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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.10 n.1 Brasília  1990

 

DEPOIMENTO

 

Condições de trabalho e penalização do corpo

 

 

Maria Inês Rosa, professora da Faculdade de Educação da UNICAMP, e doutoranda em Sociologia da USP, vem desenvolvendo pesquisas sobre condições de trabalho nas indústrias brasileiras e prestou o seguinte depoimento:

"Em pesquisa realizada em 1982, em nível de mestrado, efetuei levantamento de dados empíricos sobre as condições de trabalho em geral na indústria, durante a década de 60, na grande imprensa. Na ocasião, articulei a análise destas condições com a problemática da exploração econômica do trabalhador, no processo imediato de trabalho, pelo poder despótico do capital sobre o trabalho. O referencial teórico utilizado não me permitiu articular a relação entre condições de trabalho e a saúde mental e física do trabalhador, vale dizer, a relação entre condições de trabalho e a penalização do corpo do trabalhador.

Na pesquisa que atualmente desenvolvo esta relação é pensada tanto no nível da exploração econômica da força de trabalho quanto no nível do assujeitamento permanente do trabalhador, no processo imediato de trabalho. Ao considerar os dois níveis estou problematizando o exercício da gestão da força de trabalho que tenta reduzi-la a força útil, produtiva, e dócil, como nos mostra M.Foucault. No processo imediato de trabalho se efetiva o processo de assujeitamento do trabalhador, a construção de seu modo de ser moral, ou seja, a fabricação constante de sua identidade na condição de trabalhador assalariado. Neste processo o trabalhador tem penalizado o seu corpo na e por meio das condições de trabalho.

Selecionei fragmentos de depoimentos do trabalhador que entrevistei, sobressaindo as condições de trabalho, onde se explicita o seu assujeitamento, cujos efeitos são registrados pelo próprio trabalhador. Assim tem-se:

"As condições de trabalho horríveis. Você vê: um brasilit, aquilo chegava a 46 graus, 48 graus, lá dentro da fábrica, quilometrado, botava o termômetro atingia 48 graus. E no tempo do frio tem que trabalhar encapotado, tem cabimento? Porque a gente não pode trabalhar com mangas compridas no tempo do frio porque isso daí é contra a lei porque pode enroscar a manga numa peça, levar o braço, perde o braço, não é verdade? Então, é um frio, um frio danado".

O trabalhador ainda nos mostra, por exemplo, que ele e demais trabalhadores faziam uma peça com medida xis mas quando estava pronta diminuía a medida. O chefe da seção falava que estava errado, que tinham matado a peça. Não estava e ninguém tinha matado a peça: simplesmente houve alteração do objeto de trabalho em função da alta temperatura ambiente. Os trabalhadores discutiam com o chefe e mostravam que, em outra sala, com uma temperatura padrão de 22 graus, a peça feita mantinha a medida certa; quando a peça era feita fora deste local, ocorria a alteração de medida por causa do calor sufocante, da temperatura elevada. Sob estas condições insalubres há o rendimento forçado do trabalhador, ou seja, é potencializada a penalização de seu corpo visto ser-lhe exigido um nível de qualidade produtiva e de produtividade como se produzisse em condições de trabalho ditas adequadas. Ocorrem também alterações no corpo do trabalhador — em sua saúde mental, física e intelectual — como veremos logo mais, nos fragmentos de seu depoimento.

Destaque-se que a penalização do corpo do trabalhador se materializa em condições e relações de trabalho (em práticas sociais), na instituição-empresa, que (re)produzem o fim da produção capitalista: processo de produção econômica do Valor e processo de produção de uma economia moral. Assim à pergunta: quais são os setores da produção que mais penalizam o corpo do trabalhador: creio que a resposta está no fato de que se o processo de produção capitalista tem este duplo aspecto, todo e qualquer setor da produção penaliza o corpo do trabalhador. Ocorre que há, no Brasil, o ilegalismo patronal — o não cumprimento das leis trabalhistas — tornando mais insidiosa ainda esta realização última do processo de produção capitalista. Um dado significativo aparece, por exemplo, no setor químico onde o não cumprimento dos direitos do trabalhador potencializa a penalização do seu corpo, levando-o a um rendimento forçado. É o caso da ausência de segurança e higiene nas condições de trabalho, conforme informações do Sindicato da categoria, publicadas em 21/04/66, em O Estado de São Paulo. "Na Nitroquímica a iluminação é deficiente na maioria das seções o que facilita acidentes: a ventilação é deficiente onde o calor é insuportável, em algumas seções; há poeiras e gases; há fios de alta voltagem desprotegidos; há rachaduras no teto ou no piso; há vazamento nos telhados, de modo que ocorrendo chuvas inundam-se as seções, estando estas águas contaminadas por ácidos; a água de beber não é potável na maioria das seções (muitos trabalhadores adoecem por isso); os mictórios estão em péssimas condições; os chuveiros são insuficientes; há falta de pias para lavar as mãos na seção MF-5; há falta de estufa para esquentar marmitas; não é fornecido leite nas seções de serviço insalubres; o hospital da firma deixa a desejar. A prova contundente das condições a que estão submetidos os operários é dada pela morte de operário na seção devido à emanação de gases de mercúrio na fábrica de tintas. Um operário, por carregar grandes pesos nas costas subindo escadas íngremes, teve as varizes arrebentadas e agora não consegue emprego devido a esta enfermidade; um operário morreu no local de trabalho por intoxicação, em 13/12/1965, e a viúva até a época do relato em abril de 1966 não recebera a indenização; um operário foi acidentado, perdendo definitivamente parte da mão esquerda e lhe pagaram indenização não correspondente ao acidente; um operário acidentado em trabalho, na espinha dorsal, em 1955, ficou afastado 11 meses e ainda apresentava lesão".

