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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.8 no.1 Brasília  1988

 

Psicologia hoje: uma análise do que-fazer psicológico

 

 

Marisa Faermann Eizirik

Professora na Faculdade de Educação da UFRS

 

 

Gostaria de iniciar lendo alguns trechos do poema de Brecht, AOS QUE VÃO NASCER

"Realmente, eu vivo num tempo sombrio. A inocente palavra é um despropósito. Uma fronte sem ruga denota insensibilidade. (...) Eu gostaria bem de ser um sábio. Nos velhos livros consta o que é sabedoria: manter-se longe das lidas do mundo e o tempo breve deixar correr sem medo. Também saber passar sem violência, pagar o mal com o bem, os próprios desejos não realizar, e sim esquecer, conta-se como sabedoria. Não posso nada disso: realmente eu vivo num tempo sombrio! (...) Às cidades cheguei em tempo de desordem, com a fome imperando. Junto aos homens cheguei em tempo de tumulto e me rebelei com eles. Assim passou-se o tempo que sobre a terra me foi concedido. (...) Vós, que vireis na crista da maré em que nos afogamos, pensai, quando falardes em nossas fraquezas, também no tempo sombrio a que escapastes. Vínhamos nós mudando de país mais do que de sapatos, em meio às lutas de classes, desesperados, enquanto apenas injustiça havia e revolta nenhuma. E entretanto sabíamos: também o ódio à baixeza endurece as feições, também a raiva contra a injustiça torna mais rouca a voz. Ah, e nós, que pretendíamos preparar o terreno para a amizade, nem bons amigos nós mesmos pudemos ser. Mas vós, quando chegar a ocasião de ser o homem um parceiro para o homem, pensai em nós com simpatia."

Esta poesia de Brecht (1966-p. 91-3) traduz um sentimento que me tem acompanhado já há algum tempo, quando me deparo com um momento histórico e social muito difícil. Várias experiências, leituras e discussões a respeito do papel da Psicologia nesse contexto despertaram o meu interesse em aprofundar esse assunto.

A oportunidade de fazer esse trabalho, a convite da Sociedade de Psicologia, à qual eu gostaria de agradecer nesse momento, permitiu que eu desenvolvesse um pouco esse tema.

Um dos aspectos mais provocantes para mim era a constatação de que havia uma crise da Psicologia, especialmente em termos de credibilidade, acompanhada de referências de que essa estava em baixa, e agora a Sociologia estava em alta. "Tínhamos que agüentar, pois tínhamos estado na moda durante muitos anos".

Procurando pistas, para entender melhor esse fenômeno, encontrei, em certos momentos, alguns autores e obras excepcionais, que vão servir de suporte para esse diálogo que pretendo estabelecer com vocês.

O título — Psicologia hoje: uma análise histórica, filosófica e social do que-fazer psicológico — significa apenas uma tentativa de sintetizar as inquietações e buscas que venho fazendo. Venho procurando encontrar em outras fontes algumas explicações para esta crise que vive a Psicologia em tempos sombrios.

Esses tempos sombrios, tão bem assinalados por Hanna Arendt (1987, p. 7-8) que toma emprestado o termo de Brecht e analisa a vida de várias pessoas importantes, no modo de viverem as suas vidas dentro de um momento histórico, e por ele afetadas. Ela nos diz: "Tudo era suficientemente real na medida em que ocorreu publicamente; nada havia de secreto ou misterioso sobre isso. E no entanto não era em absoluto visível para todos, nem foi tão fácil percebê-lo; pois no momento mesmo em que a catástrofe surpreendeu a tudo e a todos, foi recoberta, não por realidades, mas pela fala e pela algaravia de duplo sentido, muitíssimo eficiente, de praticamente todos os representantes oficiais que, sem interrupção e em muitas variantes engenhosas, explicavam os fatos desagradáveis e justificavam as preocupações".

