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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.8 n.1 Brasília  1988

 

Um momento de reflexão

 

 

Na condição de supervisora, Marisa Estela S. Tejera tece uma série de considerações, com caráter de auto-avaliação, sobre os dilemas de trabalhar no Projeto da Casa como um processo aberto que, por analogia, lembra os versos do poeta sobre o caminhante que faz caminho ao caminhar:

"Acontecendo é a sensação que nos percorre quando falamos no Projeto. Ele está acontecendo, está sendo possível, está delineando-se, enfim, nós o estamos vivendo ainda. E nesse sentido que não temos definições acabadas, teorizações definitivas, propostas estruturadas. A experiência nos aparece como uma vivência intensa, sempre nova, sempre imprevisível, que nos diz da irrupção. Os meninos são surpreendentes, no sentido amplo da palavra, do que 'surpreende', do que nos aprisiona e, ao mesmo tempo, mantém esse caráter constante de surpresa.

Muitas coisas têm sido reformuladas no Projeto, muito se repensou e se discutiu. O projeto inicial não é o mesmo, por diversas razões como, por exemplo, a dificuldade com as leis, com os horários, enfim, com tudo aquilo que pretendia guardar uma certa organização.

 

Avaliando algumas atividades

A musicoterapia não foi bem aceita pelo grupo. Nossa colega Ivana Maria F. Vieira nos diz que é preciso trabalhar de uma forma menos direcionada. São os meninos que demandam essa abordagem. Assim é possível integrá-los com o trabalho, com a proposta, criar um movimento. A musicoterapia se integra nas outras atividades e no cotidiano da Casa.

A mesma coisa aconteceu com a arte-terapia: de um momento de enrijecimento inicial à possibilidade de elaborar painéis, cenários, peças de teatro, enfim, são muitos os exemplos que teríamos para relatar e as discussões que poderíamos levantar. Queremos, porém, deixar claro que essa idéia de movimento é o que se impõe.

A Casa da Rua Ubá não é um lugar de permanência, não é um lugar de chegada. A trajetória dos meninos não acaba ali e, pelo menos, não é essa a nossa pretensão. Ela é, essencialmente, um lugar de trânsito, de passagem, de abertura para outros espaços.

Muitas determinantes têm atravessado nosso trabalho: a dificuldade de concretizar uma forma de geração de renda, as ambigüidades das respostas institucionais etc.

Podemos perguntar-nos o que torna possível concretizar um projeto. Aqui nos referimos, em primeiro lugar, à Febem. Somos uma equipe que, de uma forma provisória ou não, está vinculada a uma Instituição, mas nenhuma instituição é inteira. Ela tem porosidades, suas aberturas, que a tornam incentivadora e sabotadora ao mesmo tempo.

A análise institucional tem-nos ensinado que o mesmo lugar que possibilita é o que paralisa. Temos vivido isso muito claramente. Foram constantes, por exemplo, os enfrentamentos, os desentendimentos, os mal-entendidos entre a Casa da Rua Ubá e o CERT (Centro de Triagem da FEBEM). Podemos pensar que tudo é FEBEM, mas isso não é tão claro assim. O movimento das instituições não é linear, não é único, mas contraditório, seguindo caminhos que nos dizem do possível e impossível, ao mesmo tempo.

Sentimos a pressão da sociedade, do que está 'fora'. Nos passeios, as pessoas olhavam o grupo de uma forma desconfiada e receosa. Nas negativas dos proprietários quando se tentava alugar uma casa: se é para meninos de rua, não se aluga — era o que nos diziam.

É possível que tudo isso tenha contribuído para tornar-nos uma mini-comunidade que se autodefende, que se coloca contra algo, que pensa, ilusoriamente, que o inimigo está fora. Esta é uma das tantas questões que ficam para ser pensadas com mais rigor por parte de nosso grupo de técnicos.

Por sua vez, os meninos são um desafio constante. Nada do que era possível fazer em outras situações, com outros meninos, em outras escolas, era possível fazer na Casa, Tudo precisava ser reformulado constantemente: a forma de aproximação, as estratégias de trabalho, as técnicas de alfabetização, as práticas pedagógicas. Parece que nada do que era conhecido antes podia ser pensado como referência.

Não obstante, nesse aparente caos, algumas coisas se delineavam e se marcavam com uma significação especial na Casa. A Assembléia, por exemplo, tornava-se um momento comunitário de trabalho de todos, de discussão e de reflexão acerca do dia-a-dia, enfim, um espaço privilegiado em que se pensavam as questões que inquietavam a mini comunidade. Julgávamos que a Casa tinha nela uma forma peculiar de tornar coletivos os conteúdos, as vivências pessoais. A Assembléia nos mostrava que ela acontecia de uma forma nova, inesperada para nós, mas configurada como um espaço singular de convivência.

Permanecem grandes interrogações: trata-se de caminhar por algumas estradas já abandonadas, outras jamais percorridas, para chegar a um ponto que ainda desconhecemos."

 

 

Todos os relatos foram extraídos do livro Um tiro de amor para todos vocês. Aos interessados, maiores informações podem ser obtidas pelo telefone (031) 463-0888, ramal 192, em Belo Horizonte, MG.