SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 número2-4O trabalho do psicólogo com famílias de pacientes psiquiátricos: Relato de uma experiênciaCompetência técnica versus compromisso político: um dualismo sustentável na psicologia? índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.10 n.2-3-4 Brasília  1990

 

Atuação de psicólogos na Saúde Pública: dificuldades e possibilidades de trabalhos com grupos

 

 

Cristina Vilela de Carvalho; Lúcia Cecília da Silva

Docentes do Departamento de Psicologia da Fundação Universidade Estadual de Maringá

 

 

As reflexões aqui expressas são fruto de uma pesquisa que investigou as formas de atendimento psicológico em grupo desenvolvidas por psicólogos da saúde pública na cidade de Maringá (PR). Realizou-se entrevistas semi-dirigidas com estes profissionais e seus discursos foram analisados, principalmente quando se referiam a grupos de gestantes, diabéticos, hipertensos e pais de crianças em atendimento psicológico.

O primeiro dado que chama a atenção é que, além de ser um trabalho previsto pela instituição, o interesse pelo atendimento psicológico em nível grupal parte também dos psicólogos que vêem nesta modalidade de intervenção uma forma de estender os serviços psicológicos a um número maior de pessoas que procuram a saúde pública Contudo, apesar do interesse manifesto, os psicólogos apontam que enfrentam muitas dificuldades nesse trabalho, principalmente no que se refere à formação e manutenção dos grupos.

Deste fato partiu-se para uma análise sobre o discurso corrente na psicologia atual que trata da necessidade de se trabalhar com grupos como forma de estender os recursos psicológicos a um número maior de pessoas, principalmente àquelas mais desfavorecidas pelo sistema sócio-econômico e, também, procurou-se refletir sobre as dificuldades relatadas pelos psicólogos em se trabalhar com grupos.

Os depoimentos colhidos vieram confirmar e ilustrar que o psicólogo atuante na saúde pública defronta-se com uma clientela que aliada às dificuldades emocionais traz problemas que dizem respeito à sua condição material de vida, tais como falta de trabalho, moradia, más condições de alimentação, exposição à violência, só para citar alguns.

Partindo dessa realidade, os psicólogos argumentam que com essa clientela e com as condições, quase sempre, inadequadas de trabalho oferecidas pela saúde pública, não é possível desenvolver um atendimento psicológico com os mesmos procedimentos e recursos técnicos utilizados no atendimento de clientes que procuram serviços particulares. Neste sentido, os profissionais afirmam ser necessário uma "adaptação" dos conhecimentos psicológicos à situação encontrada na saúde pública visando, principalmente, o aspecto educativo onde, muitas vezes, o objetivo é a "conscientização0" da clientela sobre suas condições de vida.

Imerso nessas adversidades e imbuído do desejo de minorar o sofrimento de sua clientela, pode-se dizer que a tentativa de adaptar os conhecimentos psicológicos a um atendimento pretensamente mais eficaz para as camadas populacionais desfavorecidas acaba, em última instância, referendando as diferenças de classes establecidas pelas relações sociais da produção capitalista.

Embora querendo prestar um atendimento que melhore as condições de vida da população os psicólogos, ao adaptarem os conhecimentos científicos, acabam por demonstrar de forma inequívoca que a ciência (no caso a psicologia), uma produção social, é apropriada e usufruída pela classe social detentora do capital. De modo simples, pode-se afirmar que na prática o que se opera é que a burguesia fica com a "nata" da psicologia, daquilo que já foi validado cientificamente e o proletariado fica com as "novas alternativas", com as experiências que os psicólogos, de modo geral, vão criando ao sentirem dificuldades, de forma que o proletariado é expropriado de mais um bem que o homem socialmente produziu.

Entende-se aqui que o trabalho com grupos é um campo de atuação que já foi bastante desenvolvido pela psicologia. Contudo, como qualquer outro procedimento científico, ele tem de ser usado por quem possui conhecimento tanto de seus aspectos teóricos quanto técnicos, e deve ser indicado para os casos que realmente vão se beneficiar com esse tipo de procedimento.