A catástrofe a que Arendt se refere é a 2ª Guerra Mundial, e é importante que não esqueçamos que ela ocorreu nesse século, bem como a 1ª. Temos vivido sempre, ao longo da história da humanidade, em guerras, algumas atingindo proporções que extrapolam a imaginação. Todavia, até que ponto somos capazes de perceber o que está acontecendo conosco? Até que ponto sabemos? Até que ponto queremos, saber? Até que ponto não sabemos apenas o que é desejável, dominados que somos pelos instrumentos de mídia, pelos mais diversos interesses que movem e conduzem o sistema informacional?

Temos muitas perguntas. Estamos confusos e desorientados, pois quanto maior e mais eficiente a comunicação de massa e a velocidade da informação, menos capacidade nós temos de refletir sobre a nossa realidade.

Dentro desse quadro, onde se situa a Psicologia? Como ela se encontra dentro de um sistema maior, vivendo um momento histórico? Essas perguntas são desafiadoras e instigam à reflexão: se por um lado nós temos praticado uma psicologia, e nessa prática temos sido tecnicistas e pragmáticos, envolvidos na produção de um conhecimento para uso imediato, por outro lado isso faz perder todo um sentido mais global de cultura, de pensamento vinculado à realidade e crítico, em que possamos nos perguntar: a quem estamos servindo? Para quê? Qual está sendo a nossa contribuição? Que sistema de pensamento ou ideologia conduz a nossa ação?

É bem provável que não se encontrem essas respostas, por que elas talvez não existam, são muito mais fachos de luz que iluminam um caminho, que conduzem uma procura, e cada um constrói a sua caminhada; assim como cada grupo também o faz. Creio que a Psicologia, como ciência e como profissão, caiu num reducionismo que — ao contrário do sociológico, que se encontra com grande respaldo nos dias atuais — a alienou dos grandes problemas que vive o País e a América Latina. Todo o reducionismo é perigoso, e eu acredito que a crise que se vive hoje é uma crise de fechamento. Este apequena-a, reduz o âmbito de compreensão. Ele é dogmático. O reducionismo psicológico é perigoso também, porque à medida que ele isola, ele não fecha só para fora, impedindo a crítica de chegar; ele fecha para dentro, e impede o crescimento interno, rico, arejado, capaz de discutir e tolerar diferenças, se deixando convulsionar pelos contrários.

O distanciamento entre ciência e política, tão enfatizado desde o predomínio do modelo positivista de ciência, e reforçado pelos movimentos de força e repressão, atingiu de modo profundo a Psicologia. Esta, ciência incipiente ou com aspirações a sê-lo, seguiu à risca a determinação e traçou um círculo em volta de si mesma que, tendo como objetivo preservá-la de contágios espúrios, teve como resultante sufocá-la, apequená-la de tal modo que atingiu um ponto crítico nos dias de hoje. Situada em um circulo fechado, com pouquíssimas frestas para respiração e circulação de ar, debate-se hoje a Psicologia — e nós, psicólogos brasileiros — sobre o futuro e sobre o presente: Ciência ou Profissão? Ciência? Profissão? Será que existe essa divisão? Não será uma dicotomia decorrente de outras, anteriores e mais profundas?

Os conhecimentos separados, as disciplinas estanques, a superespecialização, a redução à quantificação, o espaço que distancia as ciências naturais das ciências humanas, se constituem em verdadeiro quebra-cabeça, porém faltam peças (...) partes essenciais que se situam no conteúdo e no significado, quando a ciência é capaz de refletir sobre si mesma. De acordo com Morin (1986, p. 79) "a ciência triunfa e está em crise ao mesmo tempo. Não é mais a Ciência-Verdade absoluta, a Ciência-Solução, a Ciência-Farol, a Ciência-Guia do fim do século passado. E a Ciência-Problema. Contudo, nessa mesma crise, forma-se e forja-se um conhecimento que deseja ser adequado à complexidade do real cujo problema central é elaborar os paradigmas necessários para pensar a complexidade".

E as ciências humanas, mais do que quaisquer outras, lidam com o que de mais complexo existe: homem-mundo-sociedade; vida-destino-liberdade.

