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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.9 n.1 Brasília  1989

 

FORMAÇÃO DO PSICOLOGO

 

O currículo como objeto de pesquisa

 

 

Está em andamento uma proposta de mudança curricular cuja principal característica é transformar o currículo num objeto de pesquisa, envolvendo a comunidade docente e discente num trabalho conjunto. As diversas etapas de condução desta proposta e seu desenrolar são apresentados aqui pelo professor José Gonçalves Medeiros, coordenador do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

Tradicionalmente, chefe de Departamento e coordenador de Curso trabalham independentemente. O chefe do Departamento cuida das questões profissionais dos professores e o coordenador cuida das questões acadêmicas e das relações com os alunos. Na UFSC (SC), propusemos a formação de uma equipe de trabalho, acompanhada de uma proposta, de tal modo que chefe, coordenador de Curso e demais coordenadores (de pesquisa, de extensão, etc.) pudessem trabalhar coordenadamente a partir de uma proposta única de trabalho. Também propusemos a eleição dos membros da chapa em Assembléia Geral do Curso, de forma direta, com voto aberto, universal (tradicionalmente o voto é secreto). A comunidade acatou; apresentamo-nos, então, com uma chapa e um programa (não houve chapa concorrente) e fomos referendados pelo voto da maioria.

Uma das propostas de nossa equipe era trabalhar com o currículo que não mais satisfazia as expectativas de professores e alunos. Desde 1977, tem ocorrido, nos cursos de Psicologia, reformas curriculares, com mudanças em aspectos como: exclusão ou inclusão de disciplinas, alteração de nome de disciplinas, inclusão ou exclusão de pré-requisitos, remanejamento de disciplinas de uma fase para outra, etc. Em nosso levantamento, conseguimos identificar dez categorias relacionadas a alterações curriculares. No curso de Psicologia da

UFSC, desde sua criação até hoje (foi criado em 1977), arrolamos 108 alterações dessa natureza. Se, de fato, reformar currículo dessa maneira fosse eficiente, teríamos o melhor currículo do Brasil e não é o que ocorre. Essas alterações curriculares não mexem com a natureza do conhecimento que está sendo produzido (quando está) e nem mexe na relação ensino-pesquisa-extensão. Ocorrem reformas curriculares, mas a estrutura permanece a mesma. Diante disso, fizemos a proposta de modificar o currículo. Tenho enfatizado modificar e não reformar, pois entendo que na reforma ocorrem retoques com a manutenção da estrutura, impedindo avanços de qualidade.

Tradicionalmente, as decisões sobre modificações de currículo são tomadas nos Colegiados dos Cursos. Para evitar isso, propusemos uma mudança (informal) na composição do Colegiado. Legalmente, temos direito a 10 professores e 1 aluno, mas houve uma combinação interna para torná-lo paritário. Participam e votam 10 professores e 10 alunos e apenas 11 assinam (ou seja, os 10 professores e o representante oficial dos alunos). Chamamos a esta nova forma de organização de CURRICULINTE. Já que não tivemos uma Assembléia Nacional Constituinte livre e soberana, nem tivemos possibilidade de eleger uma Estatuinte Universitária (negada pelo Conselho Universitário), pelo menos, no curso de Psicologia, criamos a Curriculinte, livre e soberana. Estamos vivendo esse processo há aproximadamente um ano.

Para garantir a participação de toda a comunidade do Curso, procuramos trabalhar de forma que abrangesse o maior número possível de interessados. De que forma conseguiríamos este objetivo? Dividimos o processo em quatro etapas. Estamos, no momento, realizando a primeira que consiste no acúmulo de discussões gerais e de geração de subsídios para as etapas posteriores. Estes subsídios estão sendo buscados através dos 13 projetos de pesquisa, ora em andamento.

Gostaríamos de realçar a participação, sobretudo de alunos, nas assembléias que deliberam sobre o processo e nos projetos de pesquisa. Foram montados 13 projetos e conseguimos um envolvimento muito grande. Hoje contamos com aproximadamente 40 alunos de graduação trabalhando efetivamente nos projetos, com supervisão direta de 5 professores. Para os alunos é considerada uma atividade extra-curricular (não recebem créditos por este trabalho) e alguns projetos são financiados por bolsas de iniciação à pesquisa da Universidade ou através do FUNPESQUISA. Resultados parciais desses projetos foram, em 1988, apresentados na XVIII Reunião Anual de Psicologia de Ribeirão Preto. É nosso objetivo envolver cada vez mais a participação de alunos no processo de modificação curricular, de tal modo que, quando tivermos mudado o currículo, já tenhamos engajado uma grande parcela deles. São, ao todo, 260 alunos regularmente matriculados e quase 20% estão engajados no processo de produção de conhecimento sobre currículo.

