SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 issue3Pesquisa em psicologia educacional: uma agenda para o futuroEvasão e fracasso escolar author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.9 no.3 Brasília  1989

 

DEPOIMENTO

 

Na Febem é assim? A gente só aprende na porrada?

 

 

Liane Pessin dos Santos; Lia Beatriz de Lucca Freitas

 

 

Este depoimento nasceu de uma experiência de trabalho conjunto na direção executiva do Sindicato dos Psicólogos do Estado do Rio Grande do Sul, que levou a uma reflexão sobre o trabalho na FEBEM. Este depoimento é feito a partir do relato de Lia, psicóloga concursada que trabalha como funcionária da FEBEM-RS e um internato de menores, e conta com a participação de Liane, psicóloga social, que intervém na instituição, como consultora externa, em uma Escola.

Ouvimos essas frases — "Na Febem é assim. A gente só aprende na porrada" —, em sua forma afirmativa, de uma colega, psicóloga, a título de comentário sobre um episódio ocorrido, na Febem-RS, com uma de nós. Tal episódio — sentido como uma porrada — e a presença desse comentário nos motivaram a escrever este texto. O ponto de interrogação é nosso, na medida em que não aceitamos a porrada e tampouco acreditamos que seja o único método de aprendizagem possíveis para as crianças, adolescentes e funcionários dessa Fundação do Bem-Estar do Menor. Pelo contrário, pensamos que todas as pessoas devem ter acesso ao conhecimento através das letras.

Pretendemos, com este trabalho, não apenas denunciar uma realidade. Buscamos, além disso, um caminho para pôr fim a esse "método educacional" tão destrutivo.

Como Ramozzi-Chiarottino (1:24), pensamos que é preciso dar às crianças da Febem "condições de lembrar do passado, elaborar este passado, repensar o presente e projetar o futuro". Entendemos que, da mesma maneira, lembrando e analisando a nossa história, estaremos concretizando o nosso projeto de cooperar para extinguir a prática da "pedagogia da porrada".

 

O percurso de Lia: o Concurso ou a infração

Desde o momento em que li o edital das Provas Seletivas para psicólogo na Febem até assumir o meu cargo, quase um ano se passou... Em 1986, escrevia a minha dissertação de Mestrado em Educação, e o término iminente da bolsa de estudos me impunha a questão da sobrevivência. No edital, chamou-me atenção um dos requisitos para a função de psicólogo: "Curso de Especialização em psicologia Institucional e/ou Psicopedagogia" (5:9-10). Imaginei que sendo quase Mestre em Educação ou, em minha leitura, psicopedagoga, teria boas chances de aprovação. A necessidade de conseguir um emprego e a possibilidade real de sucesso levaram-me a participar do concurso.

Em um nebuloso domingo de maio, saí para a prova escrita como quem sai para passear, ou vadiar, sem ter pego sequer um livro da bibliografia recomendada. Poucos dias após, entre a alegria e a surpresa, vi o meu nome entre as vinte e oito candidatas aprovadas nessa prova (6:9-11). Mas outras surpresas viriam...

A exigência de especialização em Psicopedagogia e/ou Psicologia Institucional era, conforme me foi dito, um "engano" do edital. Mesmo sendo a décima terceira colocada, era a única candidata que preenchia tais requisitos, enquanto Especialista em Psicopedagogia. (Nota A) Esses fatos geraram um processo administrativo, aberto pela Febem-RS, o qual foi engrossando à medida que passava pelos diversos setores da burocracia do Estado. Após muitas idas e vindas, foi deliberada a minha contratação.

Como muitos menores, ingressei na Febem mediante um processo. Igualmente, como muitos menores, não sabia que sair para passear — ou, na linguagem judicial, vadiar — e ser aprovada em um concurso constituía uma infração. Desconhecia a "Lei da Febem", assim como a maioria dos menores desconhecem o Código de Menores. Os meninos e meninas da Febem tomam contato com esse Código, quando sofrem a sua ação. Eu fui desvendando essa "lei" a partir da práxis.

 

A prisão

Hoje, tendo refletido sobre o meu ingresso na Febem, já não me surpreende o fato de ter sido destinada para a casa dos meninos infratores. Mas, na ocasião, não pude compreender e vivenciei a minha lotação como um castigo injusto. "Ou tu assumes no ICM (Nota B) ou não assumes", foi o que me disseram, apesar de estarem previstas cinco vagas para psicólogos no edital do concurso (5:9). Senti essa sentença como uma punição por ter ousado preencher os requisitos do edital que, parecia, haviam sido estabelecidos para não serem satisfeitos. A curiosidade de conhecer por dentro a instituição que, desde fora, percebia como "muito louca", fez com que eu assumisse o meu cargo "no pior lugar para trabalhar", segundo me disseram.