Ao que parece, a Psicologia nem sempre se deteve na delicadeza e na fecundidade de seu campo de ação, deixando de lado os sentimentos, enquanto ciência, esteve preocupada mais com fatos objetivos para medi-los e quantificá-los. Kirkegaard (s/d, p. 93) desenvolve a reflexão sobre a paixão, dizendo:

"As conclusões da paixão são as únicas que merecem fé, as únicas provas. Por felicidade, a vida é mais fiel e piedosa do que dizem os sábios, pois não exclui quem quer que seja, mesmo os humildes; e não ilude seja quem for pois, no mundo espiritual, apenas é iludido quem a si mesmo se ilude".

Paixão e emoção, características tão fundamentais dos seres humanos, estiveram fora da pesquisa, isoladas do conhecimento considerado científico.

Esta não foi, todavia, uma atitude somente da Psicologia; o paradigma predominante das ciências que queriam ser entendidas como tal rezava por esta cartilha. Presenciamos agora uma crise de paradigmas. O que é um paradigma? Como é essa crise?

 

Crise de paradigmas

Paradigma, segundo Kuhn (1970), é o mais descritivo dos enfoques organizados da ciência, o qual é aceito e serve de modelo para os membros de um grupo ou comunidade que com ele se identificam. Como um modelo conceituai, o paradigma pressupõe um treinamento específico, acompanhado de uma visão comum dos problemas centrais de sua ciência, bem como de métodos que melhor abordam o fenômeno que estudam.

O esforço por conhecer e a busca da verdade são as mais fortes razões para a investigação científica.Todavia, nos alerta Popper (1972, p.306-8), "não sabemos: só podemos conjecturar. Nossas conjecturas são orientadas por fé não científica, metafísica, em leis e regularidades que podemos desvelar, descobrir (...). O velho ideal científico de episteme — do conhecimento absolutamente certo, demonstrável — mostrou não passar de um ídolo'. A exigência de objetividade científica torna inevitável que todo enunciado científico permaneça provisório para sempre (...). Com a queda do ídolo da certeza, tomba uma das defesas do obscurantismo que barra o caminho do avanço da ciência. Com efeito, a idolatria desse ídolo afeta não apenas a temeridade de nossas questões, mas também o rigor e a integridade de nossos testes. A visão errônea da ciência se trai a si mesma na ânsia de estar correta, pois não é a posse do conhecimento, da verdade irrefutável, que faz o homem de ciência — o que o faz é a persistente e arrojada procura crítica da verdade."

O grande ensinamento de Popper foi de mostrar que a maior qualidade de uma teoria científica não era o seu caráter de verdade definitiva, mas a sua possibilidade de refutabilidade.

Essa disjunção entre verdade e falsidade tem acompanhado o fazer científico, assim como as oposições entre ciência e filosofia, materialismo e idealismo, racionalismo e irracionalismo, fato e valor, desde o século XVIII. Somente agora se observa o declínio dessa disjunção.

Dentro das ciências, o paradigma predominante provocou a redução do complexo ao simples, do global ao elementar, da organização à ordem, da qualidade à quantidade, ao destacar fenômenos e transformá-los em objetos isolados de seu contexto e separados do sujeito que os percebe.

Falando a respeito de paradigmas, Morin (op. cit., p. 76) considera-os como princípios de "distinções/ligações/oposições fundamentais entre algumas noções mestras que comandam e controlam o pensamento, isto é, a constituição das teorias e a produção dos discursos. Assim, se abordarmos a relação fundamental natureza/cultura ou animal/homem, há um paradigma de conjunção que situa a cultura na natureza e insere a humanidade na animalidade, e todos os diversos discursos produzidos a partir desse paradigma se esforçarão para reconhecer a ligação entre o humano e o natural. Há, inversamente, um paradigma de disjunção que opõe natureza e cultura, humanidade e animalidade, e todos os discursos produzidos a partir desse paradigma verão o homem como estranho e superior à natureza".

