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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.8 n.2 Brasília  1988

 

A política previdenciária oficial

 

 

Os órgãos oficiais do Estado não apresentam uma política nacional preventiva de saúde ocupacional em que os trabalhadores fossem beneficiados em termos de condições organizacionais e ambientais do trabalho propiciadoras de saúde mental. Muito pelo contrário, o Estado apresenta apenas condições de atender, através do INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), os casos já consumados de acidentes e de doenças ocupacionais quando os trabalhadores acabam afastados temporária ou definitivamente de suas atividades produtivas e passam a receber benefícios previdenciários. Este atendimento é feito pelas Superintendências Regionais do INPS em todo o País.

Cada Superintendência é encarregada de examinar os encaminhamentos feitos pelos Postos de Atendimento do INAMPS, referentes aos trabalhadores que requerem benefícios previdenciários. Não tivemos acesso às informações sobre todas as Superintendências Regionais, mas tivemos às do Estado de São Paulo que, segundo avaliação não-oficial, possui cerca de 820 médicos-peritos distribuídos em 117 "grupamentos de perícias médicas", sendo 10 deles na cidade de São Paulo. O número de perícias na Superintendência Regional de São Paulo constitui a metade do total do País, ou seja, em relação à soma de todos os outros Estados brasileiros. Este dado reflete obviamente a grande concentração industrial e comercial com correspondente emprego de mão-de-obra no Estado de São Paulo.

Por que a exigüidade de informações?

A dificuldade de obter informações "oficiais" é recorrente em diversos níveis. Uma das mais importantes é que o coletar dados "oficiais" é feito somente através de ofícios que dispendem um trâmite muito moroso pelos mais diferentes departamentos. No caso da Superintendência Regional de São Paulo, a solicitação de informações foi feita ao Superintendente Regional, Julieta do Amaral e Silva, que repassou ao seu assessor, que repassou ao Secretário de Serviços Previdenciários, que também repassou ao Setor de Perícias Médicas, que voltou a repassar para o Superintendente Regional. Finalmente, o Superintendente enviou uma resposta "oficial", através de ofício, constando de 15 linhas datilografadas, as quais estão sendo utilizadas nesta matéria.

Devido à exigüidade de informações "oficiais", procuramos coletá-las diretamente nos departamentos da Superintendência Regional. Essa tentativa foi frustrada: nenhum funcionário-médico, em qualquer hierarquia de cargo administrativo, está autorizado a dar entrevistas para imprensa. Somente o Superintendente tem o poder de atender tal pedido.

Essa precariedade de dados parece ser a mesma constatada a nível nacional. A DATAPREV, órgão do INPS encarregado de colher, sistematizar e divulgar dados estatísticos, não tem feito uma atualização periódica das últimas estatísticas conhecidas nos anos 80. Por exemplo, a última estatística sobre acidentes de trabalho no País foi divulgada em 1982; depois desta data, não se tem conhecimento de qualquer atualização. Relativa às doenças ocupacionais, a última estatística da DATAPREV refere-se a 1975; também depois desta data, não houve atualização. Embora haja informações de que os registros de dados da Previdência Social estivessem sendo feitos manualmente até recentemente, o sistema computadorizado começou a ser implantado para dar conta desta tarefa. Enquanto se implanta este sistema em todas as Superintendências, os dados até podem estar sendo coletados, mas seguramente estão deixando de ser divulgados para a população.

Além do que descrevemos até aqui, solicitamos publicações do INPS que orientassem a população sobre os procedimentos "oficiais" e que servissem de subsídios para a realização desta matéria na nossa Revista. Ficamos sabendo que não existe material de divulgação que sirva de orientação e esclarecimento para os usuários e que, estes,somente o obterão dirigindo-se pessoalmente aos postos do INPS. Isso dificulta o acesso da população porque significa, sem dúvida, enfrentar filas sem saber onde, quando e quem poderá fornecer as informações desejadas. Devido a toda essa carência das fontes de informação, também utilizaremos informações ou enfoques que não refletem necessariamente a política "oficial" vigente.