Neste sentido, faz-se necessário refletir sobre os discursos que afirmam ser o trabalho grupal como o mais adequado na saúde pública. O atendimento em grupo deve, sim, ser realizado quando ele for a melhor indicação técnica para o caso e não deve ser usado, apenas, para dar conta da grande demanda.

Quanto a este aspecto cabe destacar que por maior que seja o número de pessoas atendidas pelo psicólogo, ele não dará conta da demanda existente se não mudarem questões que transcendem o seu poder de atuação. É gritante as precárias condições de vida da maioria da população e fácil verificar que a angústia, o desespero, a depressão não estão apenas relacionados ao mundo intra-psíquico mas, também, às condições concretas de vida das pessoas. Assim sendo, faz-se necessário que o psicólogo entenda os limites de sua ciência, e assuma que, por si só, a psicologia não pode dar conta dos problemas intrínsecos à ordem social vigente.

Outro aspecto a ser observado é o fato dos psicólogos argumentarem que apesar dos muitos esforços que fazem, é difícil realizar os trabalhos que se propõem, uma vez que os grupos não se mantém enquanto tal1. E uma indagação que fica é: será que pelo menos parte das pessoas que procuram os psicólogos nos serviços de saúde pública, ao invés de trabalho em grupo não necessitavam do atendimento individual? Pode-se inferir que parte do fracasso dessas experiências pode estar relacionada ao fato de que o procedimento foi pautado pelo desejo do psicólogo e não pela necessidade do cliente. Isto, psicologicamente falando, é suficiente para obstruir o trabalho já em sua gênese.

Merece indagação, também, se o objetivo acenado pela psicologia na saúde pública - o de propiciar saúde mental através dos grupos que veiculem informações psicológicas - é possível de ser alcançado. A melhoria da saúde mental da população em decorrência da educação psicológica, parece não estar sendo constatada na realidade concreta.

Costa (1984) aponta para o falo de que experiências de trabalhos psicológicos em nível de informação/educação são fadados ao fracasso porque almejam transpor níveis mentais que são intransponíveis com esse tipo de abordagem técnica. Já nos primórdios da psicanálise, Freud assinalou que não é o conhecimento teórico - o entendimento em nível consciente - que possibilita mudanças nos processos afetivos do indivíduo. E tendo a psicanálise por referência, pode-se dizer que qualquer trabalho que se atenha apenas aos aspectos mais superficiais, isto é, que se respalde num contexto de informação/ educação psicológica, muito provavelmente, não terá o sucesso esperado.

Na medida que já existe todo um conhecimento científico produzido, por exemplo a psicanálise, que aponta a ineficiência de trabalhos psicológicos em nível informativo/educativo com o objetivo de melhorar a saúde mental da população, cabe questionar o motivo da insistência na forma "adaptada" de atuação.

Parece possível algumas tentativas de respostas. A primeira delas está na própria crise que atravessa o modo de produção capitalista. No bojo do encaminhamento de sua manutenção, a ideologia do capital traz o pressuposto de não se respeitar o saber acumulado pelos homens através da ciência, incentivando uma atuação em nível pragmático, individual, de senso comum. Há um descaso para com o conhecimento historicamente organizado. E aqui está a se falar do descaso que é feito a alguns princípios elementares, mas fundamentais, das teorias psicológicas. Concretamente, o que se observa no trabalho de muitos psicólogos é o abandono da ciência. Individualmente, estes profissionais procuram desenvolver práticas inusitadas fazendo esvaziar cada vez mais a ciência psicológica.

Dentro disso têm-se, ainda presente entre certos profissionais da psicologia, a postura de se criticar determinadas linhas teóricas alegando-as inadequadas à realidade brasileira. Muitas dessas críticas são feitas sem um conhecimento mais aprofundado das teorias e sem se ter em mente que a ciência, enquanto tal ,não procura o que há de diferente mas o que há de comum, de universal. Esta prática favorece o descarte de conhecimentos que poderiam contribuir no exercício profissional.