A Psicologia não podia se manter fora dessa dicotomia conjuntural, abrangente e, na medida em que desejava atingir o status de ciência, precisava também buscar o objetivo, o mensurável, acompanhando o modelo maior que predominava na comunidade científica. Um marco nessa trajetória é a criação do primeiro Laboratório de Psicologia, por Wundt, em Leipzig, no ano de 1879 (Mueller, 1978, p. 272; Sahakian, 1970, p. 520), quando se caracteriza o nascimento da Psicologia como ciência. Buscando modelos das ciências naturais e neles se apoiando para garantir o status conquistado, a Psicologia praticamente negou e se afastou de suas raízes filosóficas e, assim o fazendo, se distanciou também do homem e da realidade. Buscando testar hipóteses e estabelecer relações causais entre eventos, em condições de laboratório cuidadosamente controladas, a Psicologia se colocou — tal qual Platão (1965, p. 35) descreve no Mito da Caverna, em que os homens estavam colocados de costas para o mundo real, observando as sombras na parede e ouvindo os ecos distorcidos de suas vozes — de costas para o mundo externo, observando não vida, mas somas de dados e resultados de computador. "Pode haver um tempo para olhar as sombras — diz McGuire (1973, p. 453) — mas não a exclusão do fato real."

Essa atitude científica acompanhava todo um movimento que definia os critérios de ciência, que foi o positivismo e o neo-positivismo.

Nós não podemos de forma nenhuma dissociar esse momento científico-histórico e cultural de suas influências e reflexos em todas as áreas. E não se trata, de forma alguma, de tecer aqui críticas a esse modelo e escolher um outro para colocar em seu lugar. Não se trata de dizer que o paradigma positivista é ruim, não serve, e procurar um outro que dê todas as respostas, por exemplo, o paradigma marxista, fenomenológico, ou existencial, considerando que um desses possa ser o mais perfeito, e explique todas as coisas.

Se nós fazemos isso, estamos sempre caindo no mesmo erro reducionista. Acredito que a crise de paradigmas é exatamente porque um tem que ser melhor do que o outro, porque uma teoria tem que provar mais do que a outra, porque uma se diz dona da verdade e a outra, falsa, porque o rótulo define teorias e autores em direita e esquerda, como se se pudesse usar uma régua e dividir idéias, pessoas e sentimentos de forma tão simplista e linear.

Parece que estamos sempre querendo provar que temos a Verdade, ou um pouco mais de verdade do que o outro, e se formos refletir sobre isso veremos que essa atitude é muito mais religiosa do que científica. Conviver com a idéia de que não existe uma única verdade, e que todos os métodos e teorias são necessários para o desenvolvimento do conhecimento, dependendo dos objetivos que se deseja alcançar e dos pressupostos teóricos que suportam a investigação ou a prática, talvez pudesse nos tornar mais humildes.

Para muitos esse tipo de raciocínio poderia ser chamado de eclético, não posicionado; esse é um risco, porém é necessário assinalar que também existem sérios riscos no dogmatismo, dos quais já falamos um pouco, ao comentarmos acerca dos reducionismos.

Quando falávamos do afastamento da Psicologia de suas raízes filosóficas, de certa forma estava implícito o caráter específico da filosofia, que é o de ser eminentemente crítica, e o do filósofo de estar sempre inquieto, procurando compreender o sentido da existência. Merleau-Ponty (1986, p.ll), ao realizar o seu famoso discurso — Elogio da Filosofia —, diz que " ... o que caracteriza o filósofo é o movimento que leva incessantemente do saber à ignorância, da ignorância ao saber, e um certo repouso nesse movimento ... ".

O quanto isso incomoda? Será que já paramos para pensar? Esse ir e vir, constante, de busca e de procura? Essa crítica aguda, permanente, que alfineta a certeza, e precisa ser sufocada, muitas vezes a preços altíssimos para a dignidade humana; e temos aí, se não quisermos ver perto, há séculos, o exemplo de Sócrates, que desafiava todo um sistema social e foi morto, para ser calado, para silenciar.