A seguir, abordaremos os dois itens mais importantes, segundo os critérios da Previdência Social quanto ao afastamento do trabalhador de suas atividades produtivas por motivos de saúde: 1) acidentes ocupacionais, incluindo as doenças profissionais; 2) doenças não-profissionais. Os acidentes e doenças ocupacionais são definidos como aqueles que apresentam uma relação de causa e efeito, comprovada e comprovável, entre o agente patogênico e o quadro clínico apresentado pelo trabalhador. Embora existam diversas outras doenças que estão relacionadas às condições de trabalho e se constituem fatores coadjuvantes ou que predispõem ao surgimento de doenças, estas são consideradas doenças não-ocupacionais.

 

Os acidentes e doenças ocupacionais

Na última estatística divulgada em 1982, a DATAPREV computou um total de 1.218.922 de acidentes e doenças ocupacionais (incluindo invalidez temporária, invalidez permanente e óbito). Neste mesmo ano, o total é de 535.648, no Estado de São Paulo. Embora não tenhamos os dados atuais a nível nacional, a Superintendência do INPS em São Paulo declarou que, em 1987, ocorreram no Estado 513.353 acidentes ocupacionais.

Observe-se que estas cifras totais não evoluem com o passar do tempo, segundo podemos supor que acontecesse no Estado de São Paulo. Essa mesma observação foi feita por um estudo do DIESAT (Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho) que comparou o total de acidentes, a nível nacional: em 1971, foi de 1.370.812; em 1982, foi de 1.218.922. Diante deste total de acidentes numericamente decrescente, o estudo do DIESAT afirma: "Enquanto os números de benefícios pagos anualmente cresceram, como óbvia decorrência da elevação da população segurada e contribuinte, os números daqueles pagos por acidentes, paradoxalmente, caíram. As autoridades previdenciárias e do Ministério do Trabalho, ufanisticamente, justificaram essa queda pelo decréscimo paralelo do número de acidentes registrados oficialmente" ("Incapacidade, Trabalho, e Previdência Social", DIESAT/IMESP; 1984, p. 194). É possível acrescentar a este argumento que o mercado de trabalho cresceu inegavelmente e assim cresceu o número de trabalhadores, mas não cresceu o número de acidentes justamente num país como o nosso em que até existe uma política de prevenção de acidente ou de segurança do trabalho, a qual não é implementada, de fato, em cada local de trabalho.

A legitimidade desfavorável aos trabalhadores

Entretanto, o cerne do problema dos acidentes não se refere às estatísticas. O próprio procedimento "oficial" para se reconhecer um caso de acidente no trabalho é bastante limitador para o trabalhador, porque somente o empregador pode tomar a iniciativa de solicitar a perícia médica do INPS. Isso quer dizer que, sem a concordância do patrão, a perícia médica previdenciária, quando é solicitada pelo trabalhador, passa automaticamente a ser atendida em outra categoria: as doenças não-ocupacionais. Além dessa restrição, a perícia médica somente tem legitimidade quando o perito-médico expede o chamado CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho), de acordo com os critérios da Previdência Social. Essa legitimação dá direito ao trabalhador de receber o benefício da Previdência correspondente ao mínimo de 92% e ao máximo de 100% de seu último salário. Enquanto está enquadrado no CAT como acidentado ou doente, o trabalhador não pode ser demitido; mas uma vez recuperado (mesmo sendo portador de uma invalidez permanente), pode ser dispensado pelo empregador como qualquer outro trabalhador.

