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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.7 no.2 Brasília  1987

 

O ensino e a prática da terapia comportamental*

 

 

Fátima C. S. Conte; Maria Zilah S. Brandão; Vera Lúcia Menezes da Silva

Professoras da Universidade Estadual de Londrina

 

 

A experiência com o ensino e com a prática da Psicologia, dentro do referencial da Análise do Comportamento, tem suscitado muitas questões que consideramos importante tornar públicas e serem debatidas.

Dentre elas, uma, em particular, tem preocupado muito. Preocupação que tem sido desencadeada, semestre a semestre, no desenvolvimento de disciplinas diretamente relacionadas à prática da Terapia Comportamental, ministradas a alunos que ainda não fizeram opção explícita e formal por esta abordagem ou por outra qualquer. Nessas circunstâncias, não é pequena a quantidade de alunos que, a priori, sem nunca terem tido disciplinas específicas sobre Análise do Comportamento, apresentam oposição ao aprendizado da Terapia Comportamental. Os comportamentos de oposição mais evidentes geralmente são verbalizações de diferentes tipos. Algumas são verbalizações de conteúdo afetivo: "não gosto", "não me identifico", "não bate comigo", "não me afino" ou "não sei o que é, mas tenho arrepios só de falar nisso". Outras são de conteúdo cognitivo: "não bate com minhas expectativas", "não combina com minha visão de homem" etc. Concomitantemente, podem aparecer comportamentos de entrar e sair das classes durante todo o tempo do desenvolvimento de uma aula, conversar e rir com colegas ridicularizando verbalizações do professor, "ignorar" o que é dito ou feito na aula, fazer outras atividades enquanto o professor faz exposições ou realiza qualquer trabalho de ensino etc.

Tem sido possível, no entanto, reverter essas situações. As aulas, no início pouco produtivas, tornam-se interessantes, os comportamentos dos alunos se modificam, eles passam a apresentar atividades mais positivas, desenvolvem aprendizagens significativas e muitos dos que, a princípio, se recusavam a ouvir falar de Terapia Comportamental, chegam até a optar por essa abordagem quando realizam o estágio curricular.

Num trabalho desenvolvido nos últimos semestres, nas disciplinas que desenvolvem pré-requisitos para a realização de Terapia Comportamental, foi feita uma verificação, antes de iniciar essas disciplinas, sobre o que os alunos achavam que era a Terapia Comportamental e quais seriam as características de tal tipo de terapia. A grande maioria das respostas simplesmente repetia críticas já feitas e já refutadas, apresentava uma visão simplista, identificava Terapia Comportamental como sendo apenas aplicação de certas técnicas ou afirmava que, em Terapia Comportamental, não se consideram sentimentos e emoções.

Esses alunos geralmente definem comportamento como sendo apenas respostas motoras observadas. Para a maioria deles, a determinação do comportamento, segundo a Análise do Comportamento, é imediata e simplista, ambiente é apenas situação imediata e externa ao organismo, o homem é passivo e apenas reage ao "ambiente externo imediato", a determinação do comportamento é linear. Multideterminação e probabilidade são conceitos que não aparecem nas verbalizações dos alunos. Com tais concepções, os alunos não poderiam, e nem deveriam, identificar-se com as propostas de trabalho oriundas da Análise do Comportamento, quando pensam em sua atividade profissional.

O que aprenderam esses alunos, uma vez que já cursaram mais da metade das disciplinas do curso de graduação? Por que mantêm preconceitos e crenças errôneas sobre a Análise do Comportamento? Por que são, a priori, contra a Terapia Comportamental que ainda não estudaram no curso? Enfim, tais situações levam ao interesse do debate a respeito de quais possíveis variáveis influenciam os comportamentos de oposição descritos. Parece que, refazendo o caminho que os alunos fizeram até o ponto em que se encontravam quando foram verificadas essas verbalizações, é possível identificar eventos que podem ter favorecido a ocorrência dessa oposição ou resistência.

Ao entrarem no curso de Psicologia, os alunos trazem consigo, a respeito de Psicologia e de comportamento, as idéias decorrentes do senso comum. Tais idéias valorizam entidades internas como determinantes do comportamento, aos invés de considerar as influências recíprocas entre o homem e seu ambiente. O modelo comportamental de psicoterapia, porém, possui uma alternativa de raciocínio que se contrapõe ao senso comum e estabelece conflitos com as idéias que os alunos trazem consigo, quando entram na Universidade.