Novamente é Merleau-Ponty quem nos diz:

"Há razão para temer que também o nosso tempo rejeite o filósofo em si próprio e que, mais uma vez, a filosofia seja apenas nuvens. Pois, filosofar é procurar, é afirmar que há algo a ver e a dizer. Ora, hoje, quase não se procura. 'Regressa-se', 'defende-se' uma ou outra tradição. As nossas convicções fundam-se menos sobre valores ou verdades descobertas do

que sobre os vícios e os erros que detestamos. Gostamos de poucas coisas, mas detestamos muitas. O nosso pensamento é um pensamento aposentado ou enrugado. Todos expiam a sua juventude. Esta decadência está de acordo com o processo da nossa história. Passado um certo ponto de tensão, as idéias deixam de proliferar e de viver, caem no plano das justificações e dos pretextos, tornam-se relíquias, pontos de honra, e aquilo a que pomposamente chamamos o movimento das idéias reduz-se ao conjunto das nostalgias, dos nossos rancores, dos nossos acanhamentos, das nossas fobias. Neste mundo em que a negação e as paixões mal-humoradas ocupam o lugar de certezas, não se procura fundamentalmente ver, e a filosofia, porque pretende ver, é tida como impiedade" (Merleau-Ponty, 1986, p.55-6).

Essa necessidade de regressar e defender parece marcar toda uma postura frente ao conhecimento, ao invés de uma outra, talvez mais fecunda, porém mais difícil, que seria a de procurar, de querer ver, de querer saber, de conviver com as dúvidas.

Ao procurar analisar a crise de paradigmas, torna-se necessário trazer essa reflexão para mais perto: aqui no Brasil, o que aconteceu? Como se deu essa dissociação, e por que vive hoje a Psicologia momentos tão difíceis?

Penso que todos os aspectos levantados até agora nos ajudam a fazer essa aproximação, uma vez que entendemos o processo histórico e social como global e contigente a toda a realidade vivida.

As relações da Psicologia com as outras ciências, mais conhecidas como humanidades, no Brasil, não eram diferentes do resto do mundo; portanto, havia uma separação entre saberes e competências.

Com o golpe militar de 1964 e o fortalecimento do regime autoritário, acontece por decreto o fim das humanidades que, com a reforma do ensino, saem dos currículos de 1º e 2º graus, que se tornam profissionalizantes.

Sobre esses acontecimentos, Rouanet (1987, p. 307) assinala: "(...) com o fim das humanidades acabou, também, em grande parte, o pensamento crítico. O fim da filosofia significou o fim de toda uma prática de reflexão questionadora que bem ou mal tinha se iniciado nos anos 60. O fim da história significou o fim de um estilo de pensamento que vê o presente como fluxo e, portanto, como algo transformável. O fim da literatura significou o empobrecimento do imaginário, que não podia mais fantasiar um futuro situado além do existente. O fim do latim e do francês significou o fim de instrumentos que com todos os defeitos do ensino tradicional comportavam perspectivas de evasão e transcendência: fuga temporal em direção ao nosso passado cultural mais remoto, ou fuga espacial em direção a outro universo que não o da cultura anglo-saxônica dominante".

E o que aconteceu com a Psicologia? Do alto do seu status científico ignorou esses acontecimentos, apoiada em teorias e métodos, se julgou preservada, desenvolvendo toda uma atitude que foi se cristalizando como neutra, apolítica, asséptica, acrítica. Procurava-se desenvolver tecnologias, recursos humanos, técnicas e estratégias para os mais diferentes assuntos e fins. É claro que isso é e era válido, porém onde estava o pensamento crítico em tudo isso? Onde estava o contato com a realidade, especialmente a realidade de um país subdesenvolvido e com graves problemas sociais?

Juntando essas casualidades, o que se observa é que a Psicologia hoje — como disciplina, como área, como teoria — recebe o rótulo de ser da direita, e de ter servido ao regime autoritário. Enquanto isto, a Sociologia e a Filosofia renascem e crescem como sendo críticas e de oposição à direita.

Já vimos isso acontecer na França, em 1968, que em meio ao amplo movimento revolucionário estudantil elegia "os psis" (psiquiatras, psicólogos, psicanalistas), como profissionais ligados à polícia e à opressão. Se houve tais casos, não podemos de forma alguma permitir a sua generalização, pois estaríamos abrindo espaço para uma onde de irracionalismo que quase sempre caminha ao lado do fascismo. E este, é bom que lembremos, é sempre destrutivo, corrosivo, ameaçador à liberdade, seja de direita, seja de esquerda, como o que estamos presenciando crescer em alguns setores e segmentos do País.

