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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.10 n.2-3-4 Brasília  1990

 

O trabalho do psicólogo com famílias de pacientes psiquiátricos - relato de uma experiência

 

 

Ana Maria Vieira de Miranda; Marli Aparecida Calça Sanches

Docentes do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá - PA

 

 

A questão da saúde mental, bem como das práticas terapêuticas, tem sido amplamente discutida em todo o mundo. Embora muito se tenha argumentado, defendido, criticado e proposto, a visão de saúde mental e do doente mental ainda carrega conceitos do século XVIII, quando da fundação da psiquiatria.

Vários autores têm apresentado contribuições importantes, tanto para o entendimento da evolução e terapêutica dos casos, quanto para a tentativa de uma nova visão social do doente, bem como questões relativas à terapia familiar e à psicoterapia breve, que vêm fornecendo subsídios para práticas alternativas no tocante à saúde mental.

Pode-se destacar autores como Basaglia (198S), que coloca a doença como uma contradição que se verifica no ambiente social, mas não a considera como um produto exclusivamente da sociedade e sim como resultado da interação dos níveis biológico, sociológico e psicológico. Esclarece que a loucura é uma condição humana e que, em nós, a loucura existe e está presente, como está a razão. Segundo o autor a sociedade, para ser civilizada, deve aceitar tanto a razão quanto a loucura. Posiciona-se contra o pessimismo da razão e defende o otimismo da prática.

Laing (1975) e Cooper (1982) propõem que se compreenda o psiquismo humano, especialmente em seus "desarranjos", sob um novo ponto de vista: o da antipsiquiatria. Destacam o conceito de relação como a chave para compreensão das manifestações humanas, relação aqui entendida no seu sentido político. Criticam a tendência da psicologia em tentar analisar o indivíduo, isolando-o das relações que mantém com os outros, afirmando que os sintomas têm sua origem no conjunto das relações sociais. Destacam, portanto, que a doença não se encontra no indivíduo, mas no sistema de relações que ele mantém com o seu grupo, que é, principalmente, a sua família.

Partindo da constatação da situação de pobreza e opressão existente na sociedade e reproduzida nas instituições psiquiátricas, Moffatt (1980) encontra nelas a negação da identidade pessoal dos pacientes, através da qual se legitimam as práticas repressivas, onde os indivíduos desqualificam-se, abandonam-se, coisificam-se. Moffatt defende o resgate da identidade pessoal dos pacientes, através da negação de teorias e práticas impostas e a construção de soluções pelos próprios indivíduos envolvidos com sua problemática. Propõe, então, uma redistribuição das ansiedades terroríficas de nossa mente, bem como que cada indivíduo assuma seus próprios temores, sem depositá-los em bodes expiatórios, fabricando, com isso, "profissionais da loucura" para, em seguida, segregá-los, internando-os em manicômios. Ressalta que tais transformações dependem do resgate da identidade histórica e cultural do povo, bem como esclarece que o povo sempre teve sua própria maneira de resolver os problemas de perturbação mental.

Vale evidenciar e esclarecer aqui o papel da terapia familiar, uma vez que terapia da família é um termo genérico, que não se aplica a uma forma terapêutica específica, mas a uma grande variedade de abordagens que têm em comum a idéia de que a família constitui o foco adequado para avaliação e tratamento de distúrbios emocionais. Esta visão é um desenvolvimento relativamente recente no campo da saúde mental, e reflete um desvio radical dos pontos de vista tradicionais referentes, não apenas à saúde mental, mas ao comportamento humano e à doença em geral.

Há cerca de três décadas, alguns profissionais da saúde mental começaram a se sentir frustrados e preocupados com o índice de recaída de pacientes que haviam conseguido acentuada recuperação no hospital, assim que os mesmos retornavam às suas famílias. Estes profissionais romperam com os procedimentos tradicionais, de só tratar o paciente identificado, e passaram a encarar o conjunto familiar no trabalho com o doente.

Destaca-se Satir (1976), que enfatiza a importância da comunicação no contexto familiar, já que a interação entre seus membros expressa-se através de gestos, expressão facial, postura corporal e movimentos, tom de voz, modo de vestir, conteúdos do próprio comunicar-se com o outro. Minuchim (1982) coloca como objeto de intervenção o sistema familiar, sendo que o terapeuta une-se a esse sistema e, então, utiliza a si mesmo para transformá-lo; mudando a posição dos membros do sistema, ele modifica suas experiências subjetivas. A fim de transformar o sistema familiar, o terapeuta intervém, portanto, no equilíbrio desse sistema, pois tem-se a estrutura familiar como um conjunto invisível de exigências funcionais que organizam as maneiras pelas quais os membros da família interagem.

