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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.9 n.1 Brasília  1989

 

FORMAÇÃO DO PSICOLOGO

 

Currículo: quais mudanças ocorreram desde 1962?

 

 

Em 1975, Sylvia Leser de Mello, professora do Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP, publicou uma pesquisa pioneira no Brasil sobre a Psicologia como profissão. Esta pesquisa foi atualizada por outras subseqüentes: em 1984, "O perfil do psicólogo no Estado de São Paulo", desenvolvida pelo Sindicato dos Psicólogos no Estado de São Paulo e pelo Conselho Regional de Psicologia-6ª Região. Em 1988, outra pesquisa desenvolvida pelos CRPs e pelo CEP, "Quem é o psicólogo brasileiro ?''.

Neste depoimento, ela avalia alguns dos principais itens da formação (como currículo, pesquisa, ética etc.) ao longo dos últimos 27 anos.

Com a criação dos Cursos na USP e na PUC-SP é que começamos a ter, de fato, uma formação profissional e mais voltada para a clínica. E estando voltada para clínica, começa-se a falar em especificidade da profissão. O psicólogo não é mais um técnico e sim um profissional de caráter liberal. Só quando a Psicologia começa a estar avizinhada das áreas de Psicanálise é que começa a se transformar em profissão nesse sentido que estou explicitando.

A profissão foi criada em 1962 e regulamentada no ano seguinte. Nessa época, existiam em São Paulo somente os cursos da USP e da PUC. A partir da regulamentação, houve uma expansão extraordinária da área de testes psicológicos que ficou restritiva para o psicólogo. Também houve expansão na área de clínica, de consultório particular (estudo de caso, diagnóstico e psicoterapia que não são restritivos do psicólogo porque o médico também pode atuar nessa área), mas de alguma forma os psicólogos garantiram esse espaço. Enfim, houve um crescimento da profissão com um primeiro momento de predominância da clínica, garantindo também uma procura da profissão que até me parece excessiva. Depois de 1969, ocorreu esse estouro que foram as criações dos cursos de Psicologia por causa da Reforma Universitária que permitiu um aumento expressivo das faculdades particulares. Em 1970, quando iniciei minha pesquisa (que depois foi publicada, Psicologia e Profissão em São Paulo, Editora Ática), já tinham sido criados vários cursos da rede privada, tanto na Capital quanto no interior.

Houve um acúmulo de profissionais sem absorção desta mão-de-obra pelo mercado de trabalho, nas últimas décadas, porque o Brasil é uma sociedade muito pobre. Para ser clientela desses profissionais, exige-se certa sofisticação a nível societário. Isso não aconteceu: houve um golpe de Estado autoritário e como conseqüência uma pobreza crescente da população. Estes fatores estão interligados e não se pode separá-los. Atualmente, já existe uma classe média que tem requisitado os serviços da Psicologia e, mesmo assim, não consegue absorver e dar emprego para a maioria dos psicólogos.

 

Currículo

Quando a profissão foi regulamentada, o Conselho Federal de Educação criou e fixou um currículo mínimo. Os mesmos profissionais, que lutaram para criar a lei da profissão em 1962 e a regulamentação em 63, também influíram na elaboração do currículo mínimo. Este corresponde ao que se imaginava que fosse essencial para formação do profissional e para dar raízes sólidas a ele. O mesmo currículo mínimo se mantém até hoje.

Em 1978, houve uma tentativa muito séria de se mudar o currículo mínimo. Nessa época, ocorreu muita movimentação e discutíamos o que seria um bom currículo. A proposta de mudança de currículo não era mínima mas máxima porque procurava abranger todas as áreas aplicadas da Psicologia. Pela primeira vez, criou-se um núcleo de psicólogos do País inteiro com estudantes e profissionais que se posicionaram contra essa proposta de mudança. Como houve essa pressão de oposição, não houve modificação. Chegou-se à conclusão de que o currículo mínimo era péssimo, mas o que pretendia modificá-lo era pior ainda.

