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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.8 no.2 Brasília  1988

 

A luta contra os manicômios e a exclusão social

 

 

A Plenária dos Trabalhadores de Saúde Mental, fundada em 1986, é uma entidade independente, sem vínculos com órgãos públicos ou privados, que possui o objetivo de reunir e de organizar as diferentes categorias profissionais de Saúde Mental, assim como de discutir e de aprofundar a questão da Saúde Mental com a população em geral e com os órgãos responsáveis pela política vigente nesta área.

Como representante da Plenária, a psicóloga Mônica Valente prestou o seguinte depoimento sobre a política de saúde mental e sobre a saúde mental dos trabalhadores:

"O II Congresso Estadual dos Trabalhadores de Saúde Mental do Estado de São Paulo, realizado em outubro de 1986, representou um marco expressivo nas discussões na área, não apenas pelo seu conteúdo programático, onde pode ser verificado como andavam as nossas práticas e as nossas idéias, a partir das nossas experiências cotidianas de trabalho, mas também pelo caráter como foi realizado o evento, numa total independência em relação ao Estado, permitindo que toda essa discussão fundamental pudesse rolar solta, sem as amarras impostas pelos programas e pelas administrações públicas, sendo uma ação feita e dirigida pelos próprios trabalhadores do setor. Contudo, esse Congresso abriu um leque imenso de preocupações e de necessidades teóricas e conceituais que precisavam ser discutidas com constância, obrigando os trabalhadores e as entidades do setor a se organizarem num instrumento capaz de dar continuidade a esse processo, tendo surgido como desdobramento do Congresso a Plenária dos Trabalhadores de Saúde Mental.

Os determinantes da doença mental

As discussões, levantadas em 86, eram para uns a mais completa novidade e, para outros, como um campo a ser devastado e conhecido. O II Congresso Nacional, que se realizou em 1987, buscou delimitar melhor essa discussão, avançando através da compreensão de que a doença mental tem como um de seus determinantes maiores a estrutura social e suas influências diretas sobre os indivíduos e, partindo dessa premissa, discutiu-se a 'loucura' tendo como pano de fundo a nossa organização social, geradora de condições extremadas de insalubridade psíquica, seja através das jornadas excessivas de trabalho, seja das condições gerais de vida, da ausência de prazer, de lazer, etc, que não permitem condições de equilíbrio saudável para os indivíduos.

Encaixados nessa mesma realidade, igualmente massacrados, estamos nós, os trabalhadores de Saúde Mental, que além dos problemas gerais comuns a toda a população, ainda precisamos tomar e dar conta do sofrimento psíquico das pessoas, na grande maioria das vezes sem ter sequer as mínimas condições de trabalho.

O II Congresso Nacional teve como tema central "POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS", por entender que o Manicômio tem toda uma representação simbólica repressiva e cerceadora, discriminatória e estigmatizante, dos problemas psíquicos. Contudo, essa estrutura não é algo solta no espaço, isolada das demais instituições da sociedade. Um ambulatório pode ser tão cronificante como um hospício. Da mesma forma que um mero diagnóstico, a Febem, uma fábrica etc. acabam por ter estruturas tão excludentes como o próprio Manicômio, criando uma verdadeira lógica manicomial. A exclusão, que uma internação num hospício representa, é expandida para todas as relações na comunidade, tornando aquela pessoa um discriminado que acaba por ser afastado do seu trabalho, da sua família, da sua própria vida, num caminho de mão única onde o retorno praticamente nunca aparece, tornando essa população, que só no Estado de São Paulo representa mais de 30.000 internos, membros dessa grande massa de marginalizados sociais que a estrutura política e econômica vem produzindo no Brasil.

Para dar continuidade a essa discussão, realizamos em maio deste ano alguns eventos, entre os quais um ciclo de debates, de onde tiro um caso para melhor ilustrar essa discussão da produção social da loucura. Um operário de uma indústria do ramo plástico da capital paulista, devido às condições constantes de trabalho sob pressão demasiada, acaba por enlouquecer, e o seu sindicato, após algumas avaliações e com a assessoria de um psiquiatra, entra na justiça do trabalho para provar que foram as condições a que esse trabalhador se submetia, os fatores determinantes na produção daquele surto psicótico. Sem dúvida alguma, essa é uma discussão bastante nova em nosso meio, pois tanto os técnicos como os próprios sindicatos ainda não desenvolveram essas discussões de modo mais sistematizado, mas esse caso não deixa de ser um exemplo importante. Esse problema não permaneceu apenas nos consultórios, ou salas de diretores, mas está sendo repassado para toda uma categoria profissional, num verdadeiro processo de aumento no nível de consciência de técnicos e trabalhadores.