Mais ainda, a participação dos alunos tem importância fundamental em termos pedagógicos, uma vez que procuramos associar diretamente o trabalho de pesquisa ao trabalho acadêmico. O currículo passa a ser objeto de pesquisa. Entendemos que o processo de modificação curricular deva se tornar um legítimo objeto de pesquisa, como qualquer outro que fazemos no Departamento. Os 13 projetos de pesquisa em andamento são: 1. Caracterização do corpo discente (que tipo de aluno entra para o curso, qual é a sua formação, as suas expectativas, de onde vem etc.); 2. Avaliação da relação entre as áreas de conhecimento biologia/piscologia (em alguns cursos existe uma quantidade exagerada de disciplinas biológicas, o que acaba gerando insatisfação entre os alunos); 3. Levantamento histórico do Curso e do Departamento de Psicologia. (Como o curso se desenvolveu desde sua criação? Quais são os grupos e que tipo de orientação de trabalho assumem); 4. Psicologia, Ciência e Profissão: o ponto de vista dos profissionais; 5. O pisicólogo de Santa Catarina: quem é, o que faz e como avalia sua formação (estes dois projetos — 4 e 5 — procuram verificar como estão trabalhando os psicólogos formados no nosso curso e nos cursos do País. O currículo atual está ajudando ou dificultando o trabalho de inserção na sociedade?); 6. Currículos comparados de Psicologia: Brasil versus América Latina (tentativa de detectar se existe predominância de uma ou outra área ou orientação técnico-científica no Brasil e em alguns países latino-americanos); 7. A atuação do psicólogo na rede pública do II grau (sabemos que existe hoje uma grande demanda em termos de professores para dar aula de Psicologia no II grau. A partir deste projeto, pretendemos reestruturar a parte de licenciatura do Curso de graduação); 8. Análise do atual currículo de Psicologia da UFSC: como ele é concretizado; 9. Uma análise do panorama das pesquisas em Psicologia no País (este projeto começou recentemente e é fundamental sabermos que rumo toma a pesquisa, que tipo de conhecimento está sendo produzido, a quem ele está servindo etc); 10. O que fazem os psicológos que não se enquadram nas áreas tradicionais (clínica, organizacional, escolar)? ; 11. A contribuição do psicólogo em equipe interdisciplinar; 12. Um procedimento para identificar alternativas socialmente relevantes de atuação do psicólogo junto à população; 13. Formação e atuação do psicólogo: levantamento bibliográfico.

Após a realização destes projetos de pesquisa e recorrendo a outros dados a respeito da profissão no País, entraremos na segunda etapa do processo de mudança curricular. A Curriculinte vai avaliar os dados produzidos pelas pesquisas e divulgá-los junto à comunidade. Depois de discuti-los, tiraremos as diretrizes gerais e objetivos do currículo e os levaremos para a Assembléia Geral, que se constitui na instância final do processo de decisão.

Ao mesmo tempo que se discute a nossa proposta de modificação curricular, rediscute-se na Universidade um projeto de reforma acadêmica. Uma das propostas, com grande probabilidades de ser aceita, é a autonomia dos Centros e dos Colegiados de Cursos. Uma das propostas é que o processo de modificação curricular se encerre nos Colegiados dos Cursos. Se de fato isto vier a ocorrer, teremos possibilidades de formular e de gerir o nosso próprio currículo, independente das instâncias superiores.

Na etapa 3, surgirão os encaminhamentos para questões como: como vão ser os conteúdos dos currículos e como vão estar integrados com os conteúdos de pesquisa e extensão? Qual vai ser a dinâmica do curso? O trabalho vai ocorrer somente em sala de aula ou fora dela? Em que proporção?

Na etapa 4 haverá a deliberação sobre propostas de currículo. A idéia inicial é terminar essas etapas até o próximo ano porque existe uma data limite na Universidade para que sejam feitas todas as propostas de alterações curriculares a serem implantadas no ano seguinte. Particularmente, não acredito que seja possível terminá-lo. Este trabalho deve ocorrer normalmente e sem atropelos. Por que não demorar mais tempo e torná-la uma proposta que possa servir de modelo para outros cursos de Psicologia do País?

Uma dificuldade que temos enfrentado, antes mesmo de começar a implantar mudanças, é a pouca participação dos professores. Uma estratégia é envolvê-los cada vez mais nos trabalhos de pesquisa, o que não está sendo fácil conseguir. Outra questão delicada que não abordamos ainda é a avaliação do corpo docente.

Para finalizar, um recado: existe hoje um movimento denominado Articulação Nacional pela Melhoria da Qualidade do Ensino da Psicologia, em fase de articulação com os cursos de psicologia do País. Esperamos que esta articulação possa também se tornar uma forma de pressão nos Departamentos, para envolver os professores nos projetos de melhoria do ensino. Temos, hoje, professores que nunca pensaram em fazer pesquisa e que já nos têm procurado. Estamos apostando que professores e alunos vão envolver-se cada vez mais e que isso possa modificar as estruturas departamentais em direção a um ensino competente, politico e voltado para o interesse da maioria da população brasileira.