Em 1982, fizemos um estudo sobre currículos no CRP-06. Esse estudo mostrou que há uma variação dos enfoques teórico-técnicos muito grande nos cursos de Psicologia. Alguns dão ênfase grande como ciência biológica, outros como ciência experimental etc. Então, o currículo mínimo abre várias possíveis montagens de programas. Não considero que, desde 1982 até hoje, houve grandes transformações nesse aspecto e não acho que isso seja necessariamente negativo.

 

Estágios

Acho que o nosso grande problema de formação são os estágios. Existem níveis e níveis em que os estágios funcionam mal. Um dos níveis é o ético. O aluno "usa" um paciente da clínica para fazer o estágio dele, durante 6 meses, e depois o abandona. O paciente é um mero instrumento para o estágio. A instituição desse tipo de abordagem instrumentaliza o paciente que procura um serviço gratuito exatamente porque é gratuito. Até pode existir serviço gratuito, mas o problema ético não foi tocado e deveria ser consciente para o aluno. A cada passo dado no atendimento, o aluno deveria saber conscientemente qual é o nível de rompimento ou não com a ética. Acho que a ética deveria ser discutida com o professor, com o supervisor, com todo mundo. Assim, os alunos não deveriam interromper o atendimento somente porque encerrou o estágio, sem qualquer avaliação da situação psicológica do paciente. Isso não deve acontecer porque não se acompanha o problema do paciente até o final e não se tem controle sobre a solução.

Parece-me que o problema ético não sucede ao da formação, mas o precede e o acompanha. A ética deveria ser parte integrante do curso e não apenas uma disciplina isolada no ano. Essa questão permeia toda a questão da má formação e do estágio. Se mudarmos essa situação, passaremos a dar uma formação prática melhor e também conseguiremos alcançar uma concepção íntegra do ser humano.

 

As áreas aplicadas

É comum haver uma confusão da ênfase na clínica com consultório particular. São duas maneiras de pensar a Psicologia e suas relações com a prática. A minha crítica à Psicologia Clínica é que o psicólogo se forma pensando apenas nele e no cliente, numa relação dual. Nem sempre é possível mantê-la como acontece no âmbito das instituições.

Continuo a achar que a Psicologia pode contribuir muito a nível institucional. Ela pode ser cada vez mais exercida nas instituições públicas ou privadas (empresas, escolas, hospitais, centro de saúde etc). Essa é uma prática que não é muito evidente nos Cursos. Os cursos não estão preparando os psicológos para essa prática mais ampla. Posso dar um exemplo do que acontece com a orientação profissional hoje.

Podemos fazer com que a Universidade reforce a própria Universidade, ou seja, que ela seja circular. De que maneira? Na orientação profissional, costumamos atender somente os jovens que estão no colegial com disponibilidade e condições sócio-econômicas para ingressarem e se manter na Universidade. Estamos alimentando a Universidade somente com quem já é candidato, num círculo sem saída, e não estamos atuando em nenhuma outra área.

Agora, a orientação profissional tem a ver com o mundo do trabalho e por isso esse atendimento de orientação profissional para a Universidade é somente uma parcela ínfima do mundo do trabalho, considerando todas as profissões, de todos os níveis. Por exemplo, há pessoas que vão sair da 8ª série e que precisam trabalhar imediatamente. Por que elas não podem discutir também a opção profissional? Coloco esse problema, considerando a possibilidade de existir essa opção; porque, muitas vezes, ela simplesmente não existe.

De forma geral, o que não estamos sabendo fazer é voltar à formação (não somente a do psicólogo como também de outras profissões) para encontrar as pontes com a comunidade mais ampla. Não estamos conseguindo construir essas pontes que apreendem o social como um todo. Na Psicologia, elas permanecem sendo as tradicionais: consultório particular, seleção de pessoal etc.

 

Pesquisa

Em algumas áreas, passamos de meros repetidores e replicadores para pesquisadores. Esta é uma diferença fundamental. Os primeiros cursos da USP e da PUC-SP foram criados sob influência norte-americana que implica uma determinada visão de homem. Esses cursos foram hegemônicos, durante muito tempo, e criaram,através dos seus cursos de pós-graduação, uma espécie de rede de professores formados por esses cursos pelo País afora.

