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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.9 n.2 Brasília  1989

 

Uma encruzilhada cultural: entre o espiritual e o nervoso

 

 

Benilton Carlos Bezerra Júnior é professor no Instituto de Medicina Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e médico psiquiatra no Ambulatório do Centro Psiquiátrico Pedro II. Seu depoimento revela quais são as dificuldades de atendimento às classes populares que apresentam representações e explicações religiosas sobre o espírito, as quais freqüentemente colocam novas questões e desafios ao discurso e prática psicoterápicos.

Para começar, duas cenas ocorridas no Ambulatório do Centro Psiquiátrico Pedro II, nos subúrbios do Rio de Janeiro:

Cena 1 — O médico, na entrevista inicial, pergunta à mãe que traz seu filho à consulta: "Então, o que seu filho tem?" A mãe responde: "Doutor, meu filho tem bastante mediunidade e um pouco de nervoso".

Cena 2 — Trata-se de uma sessão psicoterápica ocorrida algum tempo depois de um período de ausência da cliente, que se afastara do tratamento para "fazer a cabeça". É umbandista, veste-se de branco, e está nesta sessão falando das razões que a levam a recorrer à mãe de santo e à psicóloga concomitantemente: "lá eu cuido do espírito; aqui, cuido do corpo".

Creio que cenas deste tipo não devem ser raras. Pelo contrário, imagino que para aqueles que têm olhos e (sobretudo) ouvidos atentos, eles devem evocar experiências próximas, ocorridas no cotidiano da assistência pública. De todo modo, penso que são ricas em sugestões acerca do tema proposto e, entre as várias observações que poderiam inspirar, gostaria de comentar algumas.

A primeira coisa que atrai a atenção é esta espécie de encruzilhada cultural em que os personagens parecem se encontrar. Diante de uma situação de sofrimento psíquico, duas ordens de significação se apresentam como matrizes de ordenação simbólica da experiência que ainda não tem nome, é ainda dor, mal-estar. A "mediunidade" e o "espírito" reivindicam uma explicação sobrenatural, apontam para perturbações que se situam para além da individualidade de cada sujeito, na rede de relações que o ligam a esta outra esfera de existência, o sobre-humano, o divino. São estas relações que estão em crise, são elas que reclamam atenção e cuidado. Já o "nervoso" e o "corpo" dizem respeito a outro sofrimento, e suas queixas têm outro destinatário. Quem padece aqui é o sujeito na sua singularidade. É a sua vida que está em questão: as zonzeiras, as dores que sobem e descem, os nervos que pulam, a vontade de quebrar tudo, todo o discurso da (por nós) chamada doença dos nervos remete ao sentimento de fracasso do sujeito em lidar consigo próprio e com suas circunstâncias. Ele revela o conflito que, o sujeito bem sabe que é dele, se passa nele (a experiência nos ensinou), que ele não confunde com doença física. Daí o destinatário de sua demanda ser outro: não é o agente religioso, tampouco é o médico clínico, é alguém que entenda e possa acolher esta peculiar demanda. Creio que a cronificação dos pacientes que apresentam quadros como este, nos ambulatórios clínicos e nos atendimento psiquiátricos tradicionais, é testemunha da insistência desta demanda em se fazer ouvir na sua especificidade. No CPP II, clientes que durante anos repetiram sem cessar estas queixas, mudaram seu discurso quando se lhes foi oferecida uma escuta que, sem esperar um vocabulário psicologizado e intimista, procurava estar atento àquilo que na superfície do "nervoso" revelava a trama pulsional "profunda".

Estamos assim diante de um fato histórico, com toda a riqueza que este adjetivo pode conter. Percebemos nestas cenas o impacto de algumas transformações estruturais por que passa o mundo moderno, principalmente nos centros urbanos: a fragmentação dos universos simbólicos, com progressiva hegemonia do discurso científico em áreas de existência antes reservadas a outras agências nômicas, como a religião, a tradição, a família. Mas o mais curioso é que os efeitos destas transformações emergem no terreno da idiossincrasia, lá mesmo onde o social parece ausente. Daí o desafio que nos é dirigido. Somos nós os profissionais do idiossincrático. As relações entre a prática psicoterápica e o contexto cultural dizem respeito, portanto, a todas as dimensões teóricas, técnicas, políticas, etc, que emergem destas mudanças e se expressam diante de nós como um modo de o sujeito se defrontar com seu sofrimento.

E nesta encruzilhada, nós, profissionais, também nos encontramos. De um lado,temos defendido com ardor a universalização dos melhores recursos terapêuticos à nossa disposição. Isto nos tem feito elaborar propostas assistenciais que comtemplam o atendimento psicoterápico para todos. Por outro lado, nos angustiamos com as implicações deste movimento. Tornamo-nos, de algum modo, agentes do processo de psicologização do cotidiano, cuja dimensão ideológica normalizadora não nos escapa. Nas discussões a respeito, parecemos às vezes nos sentir num mato sem cachorro: se não respondemos às demandas, estamos excluindo a população do usofruto de bens a que apenas a elite tem acesso; se respondemos, é com a mão pesada do etnocentrismo dos modelos hegemônicos. Situação típica onde um falso problema, que embaralha qualquer resposta, nos leva a uma aflição paralisante.

Na realidade, há uma enorme riqueza de questões a serem exploradas neste quadro. Cenas desse tipo abrem a porta a investigações acerca dos modos de construção das subjetividades numa sociedade tão marcada por diferenças como a nossa;perguntas surgem acerca da adequação de procedimentos técnicos tidos como universais e que parecem pouco eficazes junto à população trabalhadora; estudos podem ser elaborados com a perspectiva de modificar a oferta de serviços de saúde mental, ainda calcada no modelo médico-hospitalar, e assim por diante. É preciso trazer os achados e embaraços da prática psicoterápica para o plano das indagações das pesquisas. Já existe atualmente entre nós uma produção que toma nossa intervenção (junto ao nossos clientes e instituições e suas características) como objeto de curiosidade e reflexão científicas. Este movimento deve ser incentivado não só nas instituições assistenciais como nas de formação de profissionais. A possibilidade de produzirmos novos horizontes para a nossa prática depende deste esforço.