Aparentemente, o reconhecimento de um acidente ocupacional para efeito de CAT é evidente. É o que acontece nos casos de mutilação física e de traumas ortopédicos. Entretanto, não é tão evidente assim no caso de doenças ocupacionais consideradas como acidente ocupacional, porque são enquadradas no CAT somente 21 delas, segundo os agentes patogênicos. Este número é considerado inexpressivo pelos estudiosos e pesquisadores de saúde ocupacional, que contestam totalmente os critérios adotados, pois, atualmente, são centenas e centenas de doenças cuja origem está relacionada às condições de trabalho. Para dar um exemplo do caráter restritivo dos critérios do INPS, podemos verificar que silicose e asbestose são consideradas doenças ocupacionais, ou seja, existe uma relação de causa e efeito entre o agente patogênico existente no trabalho e a doença. Entretanto, outra doença como a bissinose, causada pelas poeiras de algodão cru, comum nos trabalhadores rurais, não é considerada doença ocupacional porque os pulmões do bissinótico não se diferenciam dos pulmões de um bronquítico ou enfisematoso, embora a história profissional do trabalhador adoecido não tenha qualquer antecedente patológico prévio. Dessa forma, a Previdência Social também desconhece centenas de outras doenças ocupacionais que não podem ser enquadradas no CAT. Entre as doenças ocupacionais excluídas, estão as doenças mentais ou aquelas relacionadas com fatores psicológicos, as quais sequer são mencionadas como fatores coadjuvantes ou que predispõem ao surgimento de doenças ocupacionais.

Os critérios desfavoráveis aos trabalhadores são inúmeros. Um outro mencionável e bastante influente é o papel do médico-perito. Embora exista na legislação o reconhecimento de 21 agentes patogênicos de doenças ocupacionais, toma-se conhecimento oficiosamente de que a última palavra do médico-perito conta mais do que as discriminações nosológicas encontradas na legislação. Sabe-se que o médico-perito tanto pode recusar o diagnóstico de doença ocupacional, para determinados pacientes que apresentam todos os sintomas desta doença, quanto pode reconhecer o diagnóstico de doença ocupacional, cuja causa é ocupacional, mas não consta da legislação vigente. Dessa forma, o poder de decisão sobre o enquadramento de doença ocupacional nos critérios da Previdência Social fica predominantemente nas mãos do médico-perito, o qual toma decisão dependendo, sobretudo, de sua avaliação de cada trabalhador. O único recurso que resta ao trabalhador é conseguir ser examinado por um outro médico-perito na ocasião de renovação da perícia.

 

As doenças não-ocupacionais

Ao contrário do que acontece com os acidentes e as doenças ocupacionais enquadrados no CAT, em que os empregadores reconhecem e encaminham pedidos de perícia médica para a Previdência Social, há inúmeros casos de doenças excluídos destes critérios e que realizam um percurso indireto para receberem os benefícios da Previdência. São os próprios trabalhadores que tomam a iniciativa de buscar reconhecimento legítimo de sua condição de adoecimento. Embora estejam relacionadas às condições de trabalho e de qualidade de vida do trabalhador, estas doenças (como neurose, hipertensão arterial, osteoartrose, epilepsia etc.) estão incluídas entre as não-ocupacionais e, somente nesta condição, os trabalhadores acabam indiretamente sendo considerados incapazes ou inválidos para o trabalho. Neste caso, os trabalhadores recebem como benefício previdenciário o chamado "auxílio-doença", correspondente a 70% da média dos salários nos últimos 36 meses mais 1% por ano trabalhado.

Na última estatística divulgada, em 1975, a Prevalência Global de Doenças Incapacitantes no Brasil (em número de doentes por mil da massa segurada do INPS) foi a seguinte: Neurose (9,72/1.000); Hipertensão arterial (9,71/1.000); Osteoartrite (6,37/1.000); Epilepsia (4,07/1.000); Tuberculose Pulmonar (3,11/1.000). Estes números significam que neurose e hipertensão arterial (nas quais os fatores psicológicos são inegáveis) constituem o grupo de maior incidência entre as doenças não-ocupacionais que causam o afastamento dos trabalhadores de suas atividades produtivas.

Quanto ao Estado de São Paulo, a Superintendência Regional da Previdência Social informou que, em 1987, foram deferidos 203.808 casos iniciais de "auxílio-doença". Em termos de entidades nosográficas, os dados parciais são os seguintes: 5.222 com diagnóstico de hipertensão arterial e 1.505 com diagnóstico de neurose. Quanto à psicose, não existem dados sobre a sua incidência.

Existe uma "neurose de renda"?