Os modelos norte-americanos são causais, limitados e positivistas. Todas as pesquisas chamadas de "básicas" foram dirigidas nesse enfoque. Durante muito tempo, somente se fez pesquisa em Psicologia com animais (o rato estava acima de tudo). A pesquisa com seres humanos, em geral, também estava calcada em modelos positivistas. Esse positivismo vem sofrendo mudanças hoje, até mesmo nas áreas mais conservadoras da Psicologia. Na minha opinião, embora o homem seja universal, cada lugar e cada tempo impõem à concepção de homem certas marcas culturais específicas e fundamentais. Então, não adianta pesquisar ratos que podem ser iguais em qualquer parte do mundo, pois o homem não é igual em qualquer parte. Assim, contesto uma concepção de homem como mero reprodutor ou repetidor, pois é um produtor no e do mundo.

Por outro lado, há atualmente todo um trabalho de criação e de compreensão sobre as condições de vida que atuam sobre as pessoas no Brasil. Já acabou aquele tempo em que se aplicava Piaget aqui, chegando-se à conclusão de que as crianças suíças são muito mais inteligentes do que as brasileiras. Esse tipo de perspectiva vem mudando e considero que é fruto de pesquisas de Psicologia em desenvolvimento.

Agora, as pesquisas só se realizam nas universidades federais, estaduais e algumas PUCs. As universidades particulares não fazem ou só dificilmente fazem pesquisa. Quer dizer, o problema não começa com o fato de o aluno não fazer pesquisa, mas o de o professor não ser também um pesquisador. Para tanto, somente a dedicação exclusiva de tempo integral é que torna viável este objetivo. Uma das vias de destruição das universidades públicas é querer acabar com o tempo integral de docência e de pesquisa, transformando os professores em horistas e permitindo-lhes fazer 40 "bicos" fora da Universidade.

Esse tipo de campanha de destruição sistemática das universidades públicas não é gratuita. Sabemos que há interesses até de nível internacional voltados para o ensino superior no Brasil. E um investimento numa área vital em que ainda se pode manter uma certa autonomia de pensamento e de liberdade. Este não é um problema somente de psicólogo. Por isso, não podemos pensar pequeno em termos somente de mercado de trabalho e sim pensar mais amplamente na qualidade do ensino público, de resistir contra a atual tendência de privatização e de lutar pela manutenção do ensino público".

 


 

O currículo mínimo dos cursos de psicologia

O Curriculo Mínimo dos cursos de Psicologia foi estabelecido pelo Parecer n° 403, do Conselho Federal de Educação, cujo relator foi o prof. Valnir Chagas, acompanhado pela respectiva resolução, que passou a vigorar a partir de 1963.

De acordo com essa resolução, o Currículo Mínimo do curso de Psicologia para o Bacharelado e Licenciatura compreende sete matérias: Fisiologia, Estatística, Psicologia Geral e Experimental, Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia da Personalidade, Psicologia Social e Psicopatologia Geral.

Para a obtenção do diploma de Psicólogo, exigem-se, além das matérias acima, mais as seguintes: Técnicas de Exame e Aconselhamento Psicológico, Ética Profissional e mais três matérias dentre o seguinte rol: Psicologia do Excepcional, Dinâmica de Grupo e Relações Humanas, Pedagogia Terapêutica, Psicologia do Escolar e Problemas de Aprendizagem, Teorias e Técnicas Psicoterápicas, Seleção e Orientação Profissional e Psicologia da Indústria. Além disso, para o diploma de Psicólogo é exigido treinamento prático sob a forma de estágio supervisionado, ao longo de pelo menos 500 horas, por sugestão do relator do Parecer n° 403.

É previsto ainda que a duração do Curso de Psicologia seja de quatro anos para o Bacharelado e Licenciatura e, de cinco anos, para a formação de Psicólogos, incluindo os estágios.

Deve-se ressaltar que a resolução que criou este Currículo Mínimo, por sinal ainda em vigor, não prevê os conteúdos a serem desenvolvidos nas diversas disciplinas, nem as respectivas ementas. Da mesma forma não prevê a carga horária de cada uma delas.