Quando se questiona o tempo dispendido em psicoterapia e a possibilidade de alguma contribuição significativa à saúde mental, deve-se considerar, segundo Malan (1981), que o número de pessoas que necessitam ser ajudadas devido a doenças mentais são milhares ou milhões. Para ele, a única solução concebível a um problema de tal magnitude deve vir da prevenção primária, através de medidas como educação e reorganização social. No entanto, propõe como alternativa de solução a exploração de métodos de psicoterapia breve.

Para Lemgruber(1984), apsicoterapia breve, fundamentada na metapsicologia freudiana, tem como objetivo a avaliação e compreensão do psicodinamismo do paciente, e é composta da tríade: atividade, planejamento e foco. A atividade consiste na participação e atuação própria do terapeuta; o planejamento envolve a organização dos passos e estratégias a serem utilizadas, sendo as mesmas elaboradas em função da estrutura da personalidade do paciente e não dos sintomas apresentados; foco significa o objetivo estabelecido pelas duas partes - terapeuta e paciente.

O aprofundamento dos pontos aqui levantados, referenciados, então, pelos dados de internação de pacientes psiquiátricos, embasa a experiência que apresentamos a seguir, que objetiva o desenvolvimento de um trabalho, partindo de um esquema participativo dos membros da família do paciente egresso de uma instituição de saúde mental. Isso a fim de possibilitar a sua reintegração no respectivo meio familiar, tendo como pressuposto que a família, tornando-se objeto de questionamento, pode aceitar a doença e o doente, reconhecer-se como participante na produção da doença, assim como na recuperação e superação da problemática, podendo transformar-se em motor de mudanças a nível do contexto social.

 

A experiência: estudo piloto, desenvolvimento e resultados

O presente relato está pautado na pesquisa "Atuação do Psicólogo com Famílias de Pacientes Psiquiátricos", realizada na Universidade Estadual de Maringá, no período 2/84 a 2/86.

Com a questão da saúde mental como prioritária, especificamente na região de Maringá-PR, levantou-se o problema que norteou todo o trabalho desenvolvido: "será que uma intervenção intencional através de um programa de atendimento facilitará a reintegração do paciente na sua volta ao seu meio social?"

O trabalho foi desenvolvido em três momentos:

1º. Estabelecimento de critérios e levantamento de dados de intervenção dos pacientes psiquiátricos em Instituição de saúde mental de Maringá e região;

2°. Estudo-piloto - elaboração e aplicação do programa de atendimento;

3º. Aplicação do programa de atendimento com três pacientes-família.

O primeiro momento desenvolveu-se com o estabelecimento dos critérios para seleção dos pacientes-família, a fim de comporem a amostra. Os critérios foram: existência de universo familiar; idade entre 21 a 50 anos; até três internações; não alcoólicos. Foram realizados levantamentos junto a instituições de saúde mental e realizadas visitas às famílias com a finalidade de checar os dados da instituição e verificar a aceitação do trabalho. Neste primeiro momento constatou-se um grande número de pacientes sem família, encaminhados por órgãos de assistência social, indigentes, pedintes e andarilhos. A grande maioria dos pacientes não tem vinculação com trabalho e escola, bem como são quase que, na sua totalidade, pacientes reincidentes com número de internações variando entre 1 a 20.

Através dos dados obtidos junto às instituições de saúde mental, tem-se que o paciente psiquiátrico, após internação, é "devolvido" à família/ comunidade sem que haja qualquer tipo de trabalho/atendimento que viabilize a sua volta ao meio social, sendo utilizado apenas o critério de alta quando o quadro do paciente encontra-se "estável". Este retorno sem preparo ao meio familiar é um dos responsáveis pelo ciclo internação-reinternação que se verifica na história de vida de muitos pacientes.

Frente a esta realidade, com o problema formulado e com os dados obtidos junto à comunidade, partiu-se para a elaboração e aplicação de um instrumento que é objeto do presente relato, a fim de possibilitar um trabalho em nível de reintegração do paciente à família, entendendo ser este um ponto crucial para a efetiva recuperação do paciente.

O segundo momento explicitou-se através de um estudo piloto, com um paciente-família, cujo objetivo foi o de fornecer subsídios para a elaboração e aplicação do programa de atendimento, sendo que a intervenção teve duração total de 1 ano e 2 meses, dos quais 6 meses foram a aplicação do programa.