Segundo um médico-perito do INPS, a atividade neste setor é realizar um "diagnóstico funcional" que tem o objetivo de verificar se a doença incapacita ou não para o trabalho, de acordo com um critério "morfopsico-fisiológico". Este diagnóstico segue a classificação nosográfica do Código Internacional das Doenças (CID), que é um instrumento médico elaborado e divulgado pela Organização Mundial da Saúde.

Para esse médico-perito, as neuroses que realmente afastam são as dos chamados "obsessivos, os conversivos e os histéricos". Há os que apresentam uma espécie de simulação patológica: a "neurose de renda". Seriam os trabalhadores que "encostam na Caixa" (ou seja, na Previdência Social) e continuam trabalhando normalmente com "bicos". Inclusive, esse médico-perito disse, de forma irônica, que existem entre eles sujeitos com as "mãos calejadas".

O que acontece com os trabalhadores considerados "neuróticos"? Uma vez que recebem benefícios do INPS, são encaminhados para um Posto de Atendimento Médico do INAMPS, onde recebem tratamento, ou pelo menos deveriam receber. Esse médico-perito declarou que nada pode afirmar sobre o que se faz no INAMPS, porque não está trabalhando lá. Entretanto, constata-se que os diferentes órgãos públicos pertencentes ao mesmo Ministério não parecem trabalhar conjuntamente e nem sequer se comunicam para tomar conhecimento do que é feito nos outros órgãos.

No caso da hipertensão arterial, depois de feito o diagnóstico, o trabalhador é encaminhado para um Posto do INAMPS e passa a ser atendido lá por um cardiologista e um nefrologista. Há alguns anos, a Superintendência Regional de São Paulo montou com recursos próprios um programa de tratamento de hipertensão arterial, desenvolvido por equipe multiprofissional (inclusive psicólogos), cujos resultados foram bem-sucedidos. Nesse período, começou a diminuir muito o diagnóstico de hipertensão arterial dado pelos médicos-peritos. Este programa específico foi desativado depois de algum tempo, embora tivesse demonstrado a eficiência de seu tratamento, e os pacientes voltaram a ser encaminhados para os Postos do INAMPS. E restou a seguinte pergunta sem resposta: por que este programa foi desativado?

Os fraudulentos e a psicose esquecida

Tanto no caso de neuroses quanto de hipertensão arterial, uma das maiores preocupações existentes parece ser predominantemente o de detectar os diagnósticos de "fraudulentos" (do ponto de vista das autoridades previdenciárias) que aumentariam os gastos da Previdência Social. Esse é um critério administrativo e está longe de refletir uma preocupação com o rigor e o critério do diagnóstico e do tratamento de doenças mentais que são apenas categorizadas, em termos puramente médicos, de entidades nosológicas, constantes no CID. E por essa razão, surge a seguinte pergunta: por que são dispensados o saber e a técnica dos psicólogos que, tradicionalmente, diagnosticam e tratam de distúrbios psicológicos (entre os quais se incluem neuroses, por exemplo)?

Se doenças como neuroses, hipertensão arterial etc. são classificadas como doenças não-ocupacionais, a psicose sequer consta como uma doença não-ocupacional nas estatísticas do INPS, embora se saiba largamente que a psicose é motivo de afastamento de muitos trabalhadores de suas atividades produtivas. Diz o Superintendente Regional do INPS de São Paulo, "não possuímos nenhum dado sobre a incidência de psicoses". Entretanto, o problema de falta de dados sobre psicose é apenas indicativo de muitos outros subjacentes a ele. Conforme declarou um-médico-perito do INPS, o trabalhador que apresenta um surto psicótico é tratado "em massa" pelo INAMPS, ou seja, o atendimento de um grande número de pacientes ao mesmo tempo por poucos profissionais de Saúde Mental, com os recursos psiquiátricos tradicionais como a distribuição de medicamentos e/ou internação hospitalar. Como conclusão, a realidade é desoladora: a única diferença num caso de surto psicótico entre o trabalhador, que tem descontado de seu salário a contribuição compulsória da Previdência Social, e o indigente é o recebimento, pelo trabalhador, do benefício previdenciário que, por não ser reconhecido como doença profissional, é muito menor do que se tivesse sido reconhecido.