Com relação ao ensino de Análise do Comportamento, o aluno é, geralmente, introduzido no aprendizado através de disciplinas sobre Análise Experimental do Comportamento.

Como nas disciplinas que ensinam Análise Experimental do Comportamento, o sujeito usado nos exercícios e nas pesquisas estudadas é, geralmente, um animal (rato, pombo etc), o aluno entende que usar os mesmos princípios em situações com seres humanos é reduzir o nível de complexidade deste tipo de organismo ao de "animais inferiores". Fazer isso, para eles, é desconsiderar o papel de eventos encobertos tais como "pensamentos, sentimentos, emoções e intencionalidade na determinação do comportamento humano". Os alunos acreditam que Análise Experimental do Comportamento e Terapia Comportamental são sinônimos e, em decorrência desta generalização simplista e equivocada, acabam rotulando Terapia Comportamental de mecanicista, simplista, reducionista e outras críticas já amplamente publicadas e refutadas, mesmo em relação à Análise Experimental do Comportamento. Com relação ao ensino da Terapia Comportamental, devemos ainda considerar as práticas desenvolvidas em disciplinas com orientação comportamental. Até que ponto tais disciplinas continuam com o desenvolvimento de discussões iniciadas em disciplinas anteriores? Ou têm apoio em aprendizagens de disciplinas precedentes? Ou ampliam generalizações já iniciadas? Ou continuam as aprendizagens práticas em desenvolvimento? Ou contribuem para ampliar conceitos e ensinar ao aluno o modelo de raciocínio da Análise do Comportamento? Provavelmente, o sistema universitário tem favorecido a que professores trabalhem isolados, produzam pouco em termos de integração de disciplinas dos cursos profissionalizantes e raramente exerçam a profissão ou prestem serviços de relevância social.

O salto entre pesquisa básica e pesquisa aplicada na Psicologia pode ser verificado, no exemplo dado, pela escassez de material bibliográfico disponível que relate tanto a prática da Terapia Comportamental quanto aos demais níveis de aplicação do conhecimento produzido na área.

Além disso, os poucos livros de Análise Comportamental Aplicada são, geralmente, muito diferentes daqueles de Psicologia, "lidos" anteriormente pelos alunos. A linguagem é técnica e os relatos da prática seguem geralmente o modelo de relato de pesquisas experimentais de laboratório. Em geral, esses relatos desvirtuam as práticas feitas, para que possam adequar-se, a posteriori, aos modelos de pesquisa e de relatos científicos. É importante ter consciência de que esta tentativa de encaixar a situação terapêutica num delineamento experimental ou quase experimental, pode ser uma "faca de dois gumes". Se, por um lado, tentamos preencher o contínuo entre pesquisa básica e aplicada, fornecendo uma aparência de coerência e continuidade, por outro, podemos estar simplificando e deixando de descrever variáveis importantes na determinação das mudanças do comportamento.

Assim, muitos terapeutas comportamentais deixam de apresentar contribuições relevantes, de ressaltar outros dados e outros níveis e tipos de análise, que são diferentes dos permitidos pelo modelo de relato de pesquisa em Análise Experimental do Comportamento, geralmente aceitos pela comunidade científica.

Neste ponto, merece discussão o fato de que o profissional de abordagem comportamental é levado, por sua formação, a ser objetivo e a apoiar-se em dados comprovados e em textos científicos, Estas tentativas são pertinentes,mas não podem impedir o desenvolvimento e o relato de modelos de intervenção e análise.

Os terapeutas comportamentais têm que ser, muitas vezes, verdadeiros malabaristas, tentando transformar os preconceitos e sentimentos negativos, principalmente em relação à Análise Experimental do Comportamento, em atitudes positivas que permitam a compreensão e o trabalho em Terapia Comportamental. Mais do que isso, têm que usar recursos seus e advindos da própria experiência em Terapia Comportamental (como a possibilidade de usar a relação professor-aluno como recurso de mudança), num esforço decisivo e solitário de fazer extrapolações entre Análise Experimental do Comportamento com animais em laboratório e Terapia com comportamento humano complexo. Ou, ainda, de ampliar os horizontes existentes sobre o que seja a Análise do Comportamento. Nem sempre existe respaldo de outros profissionais e pesquisadores de Análise de Comportamento, até esse momento.