O programa de atendimento elaborado apresenta-se da seguinte forma:

1. Objetivo principal: reintegrar o indivíduo na família.

a) Reintegrar significa ter nova ocupação de espaço (ação, responsabilidades e poder de decisão como os outros membros), dentro da família;

b) Indivíduo aqui estabelecido como aquele que teve, no máximo, três internações em uma instituição de saúde mental, residente em Maringá;

c) Família significa pessoas que moram juntas e desempenham os papéis de pai, mãe, irmãos, avô, avó, tio..., aparentadas ou não, que mantenham uma relação de continuidade e manutenção da mesma.

2. Objetivos secundários:

a) Captar a responsabilidade da família no aparecimento e na manutenção da doença;

b) Reorganizar os espaços e papéis dos membros da família;

c) Promover a reconstituição das regras e dinâmicas familiares pela própria família;

d) Propiciar o investimento da família no indivíduo, deixando de estigmatizar incompetência, incapacidade, irresponsabilidade.

3. Estratégias:

a) Trabalhar com foco (entendido como o objetivo que se pretende atingir com o programa), e não com os sintomas;

b) Trabalhar com a comunicação da família: conteúdos verbais e não verbais, mensagens explícitase implícitas, com as respectivas decodificações;

c) Trabalhar com a identidade do indivíduo - processo de reidentificação;

d) Necessidade do maior número de pessoas da família presentes aos encontros;

e) Visitas semanais, tempo determinado de mais ou menos uma hora;

f) Material apresentando durante o encontro:

f.1) histórico da doença;

f.2) percepção da família em relação ao início e ao desenvolvimento da doença;

f.3) função da doença na família;

f.4) organização da dinâmica familiar - anterior e posterior ao aparecimento da doença;

f.5) a maneira de ocorrência da alta e a volta do doente à família - papéis de cada um dos membros;

f.6) papel do indivíduo no espaço familiar - responsabilidades, ação e capacidades.

g)  Duração da intervenção previamente estabelecida - 6 meses;

h) Número de participantes e papéis fixos:

- um coordenador - atuação direta na situação (papel ativo), referencial para a família;

- observadores) - atento(s) às mensagens não verbais e encarregado(s) dos registros.

i) Reuniões semanais para discussão e análise do programa;

j) O programa não se propôs a trabalhar com conteúdos profundos e individuais;

k) Se necessário for (ou a pedido), poder-se-a fazer, ao término do programa de atendimento, o encaminhamento do indivíduo e/ou da família para outro tipo de atendimento;

l) Avaliação do programa - dois meses após o término.

4. Intervenção:

a) Questionar a família, solicitar dados e esclarecimentos quanto ao relato. Explorar em detalhes as suas respostas;

b) Fornecer informações, sempre que necessário ou a pedido;

c) Rever, juntamente com a família, os conceitos sobre a situação particular dos conflitos;

e) Enfatizar relações entre constelações significativas, dados e capacidades da família;

f) Ressaltar os espaços conquistados e os papéis assumidos dentro da família;

g) Esclarecer as mensagem da família, para que certos conteúdos sejam mais bem compreendidos;

h) Resumir e rever pontos importantes, surgidos no decorrer do programa;

i) Estimular a comunicação entre os membros da família;

j) Trabalhar com a história da famflia e os emergentes.

O paciente-família do estudo piloto foi R., de 23 anos, sexo feminino, solteira. Integra uma famflia composta por pai, mãe, sobrinha e três irmãos, sendo a única filha. R. foi internada em instituição de saúde mental de Maringá, por decisão da família - especialmente do pai; é debilitada fiscamente, muito nervosa e deprimida, acliando "tudo na vida ruim". Permaneceu internada por 50 dias.

Encontramos R. completamente dependente dos pais, sem condições de tomar decisões ou executar trabalhos, submissa e debilitada fisicamente. Apresentando queixa de muito nervosa, falta de apetite, dores no peito, falta de ar, "voz trancada","fogocurto",desânimo e desejo de morrer.

Durante os primeiros meses de contato com a família, obtiveram-se os seguintes dados: a renda familiar não é fixa; os dois filhos e opai têm a responsabilidade do sustento da família e a mãe é responsável pelo trabalho doméstico e cuidados com a neta; quanto à condição sócio-econômica, a família insere-se nas chamadas classes populares, podendo ser definida como carente, face à baixa renda familiar conseguida através de subempregos e trabalhos de alta rotatividade (período de safra e entressafra). Pela dinâmica familiar observada, pode-se definir a família como hierarquicamente organizada, fundada na autoridade paterna, onde os membros do sexo masculino ocupam prioritariamente a função de manutenção e conseqüentemente de decisão.

