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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.10 n.2-3-4 Brasília  1990

 

Competência técnica versus compromisso político: um dualismo sustentável na psicologia?*

 

 

Zilda Pereira Del Prette; Almir Del Prette

Universidade da Paraíba

 

 

Muito se tem falado da "crise" napsicologiae sob os mais diferentes ângulos. De certa forma pode-se afirmar que a história da psicologia tem sido marcada, desde a sua origem, por tensões entre posições divergentes, conceituais e metodológicas que se situam em torno de sua identidade enquanto ciência.

Considerando-se a configuração, cada vez mais flagrante da psicologia como uma profissão, essas tensões se refletem também nas áreas de aplicação onde sua identidade passa a ser questionada a partir da função social da prática que está sendo conduzida.

Em termos gerais de ciência, a lembrança do primeiro laboratório de psicologia ocorre como um marco destacável de sua separação gradual da filosofia e de sua tentativa de adoção de modelos das ciências naturais. Tal empreendimento, embora não totalmente esgotado com o projeto do positivismo e do neopositivismo, chega a uma certa saturação com os modelos explicativos excessivamente reducionistas e passa a gerar a busca de modelos mais abrangentes e de articulação com outras ciências, caracterizando oposições entre modelos ou orientações teóricas.

Com relação à "prática", ressente-se, mais e mais, especialmente no país, da falta de um projeto relacionado (ou dialético) do saber/fazer, o que tem levado à autocrítica da formação e da prática profissional (Bastos, 1988; Botomé, 1988; Carvalho, 1988, 1989; Gomide, 1988; Medeiros, 1989; Mello, 1989; Sass, 1989). Poder-se-ia dizer que a Psicologia, enquanto profissão, carece de uma valoração positiva.

A autocrítica da formação e da atuação profissional e as tensões da análise teórica têm se desdobrado, em nível acadêmico, em alguns posicionamentos. Um deles é representado pela ênfase, bastante acentuada, no compromisso da atuação profissional com o processo de transformação da realidade social, em contraponto com a defesa da competência técnica.

O presente artigo pretende contribuir para o questionamento da dualidade, que se tem estabelecido, entre a competência técnica e o compromisso político no discurso da formação necessária ao profissional de psicologia.

 

O dualismo: competência -compromisso

As categorias competência técnica e compromisso político têm sido usadas na educação como eixo da discussão sobre sua função social, particularmente na escola pública de lo. grau, e sobre as mudanças que se fazem necessárias na atuação do professor para concretizar essa função (Nosella, 1983; Melo, 1984; Saviani, 1984). No 3º grau e especificamente no caso da psicologia, elas têm aparecido, com ênfase crescente, associadas à qualidade e à relevância social dos produtos da atuação do cientista e do profissional.

Os defensores do compromisso político tendem a questionar o valor do conhecimento acumulado que não se articula, de forma mais imediata e explícita, à análise da realidade social e à resolução dos problemas urgentes que ela apresenta. Nesse sentido, tendem a superestimar a justificativa teórica, geralmente apoiada em categorias sociopolíticas para a abordagem de temas e questões sociais ou, pelo menos, das implicações sobre eles, priorizando essa resolução mais do que a produção de conhecimento. A preocupação do cientista ou do profissional com essas questões, no entanto, é tomada como um indicador mais confiável de sua contribuição do que a avaliação dos resultados concretos de sua ação e dos métodos utilizados.

Em termos do referencial teórico, os defensores do compromisso político tendem a imputar, a teorias e modelos, um conteúdo ideológico questionável a partir de sua origem em países capitalistas, em especial os de tradição experimental. Na falta de referenciais psicológicos para a abordagem a um fenômeno, acabam buscando na sociologia e nas ciências políticas categorias explicativas que permitem as análises teóricas. Os que se apoiam mais fortemente em tais categorias tendem a assumir um discurso um tanto quanto panfletário e próximo do militante, confundindo sua análise de cientista com argumentações políticas.

Os defensores da competência técnica exibem uma postura de negligência com as questões sociais emergentes. De um modo geral defendem o valor intrínseco da produção sistemática de conhecimento, com ênfase na qualidade e no rigor do processo, na confiabilidade do produto, nas metodologias de laboratório. Os mais entusiastas vão mais longe, chegando a fazer a apologia da já superada questão da neutralidade científica ou de que o fazer científico nada tem a ver com os projetos de mudança da sociedade.