Pela cidadania plena

O nosso movimento tem como uma de suas pretensões levar essas questões para toda a sociedade, envolvendo os trabalhadores, as donas de casa, as minorias discriminadas, para criar uma compreensão coletiva de que a atual estutura de atenção à saúde mental é horrível, e que não bastam melhorias plásticas, ou maiores aprofundamentos teóricos para a resolução dessa problemática. Ela passa, também, por relações sociais diferentes, e isso só ocorrerá se a sociedade toda estiver envolvida num processo de lutas que culmine pela conquista da plena cidadania a todos. Nessa perspectiva, realizamos no dia 18 de maio deste ano o dia nacional de luta Antimanicomial, contra a discriminação e Pela Cidadania Plena, quando foram levadas para as ruas, as nossas preocupações e as nossas bandeiras. Essa manifestação, inclusive, não ocorreu só em São Paulo, pois foi fruto de deliberações de nosso último Congresso Nacional, tendo ocorrido no mesmo dia atos em várias capitais brasileiras, levando para as pessoas questões como a realidade hoje dos hospitais psquiátricos, não de uma forma piegas, mas buscando a mobilização de corpos sociais em defesa não apenas daqueles que hoje já apresentam as suas crises, mas de toda a sociedade que acaba dia a dia enlouquecendo mais e mais pessoas. Esse movimento, que ganhou páginas de grandes jornais brasileiros, e até alguns instantes nas televisões, fez com que observássemos reações de famílias que diziam 'se é para deixar o meu filho naqueles lugares horríveis que eu vi na TV, eu prefiro levar ele para casa' . Por um lado, isso é ótimo, pois divulga a desgraça que são esses depósitos de exclusão, mas, por outro lado, mostra que as alternativas reais para poder melhor trabalhar as situações de crise são inexistentes, ou então muito precárias, pois não são capazes de absorver sequer aqueles que hoje precisam de cuidados especializados.

Da mesma forma que todos os trabalhadores brasileiros enfrentam lutas pelos seus direitos sociais, os trabalhadores de saúde mental também têm alguns dos mesmos problemas crônicos que os demais assalariados. Questões como a jornada de trabalho, os baixos salários pagos pela rede pública, e as políticas implementadas pelos plantonistas das Secretarias de Saúde acabam por inviabilizar é desmantelar as instituições de assistência a saúde mental, que têm, inclusive, pouco tempo de existência. São experiências razoavelmente novas, ainda sem a consolidação necessária. Além do mais, nosso modelo de formação profissional é baseado no atendimento de consultórios, e não nas instituições da rede pública, para onde de fato drenam a grande maioria dos necessitados de nossos cuidados. Essa constatação me leva a pensar que continua sendo necessária uma revisão e um profundo questionamento do modelo formador acadêmico que está, atualmente, descolado da realidade.

O momento atual de retrocessos

Estamos saindo de um período em que alguns trabalhos foram implementados, em centros de saúde, ambulatórios ou hospitais, dando-nos algumas vivências práticas bastante positivas que, sem dúvida alguma, contribuíram para a formulação de uma política de saúde mental mais saudável. Contudo, nesses últimos meses, está ocorrendo um verdadeiro retrocesso nesse processo que, sem dúvida alguma, já era bastante lento na gestão anterior da Secretaria da Saúde em São Paulo, por exemplo. Agora não só parou em alguns lugares, como em outros ocorrem retornos incríveis para práticas que julgávamos abolidas dos serviços. Em alguns lugares, os pacientes internados perderam o direito de saírem aos pátios, ficando por meses trancados no interior das enfermarias. Outro ponto importante a ser visto é o desaquecimentos das práticas extra-hospitalares, num verdadeiro incentivo ao projeto manicomial excludente. Esse desaquecimento pode ser visto através das tentativas de fechamento de serviços ambulatoriais, como por exemplo, na Vila Brasilândia (cidade de São Paulo), onde isso ainda não ocorreu graças a intervenção da população organizada da região, que vem lutando para a manutenção do ambulatório.

