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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.9 no.3 Brasília  1989

 

Pesquisa em psicologia educacional: uma agenda para o futuro

 

 

Juracy C. Marques

Mestrado em Psicologia Social e Personalidade Instituto de Psicologia - PUCRS

 

 

Cento e trinta milhões (130.000.000) de cidadões vivem no Brasil, dos quais setenta e um milhões e cinqüenta e seis mil (71.056.000) têm menos de dezenove anos (51,49%). (IBGE/MEC/SG, 1984). Esta população seria teoricamente aquela para a qual o sistema educacional deveria estar voltado. Na verdade, o sistema escolar trabalha com esta faixa etária, só que numa severa distorção quanto à correlação idade versus série (Tabela 1). O sistema educacional brasileiro tenta oferecer educação básica para suas crianças e jovens, dos sete aos quatorze anos, que se caracteriza como sua educação compulsória. Todavia, esta pescrição legal não é atendida porque, pelo menos em parte, muitas crianças desta faixa de idade não permanecem na Escola e muitas outras nela permanecem por oito anos, mas em condições desfavoráveis, pela repetição das séries iniciais, produzindo distorção idade/série e acarretando o ônus da ineficiência do sistema. Ver tabela 1 na página 32

 

 

A seleção mais prejudicial — na verdade exclusão — ocorre da 1ª para a 2ª série do lº grau de Ensino, quando mais da metade das crianças (54,6%) naõ são promovidas para a 2ª série. Em outras palavras, a metade dos alunos são descartados no início de sua escolaridade.

Somente nos finais da década de 70, os educadores passaram a se preocupar seriamente com este problema. Muitos estudos, pesquisas, levantamentos e análises foram feitos e pode-se afirmar que houve uma mudança de mentalidade no sentido de que a educação deveria se voltar para esses excluídos (3). Estes estudos mostram, claramente, que as crianças procedentes dos segmentos populacionais de baixa renda são aquelas que têm sido, de longa data, as excluídas. Como conseqüência, já nos começos da década de 80, levantou-se uma onda de denúncias, por parte dos educadores, clamando por melhores escolas para atender a este segmento da população escolar.

Sem dúvida, o nível de consciência entre os educadores aumentou sensivelmente quanto ao aspecto de que a educação necessária e urgente deveria atender às camadas majoritárias e nao às minorias privilegiadas, situadas nos extratos sócio-econômicos mais altos. Desse modo, para que a Escola seja democrática, seus esforços devem voltar-se para os alunos pobres, provenientes de famílias de baixa renda.

Entretanto, a mudança de mentalidade "per se" não mudou o panorama ou o cenário da realidade educacional em si. Existem centenas de milhares de crianças a serem educadas. As escolas e professores, apesar de seus números expressivos e crescentes, não se mostram suficientemente eficazes para manter as crianças no sistema escolar, oferecendo-lhes a educação básica a que têm direito. E a população escolar, como era de se esperar, cresce em proporções maiores, tornando o número de escolas e professores sempre insuficiente (Tabela 2 acima).

 

 

Por outro lado, existem flagrantes discrepâncias regionais no desenvolvimento educacional, se compararmos as várias regiões do País, de acordo com vários indicadores. É óbvio que estes correlacionam-se com outros índices de desenvolvimento sócio-econômico. A região Sudeste é a mais desenvolvida, enquanto a região Norte o é menos, sob a ótica das análises educacionais. Tome-se como exemplo a educação pré-escolar, para ter-se uma idéia das marcantes diferenças regionais. A regiões Norte e Centro-Oeste são as que apresentam menor número de alunos neste nível, enquanto as regiões Sudeste e Sul são as mais bem aquinhoadas, ficando a região Nordeste como intermediária. Este exemplo foi escolhido porque aos anos 80 ficou evidente que para melhorar o desempenho escolar nas primeiras séries do 1º grau (ponto crítico como já verificamos), o aluno ao chegar à Escola já deveria ter pelo menos dois anos de pré-escola (20) Ai adquiriria motivação para ler e escrever e desenvolveria as habitalidades indispensáveis, uma vez que seu ambiente familiar nem sempre favorecia tais aprendizagens.