O discurso da competência rejeita a atribuição do rótulo de ciência às áreas de conhecimento onde a pesquisa dos fenômenos encontra-se ainda em fase de estudos descritivos e quase experimentais e tende, igualmente a tomar como desviante a investigação de temas ou objetos que fujam àqueles já consagrados no âmbito da disciplina.

O dualismo entre os defensores da competência e os defensores do compromisso se reflete também nas críticas que se endereçam reciprocamente. Os primeiros têm sido referidos como "conservadores", "autoritários", portadores de uma visão restrita dos fenômenos que estudam, tendendo mesmo ao "psicologismo" e, ainda, ingênuos quanto às implicações de sua prática. Os segundos têm sido rotulados, também, como ingênuos, porém no sentido de sonhadores quanto às possibilidades de sua prática para a transformação social. Além disso são vistos como incapazes para a atividade verdadeiramente científica em psicologia, o que estaria na base de sua tendência para o discurso, especialmente do discurso político.

 

Competência ou compromisso

O dualismo entre competência e compromisso tem se colocado, de forma dicotômica, em torno de algumas categorias básicas como por exemplo:

a) produção versus aplicação do conhecimento;

b) engajamento versus neutralidade política do cientista;

c) produto versus processo;

d) produto pretendido versus obtido;

e) psicologismo versus sociologismo.

Sob tais categorias acentua-se a discrepância entre as posições e tornam-se mais distantes quaisquer tentativas de superação desse dualismo. Segue-se que o seu questionamento implica na análise do caráter dicotômico das categorias consideradas mais pertinentes ou mais relevantes.

A questão da produção versus aplicação do conhecimento e do engajamento versus neutralidade estão bastante relacionadas. A polêmica em torno da neutralidade tem sido geralmente dirigida ao cientista que defende a independência da produção de conhecimento em relação às demandas e aos problemas sociais que a realidade apresenta.

De um lado pode-se questionar essa posição na medida em que promove a idéia de uma psicologia "asséptica" de realidade social, em que facilita ou promove o reducionismo psicológico e em que nega ou ignora as possibilidades e/ou necessidades de sua articulação com disciplinas e teorias que oferecem outro nível de explicação sobre o contexto social em que o fato psicológico ocorre.

Na perspectiva da psicologia como uma profissão e como um corpo de conhecimento em processo de construção, torna-se importante e urgente deslocar esse questionamento também para o profissional que busca a aplicação imediata, e para o seu compromisso com o processo de produção de conhecimento que, em última instância, é o que vai sustentar,efetivamente, aqualidade de sua prática.

As vinculações necessárias entre a produção/aplicação de conhecimento na construção da identidade da psicologia implicam, portanto, em uma atuação que, no contexto atual de sua característica enquanto ciência e profissão, deveria levar tanto o cientista quanto o profissional a rever o seu compromisso com ambos os processos e com a interdependência entre eles.

A questão do produto pretendido versus obtido e do produto versus processo é pertinente à discussão dos meios e dos fins. Em defesa do compromisso político tem-se a prioridade dos objetivos em relação às estratégias de qualquer programa de produção/aplicação de conhecimentos. No contexto da atuação do psicólogo, equivale a questionar as habilidades comumente características do fazer psicológico, se e quando elas não estão orientadas para objetivos socialmente relevantes. Em defesa da competência técnica tem-se o fato de que estratégias eficientes são imprescindíveis para transferir, do plano da concepção para o plano da ação, as metas que orientam o que-fazer profissional. Considerando-se a natureza dessas metas pode-se mesmo afirmar que, quanto maior o compromisso, maior deveria ser a competência técnica para garantir, na prática, a concretização desse compromisso.

Não se pode prescindir, portanto, de uma avaliação mais precisa sobre os produtos concretamente alcançados (e não apenas pretendidos) pelas intervenções na comunidade e das condições, das estratégias, dos processos que se relacionam, de forma determinante, à obtenção daqueles produtos (Del Prette, 198S; Del Prette, 1986). A análise e avaliação dessas intervenções se coloca como um conhecimento necessário para garantir a eficiência das mesmas e para desenvolver a perspectiva teórica em que se sustenta o discurso do profissional e cientista.

O psicologismo e o sociologismo parecem ser decorrência, de um lado, da rejeição de articulações entre a psicologia e as ciências sociais e, de outro, da rejeição de teorias e modelos explicativos dentro da psicologia.