É claro que as coisas não acontecem por acaso, e eu acredito que esse rótulo que hoje atinge a Psicologia não se construiu no nada, mas que houve, até por omissão, uma participação nossa nessa situação, cabendo uma reflexão aprofundada e revitalizadora de nosso pensamento e de nossa ação. Talvez encontremos, nesse processo, não uma saída para a problemática que estamos discutindo, mas uma entrada, para tentar penetrá-la na sua profundidade.

Não é possível seguir adiante sem entrar no aspecto ideológico e perceber a força que este tem na criação e na manutenção de paradigmas. Sabemos o que é e o que significa ideologia?

 

Ideologia: funções e contradições.

Para examinar a questão da ideologia poderíamos usar várias abordagens, como por exemplo a de Guattari (1986) que prefere falar em subjetivação, em produção da subjetividade, como uma energia mais essencial até do que a do petróleo, e cujo registro estaria "no coração dos homens, em sua maneira de perceber o mundo (...)", ou o enfoque de Chauí (1984) que considera ideologia o ocultamente da realidade social, e por intermédio da qual ocorreria a legitimação da dominação e da exploração. Faz uma análise do processo ideológico a partir de uma concepção marxista de ideologia.

Como esse é um assunto complexo e admite uma variação ilimitada de análises, eu prefiro utilizar o estudo feito por Paul Ricoeur (1983) sobre interpretação e ideologias. Partindo de uma análise rigorosa da vontade humana, vai em busca do significado, oculto nos sentidos aparentes, buscando a desmistificação da neutralidade e criticando o pensamento que divide ciência e ideologia. O autor considera, nessa questão, múltiplas armadilhas a que o tema da ideologia pode lançar, e assinala dois tipos delas: a primeira armadilha (1983, p.64) "consiste em aceitarmos como evidente uma análise em termos de classes sociais. Isso nos parece hoje natural, tão forte é a marca do marxismo sobre o problema da ideologia, muito embora tenha sido Napoleão quem, pela primeira vez, fez desse termo uma arma de combate (o que, (...) talvez não devaser definitivamente esquecido). (...) Ora, aquilo de que precisamos em nossos dias, é de um pensamento livre com referência a toda a operação de intimidação exercida por alguns, de um pensamento que tivesse a audácia e a capacidade de cruzar Marx, sem segui-lo nem tampouco combatê-lo."

Todavia, enfatiza o autor, é preciso evitar também uma segunda armadilha, "que consiste em definir inicialmente a ideologia por sua função de justificação, não somente dos interesses de uma classe, mas de uma classe dominante".

Procurando "cruzar" o marxismo e superar a concepção ideológica como justificativa de uma classe dominante, Ricoeur analisa as funções da ideologia, caracterizando especialmente as funções de dominação e de deformação. Com relação à primeira, quer significar a associação entre poder de decisão e manutenção da ideologia, que a legitima; com relação à segunda função, de deformação, indica a distorção que sofre o real, ao procurar manter determinadas racionalizações e conhecimentos a qualquer preço, e para isso não abrindo espaço para idéias que venham a desconfirmar o que é reconhecido como verdade.

O que nos interessa aqui, mais especificamente, é a discussão sobre ciência e ideologia, e de que modo elas se interpenetram. Afirmando que não existe um lugar não-ideológico, declara que também o cientista está preso a uma ideologia, circunstanciado por um tempo, um momento histórico, um sistema político e econômico, com o qual tem profundas raízes.

Esse existir circunstanciado é essencial para o nosso conhecimento, pois recebemos e filtramos as informações, através de um complexo sistema percepto-cognitivo-afetivo, e é importante que possamos perceber que tanto a produção do conhecimento — através dos autores e teorias que utilizamos — como a nossa práxis, são também circunstanciais e influenciadas por nossa visão de mundo, nosso sistema de pensamento ou ideologia.