É interessante assinalar que as mesmas diferenças regionais ocorrem, se compararmos os dados de diferentes níveis de escolaridade: 1º, 2° e 3º graus de Ensino (bem como os de pós-graduação). Assim, os programas de doutorado no País se distribuem guardando as mesmas características de privilegiamento ou escassez de ofertas para as mesmas regiões. É claro que o nível de desenvolvimento educacional depende mais fortemente de variáveis do macro-contexto do que daquelas ligadas aos aspectos micro-educacionais .

Tomando outra linha de análise, pode-se verificar, através da história da Psicologia Educacional, o quanto a Psicologia esteve (e ainda está) divorciada dos muitos e diversificados desafios regionais.

Nos primeiros tempos (1906-1930), durante a Primeira República, quando o modelo econômico era o de exportação agrícola e o analfabetismo dominante, os trabalhadores não apresentavam mão-de-obra qualificada e a grande maioria da população não freqüentava escola. Não havia formação de psicólogos no País e os poucos psicólogos existentes obtinham sua educação na Europa. Já em 1906 (16:74) havia no Rio de Janeiro um laboratório experimental, sendo que em São Paulo, em 1914, surge um laboratório de Pedagogia experimental. Havia naquela época uma certa efervescência no campo da psicologia educacional. Lourenço Filho, em 1927, inicia seus estudos relativos ao famoso "Teste ABC" de aptidão para a leitura.

Numa segunda fase (1930-1960), o modelo econômico muda para atender à crescente industrialização e urbanização do País, que passava a exigir uma mão-de-obra mais qualificada. A Psicologia Educacional abandona suas raízes européias e começa a sofrer de forma dominante a influência norte-americana. O condutismo, a psicometria e a psicologia experimental encetam sua caminhada como tendências marcantes. Por outro lado, a psicologia clínica, seguindo a orientação psicanalítica, implanta o modelo médico de diagnóstico e tratamento para crianças com distúrbios emocionais (16:75). É nesta fase que se cria a primeira, Universidade brasileira-São Paulo, USP, 1934 — com uma cadeira de Psicologia Educacional, sendo sua catedrática a Profa. Noemi Rudolpher. É desta época, também, a criação da Escola Guatemala, no Rio de Janeiro, como escola experimental (sob os auspícios do INEP), com um serviço de orientação psico-pedagógica.

A terceira fase (1960-1977) é sinalizada pelos governos militares com uma forte aliança com o capital internacional e contra o populismo, estabelecendo um clima de repressão, exercendo controle estrito sobre escolas e professores. A Lei de Diretrizes e Bases nº 5692/71 foi editada neste período. Os psicólogos são chamados a trabalhar no sistema escolar, tendo como pressuposto que eles trariam melhores níveis de eficiência para as escolas, através de sua competência técnica, não só pela aplicação de testes, mas pelo uso da "ideologia adaptativa" na solução dos problemas. Este é um período da história da educação que se caracteriza pelo acentuado tecnicismo (14:196). Tem como uma de suas faces a simplificação e a fragmentação das tarefas, com o objetivo de controle do estrutural sobre o institucional. A Psicologia Educacional se mostra como "uma prática profissional que serve à ideologia dominante, removendo as distorções, buscando harmonia, evitando conflitos e excluindo todos aqueles que não sigam o padrão" (16:1).

E perfeitamente compreensível que tal abordagem psicológica em nada contribua para mudanças sociais e se constitua, até mesmo num empecilho no sentido de fazer brotar os interesses da criança. Muito menos se pode esperar que ela contribua para o desenvolvimento de uma pesquisa autóctone, tão divorciada se encontra das reais necessidades da comunidade a que serve.

 

Perda de status da abordagem psicológica em educação

Biaggio (2) aponta três influências principais na história da Psicologia brasileira: 1) suas origens na Filosofia, com suas ligações com a Religião, como parte do pensamento ocidental que herdamos dos portugueses que controlaram o País, desde o descobrimento (1500) até sua independência (1822) e continuaram a ter influência cultural sobre nós até muito depois; 2) a influência da Educação na Psicologia: antes de 1934 não existia Universidade no Brasil (como já foi mencionado), ainda que existissem algumas escolas e faculdades independentes nas áreas do Direito, Filosofia, Engenharia e Ciências Médicas. Os primeiros laboratórios de Psicologia surgiram em conexão com as Escolas Normais e estavam voltados para a formação de professores; 3) a outra influência vem das ciências médicas, quando os primeiros cursos de Psicologia foram criados, nos fins da década de 50, e pelo menos nas duas décadas seguintes, a maioria dos professores eram médicos e, em especial, psiquiatras e psicanalistas. Isto levou a uma supervalorização da psicologia clínica e da psicoterapia, como o principal objetivo a ser alcançado pelos psicólogos (2:79-80).