Nas entrevistas que realizei com operários que trabalharam ou trabalham no ramo ótico constato não haver diferenças entre as condições de trabalho acima mostradas e as deste ramo produtivo. Sobressaem os ilegalismos patronal que intensificam a penalização do corpo do trabalhador. O operário ao ser perguntado se ficava resfriado, responde:

"O que?, nossa! e como ficava resfriado, até no calor! O ventilador pega na gente aquele ar terrível todo mundo começou a ficar doente, camarada que tinha dez anos (de trabalho), que nunca tinha ido no médico, rapaz novo ... lá na fábrica, começou a ir no médico. Porque o vento direto na pessoa faz mal" (...) "Então agora voce vê tudo estas coisas assim é que a gente fica dentro de uma fábrica. Você, ah! as máquinas, o barulho, o ventilador, o barulho de tudo, então com isto daqui vai acumulando, acumulando e você fica e quando chega certa hora você já não está agüentando nem entrar dentro da fábrica, você já não está agüentando mais nada, sua cabeça está querendo estourar (fala tudo muito rápido). Vinte e dois anos, agora você vê, antigamente (anos 70) tinha as prensas que era tudo numa seção só. As prensas batem: baembaembaembaem; tinha uma que era automática: temtemtemtemtem (imita barrulho de metralhadora), uma atrás da outra, era centenas de peças por minuto. Então era muito barulho, que lá o forro? tira o barulho, não tem nada. Você sabe o forro amortece o barulho, a acústica, então amortece o barulho mas lá não tinha nada. Você vê, nós sofria." (Entrevistador): Amortece no corpo de vocês. "No corpo?!!! na cuca da gente mesmo!"

Ooperário em questão trabalhou durante 22 anos na mesma empresa. Foi demitido em 1987, faltando um ano e meio para se aposentar. Os fragmentos de seu depoimento registram o seu assujeitamento às condições e relações de trabalho bem como a inscrição em seu corpo da relação imediata entre estas condições e sua saúde mental, física e, por que não dizer também, moral.

(...)"Você vê, todo este tempo nós, vinte e dois anos perdidos, perdi a saúde, perdi tudo, e agora? Se eu vou fazer um teste numa" outra firma quando chega no de saúde eu não vou passar. Então, fiquei inutilizado em trabalhar em firma".

(Entrevistador): Quer dizer, está com problema no ouvido...

"No ouvido, no coração, no estômago, pressão, e o cansaço de vinte e dois anos, de vinte e dois anos" (...) Você vê que todo este tempo a gente vai indo até que a gente tem uma hora que a gente não vai agüentar...

Não agüentei, não agüentei, sinceramente. Vê a violência contra o operário, a violência contra os colegas, violência contra tudo, ah eu não agüentei, eu falei: tenha paciência, dá um jeito de mandar eu embora que aqui eu não fico não, insisti (fala rápido, baixo). Então pra me mandar embora foi preciso de fazer, como diz o outro, de fazer um, de ter um motivo pra me mandar embora ... o motivo que eu dei: eu não trabalhei (e fica em silêncio)".

Esta reação de não trabalhar não foi "individual" porque foi uma reação à dispensa, de uma só vez, de 25 profissionais da seção de ferramentaria. De fato, ele não trabalhou como? Pegou um banquinho e ficou sentado frente à máquina, de braços cruzados. Durante uma semana, ficou assim em frente ao torno em que trabalhava há 22 anos. Aí o diretor do Sindicato na fábrica alertou-o que poderia perder os direitos trabalhistas porque o patrão poderia voltar esta sua (re)ação contra ele. Deste modo, passou a uma outra reação "individual". Começou a fazer "bom bril", que consiste em pôr um "biscate" (que é um servicinho qualquer) na máquina e ficar lá, num passe lento, trabalhando. O chefe passa em revista os trabalhadores da seção, vê que eles estão trabalhando e não pode deles cobrar produção.