A atual administração da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo já acabou com a carreira de médicos sanitaristas. Esse processo de esvaziamento da rede pública, também interveio na saúde mental, possivelmente por ser essa uma área em que os contatos dos técnicos com as pessoas se reproduz de uma forma mais intensa, e muito vinculada com a realidade da vida dos indivíduos. Esse tipo de contato leva uma reflexão importante sobre a miséria brutal que nos atinge e sobre um conjunto de necessidades as quais não se pode alcançar. Diante destes fatos, começa-se a pensar sobre quais são as reais necessidades dessas pessoas que nos procuram: Será que para elas é uma prioridade o atendimento psicológico? Ou será a melhoria das suas condições de vida e de trabalho? Só que esta discussão não interessa para a Secretaria de Saúde, pois isto traz, de maneira muito tranqüila, a visão de que nós, os trabalhadores de Saúde Mental, também nos encontramos nessa mesma situação, e acabaremos mais dia, menos dia, por reivindicar os nossos direitos.

Nesse quadro, é papel dos sindicatos, entidades populares e de categorias profissionais pressionarem constantemente o governo para que o sucateamento do serviço público não continue, impedindo dessa forma demissões novas e lutando para a recontratação daqueles que foram mandados embora da rede. Nessa causa, têm um papel relevante os usuários, ainda mais que este ano é um ano eleitoral e os governantes ficam 'mais sensíveis aos reclamos populares'.

A necessidade dos espaços democráticos

Como as discussões da saúde mental ainda são muito novas, para nós é fundamental a manutenção dos espaços democráticos, onde as questões do dia a dia possam ser melhor debatidas. Para que isso ocorra não é admissível que reuniões técnicas, supervisões clínicas sejam proibidas ou então reduzidas ao mínimo, o que chega a impedir que qualquer processo de acúmulo de experiência profissional possa vir a ocorrer. Para se ter uma idéia dessas coisas, o convênio entre o ERSA 3 (Escritório Regional de Saúde 3, da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo) e o Instituto Sedes Sapienta e está sendo questionado pela Secretaria, com colocações do tipo: ' Para que vocês (os profissionais de Saúde Mental) precisam de supervisão?' Esse é o tipo de questionamento de quem desconhece totalmente o trabalho de saúde mental, mas que no papel de dirigente dos órgãos da rede pública tentam impedir a manutenção de espaços de reflexão teórico-técnico, assim como não compreendem que não podemos ficar à margem de uma discussão maior sobre o que ocorre na sociedade em geral. É sobre esta realidade que obrigatoriamente falamos, nas salas de consulta, com as pessoas que nos procuram com uma gama incrível de angústias e ansiedades produzidas pela vida que elas levam.

Esta não é uma particularidade do Estado de São Paulo. No Rio de Janeiro, soldados do Exército utilizaram-se de um tanque blindado tipo Urutu para, a pedido do Ministro da Saúde, empossarem uma nova direção na Colônia Juliano Moreira, visando acabar com todo um trabalho desenvolvido há anos naquela instituição, cuja finalidade era melhorar as condições dos internos, e dar uma perspectiva não excludente e discriminatória, como o Ministério assim o deseja. Em Minas Gerais, houve uma intervenção policial militar no Pronto Socorro Psiquiátrico impedindo o avançar de alguns trabalhos.

Para combater de forma mais organizada esse retrocesso e poder melhor discutir as novas formas de avançar na compreensão e tratamento da chamada doença mental, os trabalhadores de Saúde Mental têm se organizado em alguns Estados brasileiros (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo) na forma de plenárias e movimentos, e caminham suas discussões, apesar de todas as dificuldades, para se organizarem em outros Estados, tornando esse movimento de caráter nacional, preparando eventos, dias de luta, discussões amplas sobre a situação do nosso trabalho, e sobre a assistência para aqueles que precisam dos nossos cuidados.

Em 1989 deveremos realizar nosso III Congresso Nacional, acumulando forças em direção à construção de uma Sociedade sem a marca dos Manicômios ou da exclusão ".

Em São Paulo, o Plenário dos Trabalhadores de Saúde Mental se reúne todas as quartas-feiras, às 20h30 na Rua Domingos de Moraes, n° 1456, ocorrendo no último sábado de cada mês uma reunião às 14 horas.