SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 número2As diretrizes da Comissão de ÉticaO desenvolvimento individual, o contexto social e a prática de pesquisa índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.7 n.2 Brasília  1987

 

A favor do princípio, mas contra o encaminhamento

 

 

Odete de Godoy Pinheiro deu o seguinte depoimento:

"O que se discute na questão do paciente aidético é a ética profissional do psicólogo. Eu sempre me preocupei com o fato de o psicólogo, algumas vezes, se escorar no Código de Ética para se proteger e, assim, evitar mesmo tomar determinadas atitudes que se fazem necessárias. Nesse caso, o psicólogo fica recluso com seu cliente num mundo fora da realidade, fazendo um uso inadequado do Código de Ética.

Acho que o Código não pode ser um instrumento que afaste o profissional da realidade histórica como se tivesse uma ética tão própria que perde de vista as dimensões da realidade onde está exercendo a sua profissão.

No seu valor real, o Código deve legislar sobre as formas de atuar, considerando que as regras instituídas não são universais e nem eternas, mas devem ser sempre revistas porque os costumes e a realidade mudam historicamente.

O artigo 28 do Código de Ética (citado pelo editorial do CRP-06) coloca justamente a questão de que o compromisso com o cliente vai até certo ponto. Entretanto, a decisão sobre esse limite é de foro íntimo do psicólogo. A ética profissional não afirma que o psicólogo deve, mas, em determinadas situações, pode quebrar o sigilo. Assim, o Código não proíbe o psicólogo de 'denunciar' no caso de ele considerar correta esta atitude. Pelo que pude entender, o CRP-06 também deu esta interpretação em sua orientação aos psicólogos da nossa Região.

 

Uma preocupação de saúde pública

Uma das questões importantes enfrentadas pelo psicoterapeuta é a seguinte: o diagnóstico positivo de Aids é uma realidade comprovada ou o paciente está delirando? Esta questão é trabalhada de diferentes formas, de acordo com linhas teóricas e técnicas adotadas, sendo bastante discutidas entre os próprios psicólogos. Independentemente disso, imaginemos que exista a certeza de que o paciente aidético está contaminando os outros e,por isso,está representando um perigo para a sociedade.

Em primeiro lugar, reafirmo a posição do CRP-06 que, nesse caso, julga ser uma questão de saúde pública.

Por ser uma epidemia e por ser transmissível, sobretudo num tipo de relação que a sociedade tenta reprimir, a Aids extrapola a relação terapêutica e também passa a ser uma preocupação de saúde pública.

Para exemplificar um entendimento de saúde pública, cito o caso de uma rebelião de presidiárias que aconteceu há pouco tempo, em São Paulo. Elas fizeram uma chantagem: se as reivindicações delas não fossem atendidas, iam transmitir Aids nos carcereiros e nas pessoas que estavam indo ali. Elas tinham como armas a doença e a forma de contaminar, as quais foram usadas como uma manifestação agressiva e denunciadora da situação delas em relação à sociedade.

 

O risco de a entidade assumir a "denúncia"

No caso do psicólogo que decide denunciar, pode estar mostrando que está a favor da sociedade, mas também está sendo contra o seu cliente que agride essa sociedade. Com esta ou qualquer outra decisão adotada para resolver essa situação, o psicólogo está jogando com o social. A recomendação do CRP-06 é que este seja procurado pelo psicólogo. Eu discordo que esta (ou alguma outra) entidade seja um continente para encaminhar esse problema. Eu não sou contra o princípio adotoado pelo CRP-06, mas sou contra a forma de encaminhamento.

Queira ou não, o Conselho vai se transformar numa entidade policialesca, por mais que sejam boas as suas intenções. Até acredito que, na origem da proposta, exista uma visão clara dos limites profissionais do psicólogo, mas na hora que se torna veículo de qualquer tipo de medida de proteção aos não-clientes — eu não chamo isto de 'denúncia' —, então a entidade corre o risco de ficar ao lado dessa sociedade que é repressora. O CRP não está fora da sociedade, ele também é essa sociedade. Constato isso para nem falar da Secretaria de Saúde que desempenha o papel de polícia sanitária. A história da psiquiatria brasileira mostra, hoje, que, na década de 30, as entidades assumiram funções policialescas em nome de promover a higiene mental, que também é questão de saúde pública.

 

Quem está envolvido nessa situação?

Como eu concordo com o princípio adotado pelo CRP-06, se tivesse esgotado todos os recursos terapêuticos e continuando preocupada com o dilema, eu faria o que o Conselho recomenda. Só que não procuraria o CRP e nem a Secretaria de Saúde. Conversaria primeiro com o paciente e diria que iria procurar as pessoas mais próximas dele, envolvidas nessa situação. Depois, iria comunicar a estas pessoas o que está acontecendo com o paciente, dividindo com elas a responsabilidade. Agora, não vou poder fazer mais do que isso. Como o aidético está vivendo por aí quando não atingiu ainda a fase terminal, o psicólogo não vai saber o que e com quem ele faz ou deixa de fazer. Ninguém vai conseguir controlá-lo.

O problema da Aids é de educação e de saúde pública. Quando as pessoas tiverem as informações necessárias e tomarem consciência da dimensão do problema, elas vão adotar as devidas precauções. É uma epidemia como qualquer outra e, felizmente, já está começando a ser descaracterizada como um 'castigo dos céus'."