A partir de 1970, a tradição das mútuas influências entre Psicologia e Educação sofre um corte. As Escolas Normais foram extintas pela Lei nº 5692/71, dando lugar à Habilitação Magistério, ao nível do Ensino de 2º grau, como preparação de professores para as séries iniciais da Escola de lº grau. Uma década antes era promulgada a Lei nº 4119/62 que regulamenta tanto os cursos de formação de psicólogos quanto o seu exercício profissional. Deste modo, nos anos 70, os psicólogos estavam não só independentes e emancipados como profissão e área do conhecimento, mas sobretudo, em vista de seu desligamento recente, não mais desejavam aproximações que pudessem reatar suas relações do passado com outras áreas do conhecimento — principalmente as de Filosofia e Pedagogia. A conseqüência tem sido um distanciamento que dificulta a execução de projetos que, por sua própria natureza, são na sua essência interdisciplinares.

Não obstante, existem outros fatores que, com o decorrer do tempo, passaram a contribuir de forma decisiva para que a Psicologia se tornasse uma área pouco atraente para os educadores.

Os estudos dos determinantes sociais, políticos, econômicos e culturais trouxeram novas perspectivas, não sendo desprezível seu papel de conscientização dos educadores quanto aos seus limites: o que podem e o que não podem alcançar quanto à mudança social através das situações de ensino. A rigor, mesmo o professor com excelentes níveis de competência profissional pouco pode fazer para mudar as condições materiais de existência com as quais os alunos lidam em seu cotidiano.

Outro fator que contribuiu para a diminuição da importância da abordagem psicológica em educação foi o movimento da Pedagogia da Libertação , entre eles (e talvez o mais famoso) "A Pedagogia do Oprimido", de Paulo Freire (8). Através de ensaios políticos-filosóficos de autores nacionais e estrangeiros, este movimento aposta muito mais nas mudanças das condições concretas da existência (fatores adversos externos) do que na modificação dos indivíduos (mudança de atitudes) para bem enfrentá-las. Apresenta um projeto emancipatório que tenta desvelar as contradições no interior das instituições sociais (e em particular da Escola) que reproduzem a ordem social dominante. A mensagem é a tranformação das condições sociais e históricas através da luta e da resistência. O oprimido toma consciência de sua situação e das relações de exploração social e econômica a que foi submetido pelas relações de classe que produzem desigualdades. Nesta perspectiva, o indivíduo não mais se vê como um elemento isolado no bojo das relações sociais. Ao contrário, as pessoas e suas trajetórias de vida, nas quais a educação (ou a falta dela) tem um papel importante, são consideradas sujeitos que lutam por sua libertação em meio às forças culturais, entretecidas por relações de poder e enfrentamentos políticos (9). Aumentar o nível de consciência social e política é um primeiro passo para a transformação de si mesmo ao mesmo tempo que transforma o mundo ao seu redor com o qual que se relaciona. Tal proposta assim configurada tem um poderoso apelo aos educadores, constituindo-se numa utopia inspiradora no trato das muitas dificuldades que são por vezes exasperantes, em especial para os educadores que desenvolvem sua prática a serviço das camadas sociais menos favorecidas.

Uma agenda para o futuro, neste aspecto, refere-se à construção de uma filosofia da ciência, na qual a teoria e a prática psicológica possam estar embebidas na cultura e no trato dos problemas sociais do cotidiano. Um exemplo disso é o estudo de Carraher e outros (5) que comparam as aprendizagens que ocorrem na Escola com aquelas que têm lugar nas ruas. Esta pode ser caracterizada como pesquisa socialmente relevante na qual "os problemas convergem para o objetivo de melhoria social e econômica das populações dentro de uma proposta democrática'' (2:94)

Alguns autores têm denominado esta abordagem como "uma ciência crítica realista", em contraposição ao que tradicionalmente se considera "trabalho científico". A questão principal, nesta controvérsia, entre uma abordagem realista da ciência e sua visão mais tradicional pode ser encontrada nas concepções que enfatizam os aspectos internos mais do que os externos como seu foco de interpretação.

