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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.9 no.1 Brasília  1989

 

Reelaboração corporal

 

 

Leide Marques Peralva

 

 

Quando observei que a cliente M.J. estava desenvolvendo uma alta percepção do seu corpo, ela riu e exclamou: "Cansei do anonimato A frase traduz, exatamente, o objetivo do trabalho de Reelaboração Corporal. A pessoa vive do mesmo jeito que anda, respira, sente e usa o corpo. E ao tomar contato com o corpo e reconquistar seus movimentos, amplia a percepção de si e das relações, caminhando para uma reelaboração da história emocional e da vida atual. Este processo visa, essencialmente, resgatar a individualidade, daí a pertinência da observação da M.J.

Comecei este trabalho em 1979. em Brasília. Com formação e experiência em educação artística, especialmente nas áreas de música e expressão corporal, desenvolvi a proposta e iniciei o trabalho de Reelaboração Corporal a partir da demanda identificada por profissionais de psicoterapia.

Estes profissionais utilizavam e utilizam, basicamente, a linguagem verbal nas psicoterapias, constatando, cada vez mais, entre seus clientes, a necessidade de um trabalho corporal simultâneo, que apóie e impulsione o processo de crescimento da pessoa. Desta forma, desde sua origem, a Reelaboração Corporal teve o caráter de terapia corporal, tendo como clientela homens e mulheres, na faixa de 18 a 65 anos.

A partir de propostas teóricas, métodos e técnicas relacionadas à eutonia, expressão corporal, antiginástica, musicoterapia, aprendizagem e criatividade, desenvolvi a proposta da RC — Reelaboração Corporal. Esta proposta consiste numa forma de conjugar estas abordagens, de forma a propiciar ao aluno/cliente um novo aprendizado de seu corpo no espaço e na vida. Ou seja: uma nova elaboração da pessoa, desencadeada pela reconquista da possibilidade de sentir e ouvir o corpo.

No decorrer de nove anos de experiência, foram testadas diversas hipóteses. Elas estão interligadas e as principais são as seguintes:

I. Quando há um comprometimento (bloqueio) do processo de crescimento da pessoa, sua retomada depende de uma reelaboração corporal que propicie o resgate da individualidade.

Neste processo, é necessário que a pessoa se reconheça enquanto espécie animal, enquanto indivíduo e membro de uma cultura.

Enquanto espécie animal, diferenciada das outras, o ser humano tem uma forma própria de andar, articular a coluna, sincronizar braços e pernas etc. Torna-se necessário que a pessoa reaprenda os elementos básicos da arquitetura humana em movimento, como engatinhar, respirar e andar, pois estes elementos foram reprimidos e tornados inconscientes.

Ela necessita saber, também, se reconhecer enquanto indivíduo que, além desta estrutura arquitetônica, tem uma história individual e uma história cultural.

Quando sua identidade enquanto espécie e indivíduo está comprometida, torna-se necessária uma reelaboração que propicie a retomada de seu processo de crescimento. Para isto, é preciso:

. a decodificação de todas as articulações e movimentos que fazem do corpo humano um corpo distinto entre as espécies animais;

. a conscientização de sua imagem interna, assim como de dinâmica entre esta imagem e a construção do corpo;

. a reelaboração corporal propriamente dita, através da reaprendizagem das formas de sentir e usar o corpo. Neste processo, a respiração e o andar desempenham um papel fundamental. A medida que recupera e recria a fluência da respiração e do andar, em harmonia com o movimento do corpo como um todo, o indivíduo desenvolve, também, a percepção da relação entre a respiração, o andar e o processo de vida individual e coletiva.

II.  Conjugação do trabalho respiratório às técnicas de eutonia voltadas para a reabilitação da tonicidade muscular. Para a ampliação da consciência corporal e dissolução de tensões crônicas, torna-se imprescindível a conjugação de exercícios respiratórios e exercícios de eutonia, através do alongamento da musculatura e da inervação, recuperando-se a circulação sanguínea e a tonicidade muscular. Neste processo, há o restabelecimento, concomitante, do fluxo de informações entre o cérebro e as diversas partes do corpo, contribuindo, também, para o equilíbrio dos dois hemisférios cerebrais.