A elaboração e aplicação do programa de atendimento partiu do pressuposto de que o indivíduo pode passar a atuar no seu meio familiar, no momento em que a sua família o entenda e o aceite como uma pessoa com capacidades.

Os resultados obtidos apontam tanto para a família como um todo, quanto para a paciente identificada Ao final da aplicação do programa observa-se que a família entende e assume a sua responsabilidade no aparecimento e manutenção da doença de R. e das doenças dos seus outros membros, conseguindo estabelecer a doença, independente da sua forma de exteriorização no sujeito, como um desequilíbrio que aparece ou é agravado pela própria ação familiar.

A reorganização na dinâmica familiar foi observada a partir do momento cm que ela permitiu a "palavra" ao doente, sendo esta ouvida e entendida. Também na assiduidade dos seus membros aos encontros semanais. O repensar dos papéis, começando pelo pai, a possibilidade de expressar afeto, com gestos, palavras e encontros, resgataram e valorizaram a comunicação entre os membros da família, tendo como pontos de ação: melhoria na aparência pessoal, maior limpeza na casa, alteração na disposição dos móveis; possibilidade de cada membro expressar os seu problemas; organização de um tempo sem a presença das pesquisadoras para a família se reunir e conversar.

Quanto a R., puderam ser constatadas alterações nos seguintes aspectos: passou a ter uma participação efetiva como membro da família, o que foi indicado pelo seu envolvimento em afazeres domésticos, cuidados pessoais c trabalhos manuais; obteve condições de expressar os seus desejos e executá-los, como saídas para encontros com o namorado, passeios, bailes; imprimiu um ritmo seu na organização e distribuição dos objetos na casa, sendo reconhecida como importante a sua atuação por parte da família; passou a manifestar suas vontades c medos, sem se sentir "menor" ou "louca" por externá-los; desaparecimento dos sintomas iniciais; poder de decisão e responsabilidade como os demais membros da família, questionando e podendo aceitar ou não os posicionamentos da família quanto à sua pessoa, ou quanto à organização da própria família; não retornou ao sanatório.

O programa de atendimento foi avaliado dois meses após o seu encerramento com a família de R. A avaliação constou de uma visita à família com o objetivo de se verificar se os progressos presentes, quando do término da intervenção, ainda se mantinham; constatou-se que R. encontrava-se disposta a procurar um trabalho e pensava em casar-se; seus sintomas não reapareceram e sua família continuava mantendo encontros semanais para que todos os membros tivessem um espaço para conversar.

Em março de 1990 foram realizados encontros com a família de R., com o objetivo de verificar se as conquistas presentes ao término do trabalho permaneciam. Verificou-se que R. não apresentou quadros que a levassem novamente ao sanatório. Nesse tempo submeteu-se a duas cirurgias de certa gravidade; continua morando com os pais e namorando com J. (o mesmo namorado que tinha, quando da aplicação do programa).

Quanto à família, reside na mesma casa. Um dos filhos casou-se e separou-se da família, sendo que sua filha permaneceu com a família. Os seus membros estão empregados, todos colaborando com o sustento familiar.

 

Discussão e conclusão

A elaboração do programa de atendimento partiu das considerações de Bohoslawsky (1977), sobre o enquadre, onde se explicita a necessidade de se estabelecerem parâmetros relacionados ao tempo, lugar, atribuição de papéis, objetivos e de se considerar que, se estes não forem pré-estabelecidos, o comportamento do entrevistado assume um caráter caótico e incompreensível ao entrevistador. Pode-se ressaltar que os progressos de R. e da sua família só foram possíveis após a sistematização do programa, que passou a fornecer papéis bem delineados e a atuar como um referencial externo para a problemática e angústia vivida pela família.

O progresso de R. foi observado através dos encontros semanais, onde as suas verbalizações e comportamentos deixavam claro que uma nova condição mais participativa se organizava. Pode-se entender este progresso através das palavras de Lembruger (1984), que ressalta a função da psicoterapia breve de catalizar as reações internas e orientá-las para a realidade da vida e para a adequação do indivíduo à sua identidade, pois o sofrimento do paciente não é tanto pelas recordações penosas reprimidas, quanto o é pela incapacidade de enfrentar e resolver problemas atuais. Reforçam-se as palavras de Satir (1980), ao postular que a comunicação é o maior fator determinante do tipo de relação que se estabelece entre os indivíduos, relacionando também a doença ou a saúde emocional da família com a baixa ou a elevada auto-estima de seus membros.

