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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.9 n.2 Brasília  1989

 

LEITURA

 

As razões de uma Ética

 

 

Vera Lucia Colucci

 

 

"Psicanálise e Contexto Cultural", de Jurandir Freire Costa (Editora Campus, 1989) é fruto de investigação realizada durante cinco anos no ambulatório psiquiátrico do Hospital D. Pedro II, Rio de Janeiro. Se não foi possível dar continuidade a esse trabalho devido ao expurgo de toda a equipe responsável, inclusive o autor, foi possível, no entanto, transformá-lo em tese de livre-docência defendida na UERJ e agora apresentado ao público na forma de livro.

De um modo simples, mas enfrentando as dificuldades que o tema exige, Jurandir nos faz companheiros de suas investigações extra-muros da psicanálise. Seu trabalho faz eco a muitas das inquietações a que está sujeito o psicoterapeuta que trabalha atendendo a população pobre, como por exemplo: dificuldades que surgem do impacto das diferenças culturais entre o terapeuta e o paciente. Seu estilo despojado contribui muito para questionarmos preconceitos teóricos, já suspeitados, e a quebrar ícones sagrados, numa prática que se pretende universalista sem questionar suas próprias condições de produção. O livro de Jurandir é bem-vindo porque oferece uma interlocução ao trabalhador de saúde mental e avança em questões teóricas de modo estimulante. Freqüentemente com falta de referentes em que se espelhar, uma vez que a maior parte das bibliografias trata tanto da psique individual quanto do acontecer em abstrato, o trabalhador de saúde mental tem agora um livro sério que fala das "coisas da gente" e que convida ao estudo e à continuidade de pesquisa.

Logo na Introdução somos informados sobre o roteiro geral de reflexão que o autor empreende, bem como de suas principais motivações. É aí também que vamos tecendo nossas identificações. Jurandir fala em suas razões da razão e das razões do coração para desenvolver seus estudos. Entre as primeiras está, por exemplo, a curiosidade de saber até onde pode ser estendida a psicanálise sem perder suas raízes; como é possível dar conta da relação entre sujeito e cultura sem se afastar da psicanálise? O autor toma como guia de suas incursões o próprio Freud, além de Lacan e Wittgenstein. Com o conceito de ego-narcísico imaginário, Jurandir constrói a chave para entender como a diversidade sócio-cultural marca o sujeito, mantendo, ao mesmo tempo, o estatuto de sujeito do desejo. "Este ego, que é o que permanece na mutabilidade contínua do tempo, vai ser articulado às identidades socialmente construídas, em particular àquelas das camadas populares. Tanto a conduta sadia como a doente são igualmente prescritas pelos códigos sócio-culturais. Levando isso em conta, como se pode pensar qual enquadramento mais adequado à escuta, à fala e à interpretação?". Sua conclusão é pelo grupo psicoterapêutico.

Do conceito teórico metapsicológico para a teoria da técnica, Jurandir inquieta-se quanto aos destinos de sua prática: "por que todo o enorme esforço intelectual que despendemos, tentando compreender psicanaliticamente o sujeito, é drenado exclusivamente para um minúsculo grupo de pessoas? Por que outras pessoas que não as de nossa clientela privada, não teriam direito a ocupar nossa atenção e nosso interesse?". É aí que se fundam suas razões do coração, onde se constrói a posição ética do autor. Tendo como referência Hannah Arendt, restabelece a dignidade do político e afirma que é só o político que pode fornecer as condições para uma reflexão sobre o bem comum, pois é "no espaço do político que o homem age e fala sobre aquilo que diz respeito a todos".

Pensar sobre as condições do psiquismo humano articuladas às condições de vida que produzem uma dada subjetividade - este é o desafio que Jurandir enfrenta. Não se trata de pretender resolver as injustiças do mundo, coisa a que a psicanálise nunca se propôs. Não se trata igualmente, por outro lado, de se oferecer um tratamento universal para toda e qualquer pessoa, em toda e qualquer circunstância, avisa o autor. A partir da nomeação do sofrimento psíquico como "doença dos nervos", tão comum à população que freqüenta os ambulatórios, o autor vai afirmar a particularidade desse discurso que se inscreve num corpo-trabalho, muito mais do que no corpo-prazer das elites.