III.  Articulação entre a terapia corporal e outras formas de psicoterapia centradas na palavra, de forma a propiciar aos clientes um trabalho integrado e complementar.

Estas hipóteses têm sido testadas na prática, comprovando-se sua pertinência. Tenho recebido, sistematicamente, testemunhos de psicoterapeutas e clientes, no sentido de que a proposta de reelaboração corporal obtém resultados positivos na maioria dos casos. A RC promove uma redescoberta, um reencontro com o corpo e a história emocional presente no corpo. Ao retomar o contato com o próprio corpo, ao perceber e sentir este corpo, o cliente entra em contato com suas emoções mais profundas. Ao mesmo tempo, desenvolve condições de base e segurança para avançar no processo terapêutico, e passa a se expressar verbalmente com mais fluência, facilidade, em contato real consigo mesmo e suas relações.

 

A prática de RC

A RC pode ser entendida como um trabalho artesanal com o próprio corpo. Isto significa que a pessoa aprende, no decorrer da vivência, a revisar a maneira como elaborou formas de sentir e usar o corpo, e como efetivamente, construiu o corpo ao longo de sua história de vida. De forma semelhante ao trabalho artesanal, entra em contato com suas articulações, formas, movimentos, tensões, emoções e sentimentos. Gradativamente, percebe a relação entre os feixes musculares em movimento, a tensão e a respiração. Dia a dia vai encontrando uma nova maneira de sentir o corpo e o seu em torno

Na entrevista, o cliente trabalha a percepção de sua imagem corporal interna e externa. Quando o psicoterapeuta não comunica, anteriormente, se o cliente necessita de trabalho individual ou em grupo, é através deste contato que se estabelece a modalidade de trabalho.

Logo em seguida, o cliente entra em reelaboração corporal, através de aulas/sessões semanais de uma hora de duração, desenvolvidas no período de 1 a 3 anos. Trata-se de uma terapia corporal centrada na pessoa, sem modelos pré-determinados, mas apresentando um corpo de procedimentos, adaptados às necessidades de cada situação. Estes procedimentos estão voltados, em síntese, para a reconquista do uso do corpo, centralização, limites e criatividade.

O terapeuta trabalha com orientações verbais para a exceução de movimentos. Evita-se a utilização de modelos ou imagens, para que o aluno, ao invés de imitar ou envolver-se com uma imagem externa, possa realizar o exercício de dentro para fora, buscando suas próprias referências, em ritmo próprio.

Normalmente, cada exercício é realizado por três vezes. A experiência demonstrou que, na primeira vez, o aluno entra em contato com a proposta; na segunda, assimila; e na terceira realiza plenamente.

Toda a sessão está voltada para a fluência de respiração e o contato com o solo. A partir do relaxamento da musculatura da planta do pé e da articulação da coluna, são realizados exercícios de alongamento e articulação envolvendo todo o corpo, nos planos alto, médio e baixo. Por fim, o cliente vivencia o andar, incorporando neste movimento todo o trabalho da aula/sessão.

O cliente sempre é estimulado a desenvolver uma respiração fluente e sonora. Da mesma forma, é sensibilizado no sentido de perceber o reflexo de cada movimento no corpo como um todo.

Algumas vezes, os alunos dizem que estão se "alfabetizando corporalmente". É isto mesmo que ocorre em RC: o aprendizado das letras, palavras e da sintaxe própria do corpo. A decodificação e a recodificação dos movimentos corporais. Este processo inclui, também, os discursos verbais inscritos no corpo. A imagem ("alfabetização corporal") corresponde exatamente ao objetivo do trabalho: a reapropriação do corpo a partir do aprendizado, reelaboração e recriação de seus códigos, para que o indivíduo possa se perceber, sentir e expressar. Ou seja: contribuir para o resgate da individualidade.

Este trabalho só pôde avançar à medida que teve a participação crítica dos psicoterapeutas envolvidos, discutindo e avaliando o desenvolvimento da proposta de RC e o processo de cada cliente.

Muitas experiências de terapia corporal vêm sendo desenvolvidas no País e no exterior. Seria importante, na presente etapa, ampliar a reflexão sobre estes trabalhos, avaliando também as formas de conjugar terapias verbais e corporais.

 

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