Por um lado, temos as teorias que são orientadas por estruturas e processos que ocorrem na intimidade do sujeito. Por outro, estão aquelas teorias que destacam que o pensamento humano não é algo que exista na cabeça de um indivíduo, mas sim o produto social e histórico do esforço coletivo (19; 13).

Nesta perspectiva, "o que é considerado como processo psicológico desde o começo deriva-se do intercâmbio social. O locus da explicação das ações humanas muda da interioridade da mente para os processos e estruturas da interação humana. A pergunta do 'por quê' é respondida não com estados ou processos psicológicos, mas pela consideração da pessoa em relação" (10:273)

Num trabalho anterior (15) assumi essa perspectiva teórica para analisar, com uma metodologia de análise fenomenológica, o significado da inteligência para professores em formação (Cursos de Licenciatura). Verifiquei que o conceito de inteligência, além de seu significado cognitivo, compreende também dimensões políticas e existenciais.

 

A pesquisa experimental-quantitativa e as abordagens qualitativas

Um estudo da arte sobre evasão e repetência levou Brandão et alii (3) a revisarem 80 pesquisas sobre o tema, demonstrando que a interpretação teórica é dominante, mesmo quando os estudos se apóiam em dados empíricos. Esta revisão também mostrou que não é rara a combinação de métodos quantitativos e qualitativos. Os temas e problemas abordados em cada estudo (Tabela 3) de certo modo determinam a metodologia a ser utilizada pelo pesquisador. No entanto, o método quantitativo é ainda considerado como aquele que melhor garante e legitima a objetividade científica. A interpretação, porém, parece ser o ponto crítico de qualquer investigação e, provavelmente, é aí que reside a diferença entre uma pesquisa mais vigorosa e outra mais fraca.

 

 

Na avaliação de pesquisas pode-se observar que, entre as metodologias experimental-quantitativas e qualitativas não é incomum a existência de um fosso que só pode ser preenchido por uma rigorosa e potente capacidade interpretativa do pesquisador. "Para superar o empiricismo não basta o uso de princípios críticos" (21:17). Tal superação exige que o dado concreto seja iluminado por abstrações que permitam que o pesquisador extraia de seu objetivo de pesquisa sentidos novos e distintos, de modo a ampliar os horizontes de compreensão.

Muitas vezes ficamos presos às nossas proposições — questões e problemas — e tendemos a subestimar as sutilezas interpretativas que emanam dos dados. Esta dificuldade reside em parte na formação do psicólogo que, pelo aligeiramento do ensino, às vezes, confunde pesquisa com coleta de dados não chegando ao nível da interpretação de resultados. Isto pode levar a super-valorizar as variáveis psicológicas que residem na singularidade do indivíduo em detrimento daquelas que se situam no contexto mais amplo da realidade sócio-cultural.

Grinder destaca sob outro ponto de vista, que as metodologias qualitativas suplantarão as quantitativas experimentais nos próximos anos. Ele aponta fatores econômicos e políticos como determinantes de uma ou outra escolha metodológica. Ao analisar a pesquisa em Psicologia Educacional no Brasil, ele observa: "Os profissionais que estão surgindo na área da psicologia introduziram preocupações quanto às desigualdades sociais como parte de seus projetos de pesquisa. A influência de variáveis como sexo, etnia e sobretudo classe social é tomada em consideração em diferentes estudos, não importando que tratem de movimentação para aprender, disciplina escolar, estratégias de aprendizagem, aptidão numérica ou desenvolvimento humano ao longo da vida". (11:6)

Polemizando esta afirmação de Grinder se poderia dizer que isto é apenas uma tendência, embora salutar e positiva, pois este tipo de delineamento de pesquisa possibilita o alargamento das perspectivas de análise, ensejando a inclusão de escolas e sujeitos das classes desfavorecidas que, até recentemente, não eram devidamente contemplados nos designs de investigação em psicologia. Contudo, o autor deveria também ter mencionado o controle da variável idade nas pesquisas em psicologia educacional, pois esta, devido à escolarização tardia, é uma fonte de distorções e perturbações do sistema escolar, como se verá mais adiante.