A rejeição de teorias e modelos em função de sua origem pode provocar um vazio explicativo na medida em que não se constrói um referencial substituto, o que leva, em geral, ao desdobramento do "sociologismo". O "sociologismo", na psicologia, representa a tendência de substituir teorias psicológicas por categorias políticas, relacionando-se fenômenos psicológicos (loucura, distúrbios decomportamento, dificuldade de aprendizagem, etc.) às contradições sociais vividas pela grande maioria da população do país.

Esse reducionismo sociológico reflete uma negligência em orientar esforços no sentido de desenvolver as possibilidades de contribuição da psicologia para a análise do fenômeno. Não se trata, aqui, de negar que tais contradições estejam na base de muitos problemas "psicológicos", mas de reconhecer as limitações dessa explicação para a intervenção sobre esses problemas e para alterar o quadro de injustiça social.

Cabe ressaltar também as contradições dos defensores do compromisso quando, na tentativa de caracterizar o trabalho como engajado, passam a ancorá-lo em categorias sócio-políticas. Observa-se, muitas vezes, trabalhos que utilizam "metodologia positivista" circundados por introduções e conclusões de "cunho marxista". Além disso, pode-se constatar que, freqüentemente, essas categorias aparecem como extemporâneas pelo fato de não se articularem à análise psicológica.

Não se ignora que as teorias são produzidas no contexto ideológico de sua origem no espaço e no tempo. Considera-se, no entanto, a necessidade de avaliar essas teorias tendo, como critérios, o seu poder explicativo e a sua condição de falseabilidade, conforme prescreve Popper (1972).

É importante reconhecer, entretanto, que, embora o experimento tenha sido, ao longo da história, o caminho privilegiado da produção de conhecimento, outras vias também têm sido exploradas e deveriam, portanto, ser consideradas, especialmente em áreas onde a opção pelo estudo experimental implica em excluir ou retardar a abordagem ao fenômeno até que se criem as condições necessárias de refinamento metodológico.

Sem pretender esgotar os questionamentos possíveis, espera-se que os anteriores sejam suficientes para afirmar que o dualismo competência-compromisso pode ser visto como um equívoco gerado pela polarização em torno de posições aparentemente dicotômicas, que não são questionadas em termos de suas possíveis articulações, e por preconceitos a teorias e modelos ou mesmo a objetos de investigação.

 

Competência e compromisso

A superação do dualismo competência técnica-compromisso político implica em uma reorientação da análise desses pólos para uma perspectiva mais globalizante. Poder-se-ia dizer que tal superação se constitui em uma exigência a favor da identidade positiva da psicologia.

Observa-se atualmente, uma politização crescente na vida social que gora demandas diferenciadas na pesquisa e na atuação do psicólogo. De um lado, há uma "atmosfera intelectual" que critica o isolamento do pesquisador e defende a necessidade de uma aderência do cientista à realidade social do país. De outro, a emergência de novos objetos de pesquisa traz, em seu bojo, questões sócio-políticas que não mais podem ser ignoradas.

As respostas às demandas dos novos objetos e temas passam necessariamente pela formação de profissionais competentes e comprometidos, com ênfase não em uma ou outra posição, mas na articulação entre ambas.

Isto significa formar profissionais capazes de atividade científica e de reconhecer a dimensão política dessa atividade em suas implicações sociais, sem cair no pragmatismo imediatista, porém sem ignorar o contexto social em que essa atividade está ocorrendo. Significa também, por outro lado, formar profissionais competentes em seu compromisso, ou seja, capazes de colocar o seu saber científico a serviço da produção de conhecimento nas diversas áreas de aplicação da psicologia de onde provêm as demandas sociais e, nesse processo, contribuir para a compreensão dos fenômenos e desenvolver e aperfeiçoar estratégias eficientes de intervenção sobre eles.

Encaminhar essa reflexão para a formação profissional do psicólogo implica colocar sob análise os produtos dos cursos de psicologia e os programas e procedimentos desenvolvidos pelos educadores. Nesse sentido, a "prática psicológica" passa a ser também objeto da investigação da psicologia, tanto a acadêmica quanto a profissional.

 

Bibliografia

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* Este artigo representa uma versão modificada de trabalho apresentado pelo primeiro autor, na 1ª Semana Nordestina de Psicologia, realizada em João Pessoa, em março de 1989. Os autores agradecem a leitura crítica dos colegas Bartolomeu Tróccoli e Maria teresa M. B. Campello.