

 

Teoria Crítica e Resistência em Educação, de Henry Giroux, Editora Vozes , 336 p. Endereço da editora: Rua Senador Feijó , 158/168, CEP 01006, São Paulo, S.P.

O livro de Henry Giroux (Teoria Crítica e Resistência em Educação) traz, no próprio título, a intuição fudamental que o anima: a construção de uma pedagogia radical que se vincule, consistentemente, à prática educacional que supõe uma leitura crítica capaz de explicitar a articulação dialética entre as estruturas de dominação e os atos de resistência e transformação. Do ponto de vista estritamente teórico, isto significa pensar, a partir das exigências da prática educacional, uma alternativa capaz de superar os impasses de dois paradigmas conflitantes: o fenomenológico-culturalista e o positivista-estruturalista. Ou seja, não se pode resgatar o sujeito histórico, agente de transformação, senão situando-o na lógica dos mecanismos estruturais de dominação, mas, por outro lado, absolutizar tal lógica é sucumbir aos imperativos de uma "cultura positivista", é conformar-se à negação da práxis. Como pensar as relações entre Escola, Ideologia, Cultura e Poder sem resvalar pelas seduções, opostas e complementares, da crítica pessimista ou do otimismo ingênuo?

Para enfrentar este desafio, Giroux recusa tanto a perspectiva conformista, que dilui toda dimensão ideológico-conflitual da sociedade (por exemplo, na teoria funcionalista de Parsons), como, também, a perspectiva crítico-determinista, que elimina a possibilidade da ação e intencionalidade humanas (por exemplo, nas teorias da reprodução de Althusser e Bourdieu). Para que este esforço seja bem sucedido, ele recorrerá à multipla e complexa contribuição intelectual da "Teoria Crítica da Sociedade" (Escola de Frankfurt), inspirando-se em autores como Adorno, Horkheimer, Marcuse e Habermas. Deve-se observar, no entanto, que não se recorre à "Teoria Crítica" com uma intenção de filiação, mesmo porque os autores que a ela são normalmente associados não se enquadram na homogeneidade de uma "escola", mas convergem, antes, no terreno comum de suas interrogações radicais e no horizonte emancipatório em que se colocam. Este é, aliás, o mérito inegável do trabalho de Giroux: usa, com liberdade e sem ecletismo, diferentes contribuições teóricas, visando elucidar a prática educacional enquanto fenômeno histórico complexo e contraditório.

Definido o propósito do autor, podemos agora traçar esquematicamente o seu itinerário. O livro divide-se em duas partes, compondo-se, cada uma, de três capítulos, sendo que cada parte pode ser tomada autonomamente, tendo cada capítulo como um de seus momentos constitutivos. Assim, desdobraremos a primeira parte ("Teoria e discurso crítico") nos dois seguinte planos:

1°) Definição do Marco Teórico: aqui são examinadas algumas contribuições da "Escola de Frankfurt", que se organizam tematicamente em três núcleos: o problema do conhecimento, na ótica de uma crítica da concepção positivista e instrumental da Razão; a análise da cultura, desvelando seu caráter político dentro da lógica da dominação, mas sem reduzi-la, na linha do marxismo ortodoxo, a um epifenômeno superestrutural; a abordagem antropológica, elaborando uma teoria do sujeito que possa revelar a dinâmica psíquica da repressão social e as múltiplas mediações da conexão indivíduo-sociedade (Cap. I, p. 21-64).

2º) Proposição de uma Teoria Crítica da Educação: parte-se da Teoria Crítica para, então, confrontá-la, no campo mais específico da Teoria Educacional, com duas concepções que lhe são concorrentes. Será este o objetivo dos dois outros capítulos da primeira parte. Discutem-se:

a) As teorias do tipo funcionalista e liberal em Educação: são tratadas, tomando-se como ponto focal da análise o conceito de "currículo oculto" (Hidden Curriculum), conceito que nos ajuda a perceber o caráter intrinsecamente conformista destas concepções que abordam a Escola, ou como um lugar politicamente neutro de aprendizagem, ou como um espaço desvinculado da totalidade social (Cap. II, p.65-101).

b)   As teorias da reprodução em Educação: são tratadas polemicamente enquanto consideram o processo de escolarização como mediador dos interesses do capital e reprodutor das condições necessárias à manutenção da divisão social do trabalho. Tal enfoque é valorizado por desmascarar a realidade eminentemente ideológica da Escola, mas a sua fecundidade é limitada por sua visão não dialética da ideologia. Nelas, ao se atribuir primazia absoluta aos mecanismos estruturais da reprodução, exclui-se a ação humana e, concomitantemente, a possibilidade da resistência à dominação (Cap. III, p.102-154).

