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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.7 n.2 Brasília  1987

 

LEITURA

 

As exigências do ato analítico

 

 

Marlene Guirado

Conselheira-presidente do CRP-06, professora no Instituto de Psicologia da USP, autora de A Criança e a Febem (Ed. Perspectiva), Instituição e Relações Afetivas (Summus Ed.) e Psicologia Institucional (Ed. Pedagógica e Universitária).

 

 

Instituição e Poder, de J.A. Guilhon Albuquerque, Edições Graal, 163p. Endereço da editora: Rua Hermenegildo de Barros, 31-A, CEP 20.241, Rio de Janeiro, RJ.

Instituição e Poder, um binômio que a uma primeira e desavisada escuta pode sugerir redundância... Ao mesmo tempo, dois nomes que Guilhon retira do "limbo" do senso comum e introduz no âmbito dos conceitos vitais no processo da análise das instituições, conduzindo o leitor por um atento e rigoroso caminho de produção científica.

Por que a resenha de um livro dessa natureza e de autoria de um cientista político numa revista de psicologia?

Por várias razões. Desde as mais previsíveis, como, por exemplo, que a Psicologia não se dá fora de um contexto político-institucional (inclusive o de consultório), até aquelas mais inéditas, como por exemplo, a maneira pela qual Guilhon conceitua análise, demonstrando o corte entre pensamento e realidade e, com isso, situando uma dimensão de nosso trabalho, para nós, psicólogos, que dizemos "lidar" com fantasias, com fatos psíquicos.

Muito embora Guilhon não esteja escrevendo diretamente para psicólogos, é, sem dúvida, este, um livro rico em seus mínimos detalhes para que se possa pensar a Psicologia enquanto ciência e enquanto profissão; para que se possa pensar uma especificidade do psicológico- o que deveria afastar a onipotência e atrair, no estabelecimento de limites, uma possibilidade de produção — atribuindo o estatuto de concreticidade às representações, às fantasias, aos fatos psíquicos.

Instituição e Poder, produzido como tese de Livre Docência (1977) recoloca o problema da pesquisa sociológica, trazendo para o seu interior o conceito de análise e, com isso, fazendo mover a questão epistemológica, da nomeação e da busca das essências das coisas e do conhecimento, para a de sua produção: análise como trabalho de desmontagem para remontagem do que é dado ao pensamento como único e coeso; análise, via de regra, como uma forma de (re)conhecimento do processo de constituição do objeto, já como objeto de pensamento; análise, inevitavelmente, como domínio sobre esse objeto, sem a "ilusão de que a colagem de todas as partes do conjunto reconstitui realmente o todo (...) sempre existe transformação, produção de um novo objeto, doravante dominado tanto na ordem das coisas como na ordem do pensamento (...) domínio efetivo exigindo que se saiba como funciona (...) A questão de saber como é por dentro comanda a destruição do objeto. Só se podem nomear as partes após a quebra e, contudo, é a imagem conhecida (reconhecida) do todo que comanda a montagem (...) Ou seja, é preciso que os princípios de análise sejam os princípios do modo de produção do objeto produzido/dominado. "(p.2).

Esse conceito de análise como reconstrução, de um lado, relativiza a idéia de um conhecimento da verdade das coisas no trabalho científico e, de outro, remete-nos àquilo que seria o saber construído em nossas práticas psicológicas, especialmente, naquelas que se aproximam da Psicanálise (ou, das psicanálises, para sermos mais precisos).

Deixando em suspenso a eterna pergunta se a Psicanálise tem ou não um caráter científico, deixando também em suspenso o que esta pergunta já reconhece com o termo "científico", e, deixando por fim em suspenso a discussão sobre a viabilidade dessa aproximação Psicologia/Psicanálise, podemos nos ater à indagação do que é o caráter analítico do trabalho psicológico. Partindo do que diz Guilhon, poderíamos pensar o trabalho (psic) analítico, em que se coloca a dimensão inconsciente como alvo, como tendo o alcance de desconstruir representações (inconscientes crivadas pelo desejo) para que se configure como estas se organizam e se desorganizam, naquilo que fala o cliente: o enunciado da maneira como ele, cliente, se "vê", se "percebe" nas relações que vive, seria o "tecido" para cortes e recortes analíticos. Este processo, entretanto, terá o limite de ser um recorte que se passa no "pensamento" do analista e do analisando enquanto falam e cujos efeitos no sujeito analisando procedem-se à revelia mesma do projeto muito freqüente do analista de atingir a verdade do inconsciente do cliente. Somos assim conduzidos a abandonar a onipotência da interpretação como o discurso de verdade formulado pelo "analista". E, mesmo que inevitavelmente "traídos" pelo desejo, somos conduzidos a significar o processo de análise como uma desconstrução/reconstrução que se dá no seio da magia de uma relação, a relação psicanalítica. A "verdade sobre" o inconsciente do cliente não estará mais - e nunca esteve — na reconstrução teórico-interpretativa que o analista lhe venha "anunciar".

É justamente esse efeito de anunciação da verdade na interpretação que se desmistifica, quando se concebe análise à maneira como Guilhon o faz.