A partir da análise das funções da ideologia, Ricoeur (op. cit.) faz uma crítica das ideologias enfatizando a necessidade de uma hermenêutica crítica, dizendo: "O gesto da hermenêutica é um gesto humilde de reconhecimento das condições históricas a que está submetida toda compreensão humana sob o regime da finitude. O da crítica das ideologias é um gesto altivo de desafio, dirigido contra as distorções da comunicação humana. Pelo primeiro (da hermenêutica), insirome no devir histórico ao qual estou consciente de pertencer; pelo segundo (da crítica), oponho ao estado atual da comunicação humana falsificada a idéia de uma libertação da palavra, de uma libertação essencialmente política, guiada pela idéia limite da comunicação sem limite e sem entrave" (p. 131).

Juntando hermenêutica e crítica, Ricoeur propõe uma volta ao fundamento, ao significado, mas exercendo ativa e continuamente uma função crítica renovadora.

Ao final, o autor estuda os novos conflitos que surgem em nossa sociedade, mostrando que existem dois anteparos ideológicos na base das motivações, que são: a ideologia da conciliação a todo o preço e a ideologia do conflito a todo o preço, e propõe uma réplica à ideologia: por uma nova estratégia do conflito. Considerando a ideologia como uma esquematização imposta pela força aos fatos, diz que a réplica à ideologia deve ser ao mesmo tempo empírica, teórica e prática.

Isto significa que precisamos "ter o espírito mais flexível", aberto, capaz de estar atento às formas antigas e novas do conflito, distinguindo razões e verdades subjacentes; significa, também, a necessidade de uma reflexão fundamental sobre o conflito e sua razão; com relação à réplica prática, Ricoeur (op.cit.) ressalta o "bom uso das ações de ruptura, simbólicas ou não, violentas ou não", afirmando a necessidade de "mediadores sociais", "que não procurem conciliar a todo o preço, nem tampouco polarizar a todo o preço, mas que ajudem cada indivíduo a reconhecer seu adversário" (p.170).

Essa idéia-chave: ajudar cada indivíduo a reconhecer seu adversário merece uma reflexão, pois nos coloca frente a uma realidade inquestionável: somos sujeitos à persuasão e estamos influenciando continuamente aqueles que convivem conosco, em nossa prática — no ensino, na instituição, nos diferentes tipos de atendimentos, na pesquisa, e até mesmo no modo como absorvemos as teorias que fundamentam nossa prática; mais ainda, o quanto nos damos conta da ideologia que está embutida nessas teorias?

Reconhecer o funcionamento da ideologia e sua influência na construção e manutenção de paradigmas é sumamente importante, na medida em que deixamos de ser reprodutores de um conhecimento, e passamos a fazer uma leitura crítica, tanto da teoria como da prática.

Creio que nesse momento é possível observar os cruzamentos entre teorias, paradigmas e ideologias, no seu dinamismo e na força das relações que os interpenetram.

Dessa análise podemos extrair conceitos fundamentais que ajudam a explicar, sob alguns ângulos, as dicotomias que têm ocorrido ao longo da História da Psicologia, desde a noção de alma entre os gregos (Psyquê) e o dualismo com o corpo, até as grandes disjunções de palavras, como direita/esquerda, democracia/ditadura, marxismo/capitalismo, que afetam substancialmente os modelos ou paradigmas que alimentam a Psicologia, e a nós, psicólogos. Essa explicação entra na própria razão do existir psicológico dentro de uma realidade histórica e social, e, portanto, comprometida. Desde o momento em que se analisa a crise de paradigmas e se observa o crescimento de uma corrente mais qualitativa e que visualiza a Psicologia como Ciência Humana, porém ciência, é possível verificar a importância do sujeito que investiga, ou que pratica uma determinada ação profissional.

Sem desmerecer de modo algum os vários modelos de ciência, e acreditando que todos têm a sua utilidade e razão de existir, defendo a não neutralidade da ciência e a necessária inclusão da pessoa, do sujeito que vê, observa, sente, ouve, avalia, estuda, interpreta, sem cair no subjetivismo, porém não mascarando a natural subjetividade do existir humano.

Retomando o núcleo dos assuntos abordados até agora, cujo ponto fundamental está na crise por que passa a Psicologia hoje, e as várias dicotomias que fragmentam sua teoria e sua prática, alguns pontos se sobressaem: as lutas entre paradigmas, a influência da ideologia, a Ciência como Problema em um país subdesenvolvido, com graves problemas sociais.