" Psicanálise e Contexto Cultural ..." se apresenta em cinco capítulos, cujos títulos têm a seguinte ordem: "Psicoterapia de Grupo: Questões Iniciais"; "Psicoterapia e Doença dos Nervos"; "Considerações sobre os Grupos"; "O Grupo no Pensamento de Freud" e "Imaginário Psicanalítico e Psicoterapias em Grupo".

Num estilo que vai permear todo o trabalho, ora menos ora mais inflamado, Jurandir faz críticas indignadas aos preconceitos sustentados pelo imaginário das psicoterapias, os quais impedem o desenvolvimento da prática junto às camadas populares. É a psicanálise e os produtores desse saber e dessa prática que devem procurar responder às dificuldades encontradas. Não é o paciente que é inadequado, que não sabe simbolizar ou que não entende o que "a gente diz". O erro não pode estar com o paciente!

Toda vez que se pretenda universalizar o particular, domesticando-o com preceitos que nada têm a ver com as condições de sua produção, lá estará Jurandir num trabalho de desmontagem do discurso. Assim acontece com as concepções sobre a doença; a crença na abstração formal do par tarapeuta-paciente, assim como na existência de um modelo único de comunicação humana, independente dos códigos e estilos peculiares a grupos e sujeitos específicos. O mesmo trabalho crítico vai ser feito com as concepções essencialistas sobre grupo psicoterapêutico. O autor realiza verdadeiro combate às teorias que postulam um psiquismo para o grupo tal como é concebido para o indivíduo. O grupo também não é visto como uma forma menor de psicoterapia, mas como o enquadramento indicado para certos tipos de pessoas, com certas problemáticas, como é o caso dos que sofrem da "doença dos nervos", amplamente estudada neste livro.

Será nos dois últimos capítulos, no entanto, que desenvolverá com maior densidade as questões teóricas da psicanálise. Em "O Grupo no Pensamento de Freud", Jurandir vai mostrar como os chamados textos sociais de Freud, na verdade, não trazem qualquer contribuição para uma teoria do social, mas oferecem, isto sim, inovações metapsicológicas preciosas, em especial a do ego narcísico.

E em "Imaginário Psicanalítico e Psicoterapias em Grupo", o autor trabalha a noção de imaginário e, para isso, recupera o pensamento sobre a imaginação tal como foi concebido por figuras expressivas da filosofia. E nesse percurso, Jurandir vai garimpando a diferença entre sujeito e ego, bem como sua articulação. É com a noção de ego-narcísico imaginário que o autor dá conta da variação cultural das identidades subjetivas, sem contradizer a hipótese da invariância de estruturas psíquicas do sujeito. Todo este trabalho de articulação visa a fundamentar a tese inicialmente colocada, a da indicação da psicoterapia de grupo para as pessoas cujas marcas culturais foram referidas ao longo do texto.

Um alerta e uma ressalva, no entanto.

O alerta: o próprio Jurandir deixa claro, logo de início, que ficarão de lado em seu estudo alguns teóricos de grupo importantes, assim como não trabalhará questões como a transferência, a interpretação, a indentificação. Assim, aqueles que começam a leitura com um alento — finalmente um livro que fala das nossas coisas! — vão também sentindo que há muito chão a percorrer. Da derrubada de tão importantes concepções, tais como a duvidosa diferença entre psicoterapia e psicanálise, enquadre, a doença como discurso, etc, novas perguntas surgem e antigas questões reaparecem...

A ressalva: Não poucas referências a conceitos utilizados pedem maior explicitação, desenvolvimento. Muitas vezes ficamos desejando buscá-las no texto original, a tese.