Assim, fica mais fácil compreender porque o terapeuta comportamental começa a se distanciar do pesquisador e da atividade docente. O controle da audiência terapêutica, para os psicólogos comportamentais bem-sucedidos, tem sido muito mais poderoso, do que o controle (aversivo, diga-se de passagem) desenvolvido pela comunidade científica. Finalizando, todas considerações nasceram da experiência e reflexão sobre o ensino e a prática da Terapia Comportamental, entendida dentro do contexto da Análise Comportamental.

Parece, porém, que essa reflexão é uma preocupação, e é um fenômeno nacional, que denota uma pausa para avaliação da fase (anterior a que vivemos?) voltada para o desenvolvimento e implementação de técnicas comportamentais. Assim como denota, também, a ocorrência de uma reflexão sobre os limites, as possibilidades, a origem e a futura direção da Análise do Comportamento no País.

Pode-se dizer que é o momento de avaliarmos as verdades e as mentiras sobre uma determinada proposta de trabalho que pretendeu, numa tarefa arrojada, aplicar, em situações complexas, os princípios e as técnicas desenvolvidas em ambientes controlados ou em laboratórios de Análise Experimental do Comportamento.

Nessa tarefa, o terapeuta comportamental (assim como o psicólogo escolar e o psicólogo organizacional) sentiu na pele o salto entre a pesquisa básica e a pesquisa aplicada na Psicologia. Sentiu-se, muitas vezes, sem saber a quem recorrer, frente às suas dificuldades perante a magnitude e urgência dos problemas de seus pacientes. A partir do controle exercido por seus clientes e pelas conseqüências de sua atividade profissional, aprendeu, de forma peculiar, a associar aos princípios e técnicas advindos da Análise Experimental do Comportamento, várias formas de intervenção e propostas teóricas que, embora sem demonstração experimental, têm permitido avançar no trabalho de Terapia Comportamental.

A unidade do trabalho realizado tem sido mantida em torno do que se entende como Análise do Comportamento. Isto é, da possibilidade de entender e analisar o comportamento humano a partir das interações daquilo que o organismo faz com o ambiente em que faz.

Embora tenham se ampliado bastante, a prática da Terapia Comportamental e os resultados observados das intervenções não estão sendo suficientes para garantir o sucesso do ensino e do exercício da Terapia Comportamental. Parece que o terapeuta comportamental precisa comunicar suas descobertas de forma a socializar suas experiências, tornar possível um desenvolvimento cumulativo e tornar mais adequada e sistemática a crítica ao seu trabalho pela comunidade cientítica e profissional. Para isso, é necessário escrever. E escrever de uma forma que tudo isso se torne realidade. Talvez seja necessário descobrir e aprender a fazê-lo de forma e jeito novos.

É possível afirmar que as preocupações apresentadas neste texto são relevantes; que elas merecem discussão, e que se deve prosseguir no levantamento de alternativas, para promover o desenvolvimento da Terapia Comportamental.

É possível vislumbrar algumas alternativas de direção de encaminhamentos para a superação progressiva dos problemas apresentados, quais sejam:

1.  elaborar textos acessíveis que introduzam o aluno, gradualmente, na linguagem e no raciocínio científico da Análise do Comportamento;

2. desenvolver a relação entre professor e aluno como um instrumento de aprendizagem de habilidades e de informações;

3. estruturar práticas para o desenvolvimento de habilidades profissionais pelo aluno;

4. o professor deverá atuar como psicoterapeuta comportamental na comunidade e incluir o estagiário em seus trabalhos, sendo modelo de profissional para o aluno;

5.  o psicoterapeuta comportamental deve relatar sua prática profissional, os dados que encontra e as conclusões que constrói, às comunidades de profissionais, de estudantes e de cientistas;

6. os profissionais devem criar formas de relato para comunicar sua prática de terapia comportamental, da maneira como ela realmente ocorre e orientar seus estagiários para que façam o mesmo;

7.  a Associação Brasileira de Análise do Comportamento (ABAC) poderia desenvolver atividades que permitam a realização de debates sobre a formação dos psicólogos e sobre a integração do conhecimento no exercício profissional dos terapeutas comportamentais e de outros que trabalham como analistas do comportamento.

Os desafios são muitos e cada questão formulada pode se constituir em tarefa a ser desenvoldida para enfrentá-los. Parece útil, acima de tudo, criar condições para a integração de diferentes tipos de dados e experiências, de forma a permitir um crescimento bom, confortável e coletivo, junto com um serviço definitivamente significativo para a população.

 

 

* Trabalho originalmente apresentado na 38ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em julho de 1986.