'' Os psicólogos educacionais brasileiros não tiveram nem a oportunidade nem a inclinação para idolatrar os métodos experimentais, como aconteceu com seus colegas norte-americanos na década de 60. Em primeiro lugar porque a pesquisa em psicologia educacional sempre esteve sob severas restrições de financiamento. Falta de recusos é a regra. A pesquisa educacional tem sido considerada um luxo no Brasil. Bolsas, assistentes de pesquisa, revistas científicas e livros de referência nunca foram abundantes. As pesquisas experimentais elaboradas, como Campbel e Stanley (4:171-246) as descrevem, sempre estiveram fora das reais possibilidades econômicas dos pesquisadores".

A ótica da análise de Grinder (11) leva-o a argumentar no sentido de que a opção por metodologias qualitativas não é nem epistemológica e nem cultural, mas um imperativo face à severidade da escassez de recursos para a pesquisa. Isto tem duas implicações importantes: primeiro que não há uma opção de fato e, segundo, que o autor privilegia a metodologia quantitativa-experimental como aquela capaz de assegurar uma pesquisa mais robusta, rigorosa e confiável.

Não obstante, as metodologias de pesquisa não são entidades distintas que se desgarram da filosofia da ciência, como normas e prescrições abstratas a serem implementadas, "entidade" descolada dos papéis sociais do pesquisador e das relações que ele mantém com o seu objeto de estudo a ser construído. Ao contrário, as metodologias de pesquisa são socialmente determinadas, dependendo em larga escala da legitimidade que os grupos de pesquisa lhes conferem. Neste sentido causa perplexidade reconhecer que, apesar dos avanços das metodologias qualitativas, o modelo de ciência consagrado continua a ser o da metodologia quantitativa-experimental, como a única que inquestionavelmente é capaz de se instituir como atividade científica. Se continuarmos com tal visão de ciência, as abordagens qualitativas não terão o necessário ambiente de crítica e aprovação para se consolidar. E o psicólogo pesquisador que assume a abordagem qualitativa persistirá no sentimento de que aquilo que faz não chega de ser "pesquisa rigorosa", capaz de explicar as complexidades inerentes aos problemas culturais e sociais da pessoa "em relação".

Outra questão, talvez para além dessa controvérsia, é que no Brasil somos continuamente confrontados com a imediatez, a urgência, para solucionar problemas de uma realidade caótica e adversa. Por isso, a pesquisa é conduzida num "ritmo de pressa", pressionados que somos pelas necessidades de intervenção. A percepção generalizada é de que a comunidade deseja uma "pesquisa de resultados". Em consequência, não temos tempo para teorizar, para adensar o terreno que vamos desbravando, sedimentar as conclusões e aprofundar cumulativamente as linhas de pesquisa. A decorrência é que a pesquisa brasileira em Psicologia Educacional não tem produzido teorias que possam se constituir em fundamento da prática profissional do psicólogo escolar. Por isso (e obviamente não só por isso), continuamos a importar e consumir teorias produzidas em outros países e culturas.

 

Reprovação, evasão e repetência

A reprovação com seus concomitantes de evasão e repetência tem sido, talvez, o problema mais persistente na educação brasileira. Todavia, dos três aspectos desta questão o mas crítico, perverso e de conseqüências mais deletérias é a repetência. Ela mantém a criança na mesma série, por anos seguidos, fazendo-a repetir as mesmas situações de aprendizagem — que provaram ser para ela ineficientes — e, portanto, os mesmos fracassos.

A repetência que simplesmente decorre da reprovação leva à distorção idade/série nas escolas, que compromete toda a proposta pedagógica, tanto em termos sociais quanto psicológicos. Tal problema não tem passado despercebido dos pesquisadores, tanto em educação quanto em psicologia. Na verdade, tem sido objeto de inúmeras análises, por parte de muitos autores.(18;7;17;1:59-74).

As implicações psicológicas de tal atraso de escolaridade têm a ver com as aplicações da psicologia do desenvolvimento, uma vez que a maioria de suas teorias propõem etapas de desenvolvimento humano, de acordo com faixas etárias bem definidas. Em primeiro lugar, a discrepância idade/série dificulta a aprendizagem porque os conteúdos curriculares estão divorciados dos interesses próprios da idade (1: 59). Em segundo lugar, os colegas de aula dessas crianças não são seus companheiros, o que torna difícil estabelecer relações de coleguismo e amizade. Em terceiro, o professor, em geral, não reconhece estas dificuldades e trata a "turma" como se ela fosse homogênea e adaptada à faixa etária prevista, seja pelo sistema escolar, seja pelas teorias que embasam sua prática.