Durante a minha permanência lá, a cada dia, crescia em mim a sensação de estar tão aprisionada quanto os meninos. Percorrendo os corredores da casa, tinha a impressão de que todos os caminhos levavam à impossibilidade de realizar o trabalho que sonhara. Quando chegava a tarde, era com grande alívio que descia a ladeira. Recuperava a liberdade... E me perguntava: o que pode fazer uma Especialista em Psicopedagogia em uma '' prisão de crianças?'' (Nota C).

Naquele momento, não mais se impunha a mim a questão da sobrevivência, pois estava lecionando em duas Universidades particulares. No entanto, o meio acadêmico não me satisfazia. Desejava utilizar meus conhecimentos para intervir na realidade das crianças da Febem, com as quais me sentia comprometida. Que compromisso era esse? Em minha dissertação, escrevera: "É com essa classe (classe oprimida) que nos sentimos politicamente comprometidos e, portanto, é sobre a educação dessas crianças que precisamos pensar'' (3:170). Vislumbrava na Febem uma oportunidade de concretizar o desejo de colocar o saber adquirido — cabe lembrar, graças ao dinheiro público — a serviço das classes populares. Interessava-me, particularmente, trabalhar em uma escola que havia sido criada, através de um convênio entre a Secretaria de Educação e a Febem-RS, para atender crianças e adolescentes que foram excluídos do processo de escolarização. Ora, a exclusão das crianças das classes populares pela escola foi um dos temas abordados em minha dissertação. Essa escola funciona junto a uma unidade da Febem-RS — um Centro "aberto" — e, desde o meu ponto de vista, nada era mais óbvio que esse era o lugar mais adequado para mim.

Se, em algum momento, pensei que trabalhar na Febem era apenas uma questão de sobrevivência, quando decidi permanecer, estava consciente de que essa opção tinha origem em meu projeto profissional de trabalhar pela genuína educação das classes populares. Porém sempre que falava da incoerência de estar no ICM, tendo em vista a minha especialização, me diziam: "Mas isso não tem importância na Febem". Quando falava de meu interesse em realizar um trabalho, e não somente ter um emprego, invariavelmente, escutava: "Tu dizes isso porque tu não conheces a Febem". Tinha a impressão de que estava em uma terra estranha.

No dia em que completava dois meses na instituição, fui transferida para a unidade que desejava. Atualmente, embora ainda esteja certa quanto à lógica e justeza dos argumentos utilizados, sei também que eles não foram os principais determinantes de minha transferência. Como muitos meninos e meninas da Febem, que são levados de uma à outra casa (geralmente, de uma casa "aberta" para uma casa "fechada"), quando há "risco de fuga", fui transferida porque ameacei pedir demissão, caso tivesse que permanecer na unidade dos infratores.

É bem provável que assim como me perguntava: se não foi para trabalhar, por que me contrataram? Muitas crianças se perguntam: se não foi para nos educar, por que nos recolheram? Algumas "fogem", porque não vêem ali a possibilidade de sua reeducação. Outras permanecem na esperança de serem liberadas pelo juiz. Eu permaneci. Fui para aquele Centro "aberto" em busca da liberdade. ..

 

O conhecimento da Febem através da porrada

O cadeado no portão foi a minha primeira decepção que, logo, me fez perceber a incrível semelhança entre as diferentes casas da Febem. Da casa de contenção máxima ao Centro "aberto" lá estava o cadeado a cercear a liberdade e a separar o bem e o mal. Se o ICM existe para proteger a sociedade, considerada boa, contendo os "maus elementos", esse Centro existe para conter os "bons elementos" e protegê-los do perigo e promiscuidade da vila. Ou seja: mais além das aparentes diferenças entre uma casa "fechada" e um centro "aberto", encontra-se a função social da Febem: o controle e a contenção das crianças e adolescentes das classes populares. É por isso que, nesse Centro, as crianças com "problemas de disciplina" eram explícita ou implicitamente afastadas: primeiro, eram suspensas ou expulsas pela direção e, depois, desinstituída essa prática, elas simplesmente "evadiam-se". Com exceção de uma minoria de alunos, que há muito tempo freqüentava a casa, verificava-se uma grande rotatividade em sua população. Desta forma, todo o funcionamento do Centro era marcado pela descontinuidade e conseqüente frustração dos funcionários que, dificilmente, chegavam a ver os resultados do seu trabalho. Eu, enquanto funcionária, também sofri esse processo.

Ao longo do ano de 1987, a impressão de estar em descompasso com a instituição perpassou o meu trabalho, por mais que me empenhasse em adequar as atividades desenvolvidas às demandas emergentes. Acredito que a análise desse descompasso proderá revelar a dinâmica inconsciente da instituição, bem como os motivos pelos quais fui colocada à disposição, ao final do ano.