A ação da família sobre a doente fica clara nas palavras de Bleger(1980), quando ele postula que o pisocólogo não tem porque aceitar o critério da família sobre quem é o doente; a sua atuação deve ser realizada através da visão de que todos os membros estão implicados e o grupo se encontra doente.

Entende-se que a família, conforme seu funcionamento, oferece formas objetivas aos papéis distintos, mas vinculados de pai, mãe e filho; a partir do momento em que ela passa a refletir sobre a sua forma de ação, junto aos seus membros, e essa reflexão pode ser extemalizada, ela começa a se organizar no sentido de promover alterações na sua dinâmica, pois como afirma Laing (1983), quando obedecemos a determinadas regras, mas não as questionamos, não temos condição de saber se elas existem ou não.

Pichon-Reviére (1982), esclarece que a emergência da doença mental no grupo familiar significa que um membro deste grupo assume um novo papel, transforma-se no depositário da ansiedade do grupo.A estrutura grupal se altera e aparecem mecanismos de segregação do doente, sendo que o "prognóstico" do caso depende, em grande parte, da intensidade destes mecanismos de segregação, ou seja, da receptividade ou não receptividade do grupo.

A participação da família favorece a discussão dos problemas pessoais/familiares, de forma que a angústia pode ser vivenciada e entendida pelos seus membros, à medida que a família se propõe como catalizadora de sua própria problemática e deixa de necessitar de um "porta-voz", um "bode expiatório" para externar as suas angústias e se reorganizar de modo a trabalhar os seus problemas. O fato de não se trabalhar com a sintomatologia do indivíduo facilitou a execução do trabalho, pois a proposta de "conversar" com a família sobre ela própria propiciou uma nova inserção do PI como membro atuante, levando todos os membros a perceberem que, mesmo "sãos", apresentam conflitos, angústias, características não apenas de pessoas consideradas doentes.

O programa de atendimento cumpriu, assim, com os seus objetivos, através da intervenção intencional feita à família, rompendo-se o círculo vicioso da sua dinâmica, possibilitando que a mesma fosse alterada. Assim, pesquisadores e família puderam falar sobre o que estava acontecendo, rever o papel da doença na família e encontrar saídas alternativas, de modo que os conflitos familiares pudessem ser explicitados e assumidos por todos os membros da família e não delegados a uma pessoa específica: o doente. Constatou-se que o comportamento do indivíduo, retirado do seu contexto, perde o seu significado, adquirindo significados outros que lhe são impostos. O programa proporcionou a reintegração do indivíduo na família e, por conseguinte, ofereceu as condições para reintegração no meio social mais amplo e demonstrou que é possível obterem-se resultados relevantes quando se desenvolve um trabalho visando o paciente e a sua família e não somente o paciente, como ocorre com o tratamento convencional.

A visita de avaliação, quatro anos após o encerramento do programa, reafirmou as conquistas obtidas e reporta-nos a Minughin (1982), quando evidencia que uma vez que se produziu uma mudança, a família a preservará, mesmo na ausência do terapeuta, através de seus próprios mecanismos auto-reguladores.

Conclui-se, portanto, que essa forma de intervenção pode e deve ser melhor explorada, pois o estado atual da saúde mental no Brasil depara-se, ainda, com a excessiva discrepância entre as teorias e a prática junto ao doente mental. Depara-se, também, com a desvinculação entre áreas que poderiam e deveriam atuar em conjunto para trabalhar esta questão, como a Psicologia, Psiquiatria, Enfermagem, Serviço Social, Sociologia, Terapia Ocupacional... Assim poderiam desenvolver um trabalho enquanto equipe de profissionais ligados à área de saúde, em instituições de saúde mental e escolas de psicologia e medicina, possibilitando dessa maneira que um número maior de pacientes pudessem ser beneficiados.

Ao apresentarmos o relato e reflexões sobre o trabalho que desenvolvemos, lançamos - para a comunidade acadêmica, profissional e, esperamos, à comunidade em geral, - um modesto subsídio, mas que possa ser instigador de novos interesses, debates e trabalhos. Subsídio este que aponta para a necessidade, não só de aprofundamento teórico, mas de atuação concreta na reelaboração coletiva da questão da doença mental, e para a socialização das conquistas individuais ou grupais.

 

Bibliografia

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