Tomar dele o conceito de análise para falar do conceito de análise que permeia as práticas psicológicas que se dizem analíticas é, já, deslocar o objeto de pensamento particular que se coloca Guilhon: as práticas da ciência sociológica. Permito-me, no entanto, esse deslocamento na medida em que, enquanto conceito, o termo análise, destaca-se de suas referências específicas para se situar no âmbito de outras especificidades do saber. Sem por isso assemelhá-las, posso, com isso, pensá-las.

E, se este é um caminho que inevitavelmente me sinto tentada a fazer ao ler o texto de Guilhon, não é, entretanto, o único. Instituição e Poder é um convite a redimensionar o discurso sociológico e político sobre as instituições. Tendo como interlocutores, ora Althusser (e seu discurso sobre aparelhos ideológicos do Estado), ora Parsons (e seu discurso funcionalista), ora certos analistas institucionais (e sua pretensão de "analisar uma situação concreta de todos os pontos de vista ao mesmo tempo", p. 25), ora o próprio leitor (suas "teorias" explicativas do "social" e seu discurso prenhe de estereotipias pseudo-analíticas), Guilhon vai construindo um outro referente para compreender as instituições; vai configurando uma outra possibilidade de pensá-las e transformá-las em objeto teórico. Assim, a título de exemplo, desestabiliza a "certeza teórica" do leitor que, com Althusser, afirma que a escola é um aparelho ideológico do Estado. Tal afirmação estaria pulverizando a distinção entre o plano da realidade e o da teoria. "Deve-se dizer que, se se interpreta a escola como produtora de ideologia dominante, é pertinente analisá-la em termos de aparelho ideológico de Estado" (p. 23).

A escola ou outra instituição qualquer não é (tal coisa)... mas pode ser pensada a partir de determinados princípios de análise, como por exemplo, enquanto produtora de ideologia dominante. Fica, nesta formulação de Guilhon, denunciado o equívoco do "essencialismo" que atravessa, repetidas vezes, as produções e os discursos ditos científicos.

É assim que, quase obrigando-nos a um confronto com nosso próprio discurso sobre as instituições (ora mais, ora menos apoiado no de pensadores da sócio-política), o texto de Instituição e Poder nos conduz a uma outra ordem constitutiva do saber das ciências políticas; mais propriamente, conduz-nos a uma outra ordem constitutiva do saber sobre as instituições. Desta feita, e trocando em miúdos, ao nos dispormos à análise de uma instituição, é necessário, em princípio, admitirmos que sua apreensão é uma apreensão no pensamento e, como tal, já não mais se confunde com a realidade empírica da instituição — a primeira interdição básica exigida do ato analítico, segundo Guilhon. Mesmo na categoria de pensamento é necessário renunciar à tentação de tomá-la em toda a sua complexidade, e proceder à análise em níveis autônomos — a segunda interdição. As práticas institucionais serão, portanto, analisadas enquanto práticas ideológicas, políticas ou econômicas, isto é, no discurso e nos comportamentos de agentes institucionais serão focalizadas as representações dos processos sociais. Da mesma forma, se tomarmos as práticas institucionais enquanto práticas políticas e econômicas, configuraremos objetos e processos próprios. Se, no nível ideológico, tratava-se do efeito específico de reprodução imaginária das práticas, nestes últimos, trata-se dos efeitos de reprodução social e material, respectivamente. Para se atingir, finalmente, a análise concreta é necessário proceder à articulação das análises autônomas. É a terceira interdição básica.

É esse "jogo vivo" de interditos e de imagens (do analista, para ser fiel a Guilhon) que constitui o paciente trabalho de re-conhecimento das instituições concretas. Por ele, é possível re-constituir o "como" das produções políticas, ideológicas e econômicas das práticas institucionais.

Ao demonstrar esse "jogo", Guilhon tece, ainda, uma preciosa distinção entre o "empírico" e o "concreto", deixando claro que o concreto é o real do pesamento, daquilo a que visa a análise é que se configura como tal, como um trabalho que transforma, enquanto teoria, a realidade perdida nele para sempre, pela renúncia primeira da identificação realidade/ pensamento.

Ao utilizá-lo (o jogo vivo de interditos e imagens) na análise de "instituições totalitárias", Guilhon facilita a compreensão do leitor a respeito deste conjunto todo de idéias que poderia estar parecendo mais um exercício de abstração e retórica. Permite-nos, com isso, constatar a validade e a viabilidade de sua proposta: fazer da ciência das instituições, nada mais que o trabalho de pensá-las.

Instituição e Poder é um livro que não se pode ler apenas. Ele exige estudo. E um estudo que, posso garantir, brinda quem o faz com descobertas. Isto, pelo jeito "saboroso", pelo caráter indireto e até irônico com que, em alguns momentos, Guilhon critica as produções ditas científicas da sociologia e recoloca princípios marxistas da análise da realidade, desorganizando o mito do saber/verdade da ciência.

E, para nós, psicólogos, mais uma vez, Guilhon — que já contribuíra em "Metáforas da Desordem" e em seus escritos sobre a loucura e as instituições psiquiátricas, para que nos desentrássemos e pudéssemos ver o que fazemos, o que conhecemos e desconhecemos nesse trabalho — permite-nos redimensionar o que é objeto de nossas análises psicológicas/psicanalíticas e, com isto, é ocasião de uma epistemologia do saber que construímos em nosso fazer/representar a psicologia.