Mas, afinal, por que ocorre a distorção idade/série? Na superfície, a reprovação, o ingresso tardio e o retorno à Escola daqueles que se evadiram são explicações plausíveis. Sem dúvida, a reprovação evideneia-se como o fator principal nesta tríade de problemas. E, neste caso, a explicação (e o controle) deve ser buscada no interior do próprio sistema escolar e não nas condições sociais, políticas e econômicas adversas (7: 11).

Tem sido um equívoco do sistema escolar acreditar que a solução para o baixo redimento de aprendizagem é a reprovação. Tal modo de entendimento leva a pôr a culpa no aluno (a vitima?) que é visto como alguém que não se esforça o bastante em suas tarefas escolares. O professor e a escola ficam isentos de qualquer responsabilidade. A criança é penalizada a repetir o ano — sem compreender as razões — e tal decisão não vem acompanhada de outros estímulos e estratégias capazes de recuperar o tempo perdido. Como os procedimentos pedagógicos não se modificam (para os alunos reprovados), nada muda e os alunos respondem do mesmo modo, até por uma rotinização do processo de aprender. A criança repete os mesmos conteúdos, enfrenta sem êxito as mesmas dificuldades e prossegue sem nenhuma garantia de que desta vez poderá vir a aprender. O que é incompreensível é a rigidez do sistema (18 : 49) e a falta de sensibilidade e "imaginação criativa" dos professores, tanto para diagnosticar e identificar o problema quanto para dar a ele uma solução adequada.

O psicólogo escolar também não está fora deste circuito de críticas. Em geral, ele permanece em sua sala, esperando que a criança com distúrbios venha para solicitar ajuda. Os testes de prontidão para aprendizagem são usados para separar as crianças em diferentes níveis, classificando-os como "maduros" e "imaturos". Aos melhores professores são designadas as turmas "maduras" e aos professores inexperientes, são destinadas as turmas "imaturas" (17: 305). A mesma autora ainda questiona a tendência de pôr a culpa não só nas crianças, mas em suas famílias. Ela cita uma psicóloga: "Tomem-se estas crianças e as coloquem em outras famílias, aí verão como seu rendimento melhora" (17: 317).

Se a Escola como instituição não está isenta de responsabilidade, é preciso que psicólogos e educadores aprofundem sua consciência quanto a esta realidade. Há profundas desigualdades nas Escolas de lº grau, o que demonstra que os mecanismos de seletividade funcionam e operam suas distorções desde os inícios da escolaridade. Na realidade, reproduzem as mesmas desigualdades sociais existentes na sociedade como um todo. O nível sócio-econômico dos alunos nas séries iniciais é significativamente diferente em relação ao dos alunos das últimas séries (18: 31). A Escola, deste modo, funciona como uma agência que seleciona, discriminando os pobres e descartando-os do sistema, a fim de manter o status quo, em beneficio da classe dominante.

Desde Coleman (6) e do estudo de revisão de Jenks (12), os educadores vêm se tornando mais conscientes das desigualdades no sistema escolar como um efeito do nível sócio-econômico das famílias. Entretanto, tal consciência não tem produzido as mudanças desejáveis. Por isso, psicólogos e educadores têm aí um vasto campo de luta para que tais mecanismos sejam quebrados e vencidos em sua força de persistência. Trabalhando em conjunto poderiam recuperar o espaço perdido, recuperando seu status e reafirmando a tradição de interdisciplinaridade. Para tanto, é preciso renunciar ao modelo médico, diminuindo a prática da psicologia clínica em consultórios, aos quais só têm acesso as camadas mais privilegiadas da população. Voltar-se para o atendimento das classes desfavorecidas que são a maioria da população brasileira, articulando seus interesses com as normas e procedimentos pedagógicos das escolas, proporcionaria um renascimento tanto na área do conhecimento quanto da prática profissional. Ao mesmo tempo, isto contribuiria não só para uma Escola de qualidade numa sociedade democrática e pluralista mas, através do fortalecimento da psicologia como um todo, também poderia ensejar o surgimento de teorias autóctones, colocando todas as conquistas a serviço dos interesses da sociedade brasileira.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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