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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.9 no.2 Brasília  1989

 

Como se constrói a subjetividade das classes populares?

 

 

Jurandir Freire Costa é médico psiquiatra, pscinalista, professor no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, autor de Ordem médica e ordem familiar (Graal, 1981), Violência e Psicanálise (Graal, 1984), Psicanálise e contexto cultural (Campus, 1989). No primeiro semestre deste ano, foi demitido do Hospital D. Pedro II, no Rio de Janeiro, junto com sua equipe de Saúde Mental, onde vinha desenvolvendo há vários anos um trabalho de tratamento e de pesquisa junto aos pacientes psicóticos internados.

Seu depoimento parte justamente de uma visão crítica das instituições psiquiátricas, assim como das intervenções burocratizantes dos técnicos de Saúde Mental. A partir desta crítica, situa a importância, a contribuição e a estratégia da psicoterapia, em particular da Psicanálise, em suas possíveis contribuições ou benefícios para a vida dos pacientes como também para a sociedade como um todo.

"Penso que quando faço uma certa defesa da instituição psiquiátrica isso não significa que eu queira conservar o asilo como tal. Em primeiro lugar, quando falo de Psiquiatria, atribuo à palavra um sentido absolutamente diverso daquele que tem uma codificação universitária transmitida na formação médica através de manuais. Defendo que deve haver e deve continuar havendo a possibilidade de acolhimento específico para determinados momentos da vida das pessoas, que podemos chamar de psicoses ou de formas anômalas de viver as experiências humanas, no sentido de variação individual em relação a tipo específico.

Nem todo mundo está preparado e equipado para conviver de forma produtiva com esses desvios da racionalidade. Por causa disso, não acredito que basta reenviar essas pessoas para o seu meio familiar e social para que tudo esteja solucionado. Não sou a favor dessa espécie de diluição na qual se pressupõe que todo mundo tem experiências humanas similares. Por outro lado, não posso aceitar e caucionar a idéia do asilo, porque ele é o leão de chácara do que a sociedade tem de pior. Neste caso, o asilo deve ser evidentemente destruído, mas não acho que nada deva ser posto no lugar.

Pelo contrário, a sociedade deve criar espaços diferenciados e plurais para as mais diversas experiências de vida, porque o ser humano se caracteriza justamente pela pluralidade. Eu falo de lugares para convívio, de lugares para viver. Eu me sirvo de qualquer neologismo ou analogia que metaforize essa idéia de espaço de acolhimento, para distingui-la da burocracia asilar psiquiátrica.

A partir da minha experiência de trabalho com asilos psiquiátricos, na qual recorro à Psicanálise, acredito que não se trata de deitar a população no divã. Para escapar deste equívoco, acho que devemos investigar e ter certa abertura intelectual para a experimentação, para o advento do novo, sobretudo no caso de trabalho na rede pública com a população que não seja a de consultório particular.

No estudo sobre a geração AI-5, no livro "Violência e Psicanálise", tentei mostrar porque ocorreu um boom psicanalítico, esse pedido tão grande de Psicanálise no Brasil. Neste caso de consultório particular, não precisamos criar outro dispositivo porque as respostas que vêm sendo dadas num certo nível, quer se mostrem mais ou menos eficazes, já estão codificadas, sabe-se qual é o caminho da pesquisa.

Entretanto, não é o que acontece nas redes públicas de Saúde Mental. Aí precisamos começar a refinar o instrumental de intervenção, descobrir categorias e noções novas que permitam levar a prática adiante. Para tanto, está faltando elaborar mediações teóricas que possam vir a provar a possibilidade da prática, neste tipo de atendimento, o que até agora foi tratado com certa negligência teórica.

Em "Psicanálise e contexto cultural", considero que a mediação teórica básica que tenho encontrado — sem contar outras possíveis que não tenho pesquisado — é a do conceito psicanalítico de imaginário. É através do imaginário que podemos entender a construção da subjetividade historicamente contingente e socialmente determinada. Evidentemente, quando faço essa afirmação não quero dizer que estou postulando algo que na pessoa ou no aparelho psíquico seja universal, desde sempre e para sempre. Restrinjo essa afirmação no meu estudo a uma questão metodológica. Em face de determinados problemas e de determinados objetivos, como o de estudar a psicoterapia em situações culturais diversas e formações históricas de subjetividade, então, metodologicamente, postulo certas categorias como universais porque funcionam como invariantes, enquanto outras funcionam como variáveis. Estas variações são capazes de intervir na alteração das técnicas, dos métodos e até da própria maneira teórica de como se aborda esse problema todo.

Posso falar de um dos aspectos específicos deste trabalho que é a análise da noção de doença dos nervos. Esta é uma noção corrente na população e, por isso, procurei estudar a semântica, os sentidos do uso da palavra, no contexto em que ela expressa. Através disso, pude perceber o modo como a subjetividade se organiza (o que evidentemente está sujeito a correções e críticas, minhas e dos outros). Devido à variação subjetiva das formas imaginárias de apreensão da identidade, defendo a tese radical de que devemos abandonar de vez a noção de essência da doença ou de essência do doente. Conseqüentemente, a universalidade de métodos e a universalidade de tratamento são balelas.

Quero registrar uma última palavra que não vale somente para os psicólogos, e mais especificamente para os psicólogos clínicos, mas também vale para os psiquiatras e qualquer psicanalista. Em certo tipo de trabalho psiquiátrico institucional, o resultado mais pernicioso possível é essa espécie de divisão burocrática de saber. Se o leitor quiser, essa retalhação do psiquismo ideal conforme áreas de competências e atribuições técnicas. Além de ser absolutamente dispensável, isso está sendo responsável por uma espécie de incapacidade de os trabalhadores de Saúde Mental nos locais coletivos conviverem de uma forma mais produtiva no sentido de auxiliarem as pessoas. E como se pensássemos que a experiência humana da loucura pudesse ser equiparada à fabricação ou conserto de automóveis, onde existe técnico especializado em eletricidade, em mecânica e assim por diante. Isso não existe porque devemos criar um saber que poderá ser exercido por todos os membros da equipe, conforme o momento do cliente; conforme o momento da instituição e conforme a necessidade da história dele. Jamais previamente a qualquer destes níveis e em função de competências burocráticas".