A primeira tarefa que me propus, no Centro, foi o seu conhecimento. Chamou-me a atenção a quase total inexistência de documentos sobre o trabalho até então realizado. Era uma casa sem história escrita. Senti também que havia ali um clima de grande insatisfação por parte dos funcionários, bem como uma espécie de caos generalizado. Parecia-me que as atividades com as crianças não tinham outra finalidade além de ocupar o tempo existente entre uma e outra marca do cartão de ponto.

Na tentativa de fugir dos caos, elaborei um plano de trabalho, que não cheguei a pôr em prática em função de outras perspectivas que surgiram a partir da posse de uma nova direção no Centro. Durante os dez meses de trabalho nessa unidade da Febem, apresentei mais duas propostas, aprovadas e depois interrompidas (quando já estavam em andamento) pelo diretor da casa. No entanto, apesar de mudar de atividades, perseguia sempre um mesmo objetivo: a promoção de saúde mental, tanto no atendimento direto às crianças como no trabalho junto aos funcionários e à comunidade local.

Nessas mudanças de atividade, houve uma crescente diferenciação do meu trabalho na instituição e um progressivo afastamento do trabalho junto à organização dos moradores da região. Quanto ao primeiro aspecto, passei de uma tarefa de supervisão (incluindo supervisão individual e grupai dos monitores e grupos com as crianças),desenvolvida igualmente por todos os técnicos,a atividades diferenciadas — atendimento às crianças, orientação aos monitores, contato com as escolas da comunidade, — que concretizaram a implantação de um Serviço de Pscicologia no Centro. Em relação ao trabalho junto à organização dos moradores, meu afastamento se deu porque, quando passei a desempenhar o papel específico de psicóloga, a direção estabeleceu que essas atividades náo seriam incluídas em minha carga horária semanal, isto é, deveriam ser desenvolvidas voluntariamente. Penso que a coincidência dessas duas alterações náo se deve ao acaso, mas sim fazem parte de um mesmo movimento em direção a uma maior discriminação: em primeiro lugar, de meu papel, enquanto psicóloga, em relação aos demais técnicos da casa; em segundo, de minha atuação na esfera pessoal e profissional. Não aceitei realizar um trabalho voluntário junto à comunidade, pois estava ali como profissional; quanto à militância pessoal acreditava que era meu direito decidir onde iria me engajar. Cabe salientar aqui que essa confusão de papéis no âmbito pessoal e profissional verificava-se em diversos aspectos do trabalho realizado e das relações estabelecidas no Centro.

Na época nào compreendia por que era percebida, pela direção, como "um técnico pouco envolvido com a casa", uma vez que todo o meu trabalho estava voltado para a consecução dos objetivos gerais do Centro, elaborados pela equipe técnica junto com a direção: garantia de escolarização, profissionalização e saúde a todas as crianças da casa. Entendia que era preciso uma educação adequada à população que atendíamos para possibilitar o seu acesso ao mercado de trabalho, condição sine qua non para uma vida minimamente saudável.

As constantes mudanças de atividade foram esvaindo minhas energias... Todo investimento parecia não ter retorno. Sentia o meu trabalho como sementes plantadas ao vento, que não criam raízes e, portanto, não podem frutificar. À medida que o tempo passava, comecei a pensar que estava fazendo muito pouco para mudar aquela realidade de miséria que enxergava, logo ali, através da vidraça... Fui me sentindo cada vez mais fraca e impotente. Era como se estivesse de mãos amarradas. Era também uma prisão. Mas onde estavam; os muros?

Revendo a minha experiência nessa unidade da Febem, percebi que o sentimento de desconformidade em relação à instituição nào dizia respeito às atividades realizadas propriamente ditas — pois, como disse, elas estavam de acordo com os objetivos estabelecidos —, mas sim à forma como vinha desenvolvendo o meu trabalho. Ao invés de tarefas circunstanciais, que no dizer de Ramozzi-Chiarotinno (1:24), "tem começo, fim e depois nada sobra'', propus um trabalho com sentido de continuidade, apesar das mudanças impostas. Ao espontaneísmo do trabalho voluntário, opus a metodologia do trabalho técnico. Ao final do ano, elaborei um relatório das atividades desenvolvidas, ou seja, registrei a minha história em uma casa que não conserva a sua história através da escrita. Enfim, procurei romper com os grilhões que produzem a impossibilidade... Impossibilidade de um trabalho contínuo, com futuro e história, que possa frutificar. Impossibilidade de um projeto de vida, em uma instituição cujo atendimento — massificante — estrutura-se na descontinuidade. (Nota D) Afinal, tinha ido para esse Centro "aberto" em busca da liberdade...Eis por que fui colocada à disposição: libertar e libertar-se são idéias que não condizem com uma "prisão de crianças".