O quanto esse conhecimento pode nos ajudar a refletir sobre o nosso que — fazer psicológico? A essa altura já podemos observar o quanto ele está condicionado a toda uma construção de sistema social, inserido num devir histórico. É preciso que analisemos o quanto estamos conscientemente fazendo parte de um processo, ou o quanto o estamos fazendo sem disso nos aperceber. Penso que a hora é difícil e não é possível fugir. A realidade que nos cerca está a chamar por uma ação efetiva dos psicólogos; isso não significa que todos tenham que fazer a mesma coisa, ir para a periferia, trabalhar com os pobres em vilas, o que estaria mais próximo do populismo do que de uma ação de ajuda e participação. Essa pode ocorrer nos mais diferentes níveis: na pesquisa, no ensino, no trabalho em instituições, nas clínicas, nas empresas, nos sindicatos. Não é o lugar que define a postura de um profissional — embora nem todos pensem assim — é antes a capacidade de refletir criticamente sobre teorias, métodos e práticas, avaliando resultados e pensando acerca das necessidades do País em que nos encontramos. É conseguir desenvolver um pensamento que se volte para essa realidade, mas que provenha de um grupo profissional que se constrói junto, que examina os seus conflitos corajosamente, que luta pela dignidade de seus salários como forma de realizar um trabalho também digno.

É necessário, também, revisar os currículos que formam psicólogos, inserindo teoria e prática de forma mais conjunta, bem como um saber crítico, revisando as divisões simplificadas que existem atualmente — Saúde, Educação e Trabalho — de forma a abrir espaços para abrigar novas tendências que já estão se desenvolvendo em outros lugares, tanto em termos de Brasil como de América Latina.

Como exemplo, é possível referir alguns pontos que se destacaram no XXII Congresso Interamericano de Psicologia, realizado em Havana, de 28.06 a 03.07.1987, ao qual compareceram cerca de 2.000 psicólogos de 33 países.

Dentre os temas que se desenvolveram no evento, era possível encontrar os mais tradicionais e os mais inovadores, como Psicologia Ambiental — onde os autores refletiam sobre os riscos de uma guerra nuclear e a luta pela paz — Stress, Psicoballet, Psicologia Desportiva, Psicologia da Mulher, da Velhice, da Família, e também a Psicologia Política, preocupada com consciência, ideologia e mudança social.

Cada um desses temas poderia ser desdobrado em vários outros, porém o que transparece é a tentativa dos psicólogos de abrir novos campos, atendendo às necessidades que percebem nas diferentes realidades em que vivem.

Outro aspecto do Congresso, que se constituiu em fator altamente educativo, foi o extremo respeito que mereceram todas as tendências, que tinham os mesmos espaços, permitindo que todos os interessados pudessem se beneficiar igualmente, sem a censura do que é considerado certo e do que é considerado errado. Essa experiência pode servir para que pensemos sobre o quanto, em muitos momentos, somos capazes de ter um espírito científico, estando abertos às diferenças; ou o quanto somos religiosos em nossas convicções, só ouvindo e apoiando àqueles que pensam igual a nós, para, dessa forma, confirmar nossas certezas e, quem sabe, impedindo excelentes oportunidades de crescimento e renovação.

Quem sabe poderemos pensar sobre os tempos sombrios em que estamos vivendo, e em que trocamos não de país mas de modas, mais do que de sapatos, e pensando nas injustiças, nas insensibilidades, possamos desejar um novo tempo; e que as novas gerações, ao pensar em nós, o façam com simpatia, apesar de não termos conseguido preparar o terreno para a amizade, nem que o homem fosse parceiro do homem.

Talvez esse seja um sonho, uma utopia, mas não são esses que movem os homens, na ânsia de sair do cotidiano e buscar no imaginário forças e reservas para continuar? Não será esse o fluxo da história, construído sobre sonhos e utopias, sucessos e fracassos, fatos e ilusões?

Quem sabe podemos dizer, como Arendt (1987, p. 9) "(...) que mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos de teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e freqüentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra (...). Olhos tão habituados às sombras, como os nossos, dificilmente conseguirão dizer se sua luz era a luz de uma vela ou a de um sol resplandecente".

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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