Encerrada a primeira parte da obra, a intenção do autor mostra-se com clareza: é necessário ultrapassar a radicalidade negativa da crítica, o desvelamento dos mecanismos da dominação; impõe-se conceber positivamente a resistência como possibilidade real. Em outras palavras: forjar categorias teóricas que nos permitam apreender e pensar os momentos de resistência e "contra-ideologia" que emergem na efetividade da prática educacional. Será esta a tarefa da segunda parte do livro ("Resistência e Pedagogia Crítica"), que poderá também ser desdobrada em dois planos:

1º) Resistência e Teoria da Ideologia: para apreender em toda sua amplitude a articulação dominação-resistência, será preciso rever em profundidade a metáfora "base-e-super-estrutura" do marxismo ortodoxo. Esta revisão desenvolveu-se em duas direções opostas que é preciso reavaliar: o culturalismo e o estruturalismo.

Os resultados do culturalismo podem resumir-se em: afirmação da autonomia da cultura, que não é mais considerada mero reflexo da base econômica; reinserção da cultura na experiência da vida cotidiana, desvinculando-a de sua definição excessivamente elitista; reelaboração da idéia de cultura a partir das categorias de Totalidade Social e Interação, ou seja, a cultura não pode ser abstraída da densa tessitura da atividade cotidiana, experiencial e criativa dos grupos sociais. Assim, culturalismo nos permite reconsiderar a eficácia hegemônica da ideologia dominante e reencontrar, nos oprimidos, o sujeito histórico, apenas aparentemnte eliminado pelos mecanismos de reprodução sócio-cultural.

O limite do culturalismo, entretanto, encontra-se em suas próprias virtudes: uma excessiva ênfase na consciência e nas possibilidades da ação humana e uma ingênua incompreensão acerca da natureza não intencional da história e da força material da relações de poder.

Os resultados do estruturalismo podem ser facilmente visualizados se os considerarmos como uma reação às distorções da perspectiva anterior: rejeição da primazia do sujeito, reinterpretação da totalidade social como totalidade estrutural, ênfase na ideologia, não como forma de consciência, mas como prática social inconscientemente estruturada. Ora, eliminando as categorias de significado, reflexidade e mediação, o estruturalismo sucumbe diante da inevitabilidade da opressão. Paradoxalmente, o vigor de suas análises nos conduz à reificação da hegemonia de classe, pois não nos fornece um instrumental teórico que nos leve a compreender a resistência e a transcendência da práxis.

Ambas as posições são, na verdade, uma reciclagem do dualismo, que se enraíza na tradição marxista, entre Ação e Estrutura. Dualismo que exige, para ser superado, uma nova abordagem não reducionista da realidade social e da educação, enquanto jogo de regularidades e indeterminações no complexo processo de constituição das subjetividades (Cap. IV, p. 160-220).

2º) Resistência e Teoria da racionalidade: para apreender o pleno sentido da resistência, não basta indicar os parâmetros de suas possibilidades, mas é necessário explicitar a sua dinâmica na prática educacional, ou seja, qual o objetivo de uma educação crítica?

Com o advento da sociedade industrial-tecnológica, a educação passou a ser considerada de acordo com critérios operacionais, como treinamento, habilitação e aprendizagem. Para se contrapor a esta tendência unidimensionalizante, é preciso retomar o ideal clássico de Educação como formação para a cidadania. Mas, o que podemos entender, hoje, por cidadania?

Poder-se-ia responder sucintamente: a cidadania é o exercício público da racionalidade que, para ser efetivo, exige como pré-condição a liberdade. Tal formulação é correta, desde que não se reduza a Razão a uma de suas formas, a racionalidade instrumental. Giroux, remetendo à teoria de Habermas, irá distinguir três modelos de racionalidade: a técnica, a hermenêutica e a emancipatória. Ora, a educação para a cidadania, sendo mediadora da racionalidade social, não pode ser pensada como mero treinamento, segundo o modelo reduzido da racionalidade técnica; ao contrário, deve ser concebida como o espaço, por excelência, da máxima explicitação dos procedimentos cognitivos e normativos que revelem ao próprio Homem (leia-se, aos oprimidos) a sua dimensão de ser histórico e autoconstitutivo (Cap. V, p. 221-268).

Finalmente, no último capítulo da segunda parte, Giroux, partindo das idéias de Paulo Freire e da teoria crítica da educação, examina a questão mais específica da alfabetização e das políticas de escolarização (Cap. VI, p. 269-302).

Na extensão limitada desta resenha, optamos por deixar de lado muitos outros aspectos relevantes do pensamento do autor, bem como evitamos contrapor-lhe nossas críticas (repetição desnecessária, desequilíbrio entre as duas partes do livro, pobreza na fundamentação filosófico-epistemológica etc.), para nos atermos ao seu projeto fundamental. Esperamos, assim, ter estimulado a leitura e a discussão de sua obra. Embora haja algumas falhas na edição brasileira, onde algumas passagens do texto parecem truncadas (cf.: pp. 42, 46, 79, 140, 143, etc.), este foi um lançamento, no mínimo, oportuno nesta época de travessia do debate politico-cultural brasileiro. Debate que parece avançar entre as seduções contestatórias de um irracionalismo fácil e o conformismo arrogante de uma racionalidade minguada.