 

Uma questão-chave: a construção da impossibilidade no imaginário social

Ao refletirmos acerca das análises das histórias que foram contadas até então, percebemos a predominância de uma vivência subjetiva particular que permeia todos os níveis da instituição: a impossibilidade.

Retomando a dicussão de Ciampa (2), sobre a identidade, verificamos que a "impossibilidade" é um fenômeno que faz parte da anterioridade da identidade do trabalhador da Febem. Uma Instituição que tem o papel de recuperar aqueles que, na verdade, não podem ser totalmente recuperados, enquanto homens com projeto, só pode se objetivar no imaginário de quem convive com ela, e a constrói, como uma impossibilidade. O determinante histórico da impossibilidade é um pressuposto da identidade profissional de quem lá trabalha. Esta anterioridade ou identidade pressuposta é resposta, a cada momento, pela experiência cotidiana da descontinuidade, do abandono, do desmando, do troca-troca de setores, de chefias, de planos de trabalho. No momento em que a impossibilidade é re-posta ela vai sendo percebida como dada "(...) e não como se dando num continuo processo de identificação. E como se uma vez identificada (...), a produção de sua identidade se esgotasse como o produto" (2.66).

Enquanto produto institucional o trabalhador da Febem vive a impossibilidade e a sua re-atualização no dia-a-dia, tendo vontade de fugir de algo que o oprime tal qual os meninos. Busca a liberdade, a possibilidade de ser produtor. No entanto, a fuga acaba re-atualizando a produção institucional e a impossibilidade. Vivemos predominantemente, então, como seres repostos no imaginário institucional.

Sendo o ser social também um ser-posto, onde está o desejo instituinte nas relações de trabalho na Febem? Onde estão as estratégias de resistência que, sem dúvida, também se apresentam no cotidiano junto ao processo de reprodução e re-atualização do instituído?

O instituído nos "engole" enos impede de perceber as contradições de nosso trabalho e como explorá-las para instituir cora mais consciência.

A dimensão da possibilidade existe. A história anda. No entanto, para reconhecê-la, verdadeiramente, precisamos reconhecer a sua negação, que é, na realidade, o que a faz existir como possível.

É preciso re-aprender a dimensão da possibilidade historicamente, sem ingenuidade ou messianismo. Mas com muita paixão. Freud já nos dizia que o trabalho é mais uma forma de amar. O trabalho consciente é uma forma de amar com muito mais intensidade e inteireza. Neste movimento reflexivo se resgata a subjetividade, ou pelo menos, as armas para enfrentar a nossa expropriação.

Fórmulas? Não. Estratégias de resistência singulares, vividas e contextualizadas.

Movimento? Sim.

 

NOTAS

A) Os créditos já realizados no Curso de Pós-Graduaçào em Educação da UFRGS conferiam-me o título de Especialista em Educação, na área de Psicologia Educacional, aceito pela Febem-RS como equivalente ao requisito do edital.

B) ICM ou Instituto Central de Menores é a casa dos meninos infratores da Febem-RS.

C) "Prisão de crianças" foi o termo utilizado para designar o Instituto Central de Menores, em uma reportagem do Jornal Zero Hora (4:4-5).

D) Na Febem-RS, os internatos atendem a crianças e/ou adolescentes de determinadas faixas etárias. Assim, o menino ou menina que cresce na instituição, a cada quatro ou cinco anos, muda de casa.

E) Quaisquer que sejam as formas de fugir.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. RAMOZZI - CHIAROTTINO — A Inteligência da criança brasileira. Psicologia, Ciência e Profissão. Brasilia, 7.(1): 19-27, 1987.        [ Links ]

2. CIAMPA, A da C. Identidade. In: LANE, S. T. M. & CODO, W. (org.). Psicologia Social; o homem em movimento. São Paulo, Brasiliense, 1984.        [ Links ]

3. FREITAS, L.B.L. A produção de ignorância na escola pública: uma análise crítica do ensino da língua escrita na sala de aula. Porto Alegre, 1986. (Dissertação de Mestrado).        [ Links ]

4. GONÇALVES, L. O outro lado da Febem. Zero Hora, Porto Alegre, 15 fev, 1987. Caderno D.        [ Links ]

5. RIO GRANDE DO SUL. SECRETARIA DA ADMINISTRAÇÃO UNIDADE DE RECRUTAMENTO E SELEÇÃO DE PESSOAL. Edital PS 188 a 194. Diário Oficial, Porto Alegre, 24 jan. 1986.        [ Links ]

6.-Edital PS 188 a 194. Diário Oficial. Porto Alegre, 23 mai. 1986.        [ Links ]