Os fragmentos dos depoimentos do operário entrevistado nos mostram que na relação entre condições e relações de trabalho e a saúde mental, física e intelectual do trabalhador, em jogo está permanentemente o direito à VIDA, direito este não previsto, não dito, cuja efetivação, porém, depende da oposição diuturna do trabalhador à sua redução à força física útil (produtiva) e dócil.

Você me coloca a questão de por que a leislação não é cumprida. Bem, Marx já nos mostrava n'O Capital, à página 485 (Civ. Brasileira), que o capitalista tem o seu próprio código de fábrica (seus dispositivos de poder), passando ao largo da divisão dos poderes posta pelo regime democrático burguês e seu sistema representativo. Isto significa que no exercício do poder despótico do capital sobre o trabalho, nas relações e condições de trabalho, a lei, no caso os direitos do trabalhador não se apresenta como instrumento constrangedor e limitativo ao funcionamento deste poder. Vimos que, de fato, as leis são desconhecidas na fábrica e, conseqüentemente, não cumpridas pela classe patronal. Duas frentes de batalha se colocam para o trabalhador: a da luta de seu (re) conhecimento na qualidade de sujeito constituído de direitos — de cidadão — e a do enfrentamento permanente de sua sujeição às relações e condições de trabalho que penalizam o seu corpo, ou seja, que minam o seu "direito" à VIDA.

Ainda no âmbito desta questão, caberia à DRT, órgão do Ministério do Trabalho, fazer com que a classe patronal cumpra a legislação, fiscalizando as empresas e, no seu interior, as condições de trabalho, por meio de seus inspetores e aplicando multas às empresas reincidentes. Em 1965, para cerca de 124.585 empresas da cidade de São Paulo, havia 110 inspetores para fiscalizar o cumprimento das leis, portarias e regulamentos da legislação do trabalho, fora o fato de a maior multa trabalhista, no período em questão, ser "menor que a 6ª parte da remuneração mínima legal", conforme palavras do chefe de fiscalização da DRT, no jornal Última Hora, de 04/07/1965. Ressalte-se que só posteriormente as multas foram "atualizadas". Havia multas cujos valores tinham sido estipulados em 1942, 1944 e 1949, conforme o salário mínimo da época. Creio não ter havido mudanças significativas no número de inspetores e mesmo no valor das multas, visto a reincidência do ilegalismo patronal presente nos fragmentos dos depoimentos selecionados.

Quanto a atuação dos sindicatos, no material empírico sobre as condições de trabalho em geral na indústria brasileira na década de 60, levantado na grande imprensa, constatamos que a prática sindical enfatizava mais o cumprimento da legislação trabalhista quanto ao pagmento dos adicionais de periculosidade e de insalubridade frente às condições insalubres e periculosas de trabalho. O pagamento destes adicionais é uma forma de "aumentar" o baixo salário percebido pelos trabalhadores em geral, ou seja, significam apenas um acréscimo ínfimo ao salário e a monetarização destas condições de trabalho. Hoje não saberia dizer se os sindicatos estariam ainda enfatizando mais o aspecto da monetarização das condições de trabalho. Para tanto precisaria realizar uma pesquisa que me permitisse a confirmação ou não deste aspecto. Contudo, creio que se os sindicatos lutam pelo cumprimento do pagamento dos referidos adicionais há também o acompanhamento de toda a luta silenciosa travada pelos trabalhadores no cotidiano fabril. Acompanhamento este que se tornou mais presente em meados da década de 70 em diante, particularmente quando os operários instituíram as comissões de fábrica e houve toda uma luta pela atuação concreta das CIPAs (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes), no interior das fábricas. Gostaria de observar que há limites práticos para a atuação do sindicato no locus fabril tanto pela sua tendência juridiscista, ou seja, tende a permanecer mais no nível da relação contratual entre capital e trabalho, quanto pelo fato de, como já salientado, o capitalista comandar despoticamente sobre o que lhe pertence temporariamente —o uso da força de trabalho — por meio do código de fábrica. A ruptura destes limites está na articulação do Sindicato (do movimento sindical) com o movimento operário (as bases) ouvindo, acompanhando e lutando com este último em suas reivindicações, lutas e oposições miúdas e constantes do/no processo imediato de trabalho.

Por último, gostaria mais uma vez de salientar que supondo não existir mais condições insalubres e periculosas de trabalho e supondo ainda que as condições de trabalho sejam adequadas, continua o processo de (re) produção da penalização do corpo do trabalhador. Tal se dá porque o processo de trabalho capitalista, como ressaltado, é tanto processo de produção econômica quanto processo de produção de uma economia política ou moral; ambos processos objetivando o fim último da produção capitalista: a produção do valor, da exploração do trabalhador. Deste modo, sendo este o fim do sistema produtivo capitalista, sua persecução se efetua penalizando o corpo do trabalhador, que é tido simples e meramente como um feixe de forças a serem reduzidas à uma única direção — à da força física útil (produtiva) e dócil. No lugar desta representação do trabalhador, de seu corpo, um outra se insurge dia a dia nas lutas dos trabalhadores no locus fabril.