Como já se afirmou anteriormente, o atendimento psicológico em grupo surge como uma forma dos profissionais conduzirem trabalhos mais avançados no sentido de se fomentar uma "consciência crítica do social", na clientela atendida. Só que ao contrário do que se pretende, os psicólogos acabam contribuindo no processo de normatização social das pessoas que procuram os serviços de psicologia. Conforme argumenta Costa (1984, p.7).

"a redistribuição do saber psicológico medida aparentemente democrática, assumindo a forma de educação, incorporou também a função social que esta última cumpre numa sociedade comandada por interesses de classe. Tornou-se um instrumento de conversão dos. indivíduos aos valores ideológicos da elite dominante".

Nesse contexto, pode-se arriscar a dizer que o motivo da psicologia estar nos últimos tempos desenvolvendo trabalhos em prol da "conscientização do proletariado" é circunscrito, em última análise, por mecanismos que servem à manutenção da hegemonia do capital. Como salienta Costa (Op. cit), além da educação psicológica não produzir saúde mental, ela reproduz a ordem social.

Finalmente, um nível bem mais específico que também tem relação com a não valorização dos conhecimentos psicológicos como diz respeito ao aspecto primeiro no atendimento psicológico em grupo: a sua formação. Muitos grupos são formados em função de um tema comum aos indivíduos (gestantes, hipertensos, diabéticos, etc) ou por faixa etária e sexo. Contudo, a bibliografia especializada mostra que o trabalho com grupos, em qualquer abordagem (seja na psicanálise, no psicodrama, na gestalt, na não-diretiva), deve levar em consideração inúmeros outros aspectos para que se consiga resultados terapêuticos. Os pressupostos teóricos acabam sendo relegados quando os profissionais pautam-se por critérios mais práticos, superficiais, ligados aos seus próprios desejos e/ou às exigências institucionais.

Sintetizando as análises aqui colocadas e para que as mesmas possam ser aprofundadas por outros estudos, pode-se dizer que alguns dos fatores que contribuem para o fracasso de muito dos trabalhos psicológicos com grupos podem ser vistos, pelo menos, em três aspectos. Em primeiro lugar, a psicologia não atende e não resolve parte das problemáticas psicológicas da clientela de baixa renda pois estas estão vinculadas às condições de subsistência cuja resolução transcende o alcance da psicologia. O segundo aspecto é o fato de que aqueles conflitos e sofrimentos emocionais que poderiam ser trabalhados, não estão encontrando caminhos para suas resoluções uma vez que muitos profissionais estão respaldados mais pelo "senso comum" que pelos conhecimentos científicos produzidos pela psicologia. E, em terceiro lugar, pode-se inferir que, se os trabalhos dos psicólogos acabam funcionando em prol da hegemonia burguesa, o não investimento por parte da clientela no trabalho proposto, pode estar sendo uma forma indireta de lutar contra a submissão ideológica que lhe é colocada (Melo, 1985 ePatto, 1987).

Desta forma, parece fundamental o resgate de conhecimentos que os profissionais da psicologia têm de fazer. Muitos dos conhecimentos desta ciência devem ser retomados e estudados profundamente. Parece salutar que os psicólogos dediquem-se à apropriação de sua ciência e que, ao mesmo tempo, apropriem-se da história dos homens para que possam perceber e entender os limites da psicologia. Assumir estes limites e apontar que eles se colocam em função dos limites estabelecidos por uma sociedade de classes, talvez seja o primeiro passo para se construir, verdadeiramente, um novo conhecimento.

 

Nota

(1) Segundo o relato dos psicólogos, os grupos se desfazem pois seus elementos deixam de comparecer aos encontros alegando/alta de tempo, dificuldades no transporte, impossibilidade de se ausentar do trabalho etc.

 

Bibliografia

1. COSTA, Jurandir F. Violência e Psicanálise - RJ. Ed. Graal, 1984.        [ Links ]

2. MELLO, Sylvia L. A Sobrevivência no campo e na cidade, segundo mulheres de periferia, SP, IPUSP, Tese de livre-Doc. 1985.        [ Links ]

3. PATTO, Maria Helena S. A produção do fracasso escolar, SP, IPUSP, Tese de Livre-Doc. 1987.        [ Links ]