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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.10 n.2-3-4 Brasília  1990

 

É possível os Distritos de Educação e Cultura estarem a serviço da transformação

 

 

Adir de Luz AlmeidaI; Cecília Maria Bouças CoimbraII

IPsicóloga na Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro
IIPsicóloga na Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Professora Adjunta de Psicologia Escolar na Universidade Federal Fluminense

 

 

Pretendemos fazer um sucinto histórico dos distritos de educação e cultura, órgãos que fazem parte da estrutura da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Através de um rápida contextualização histórica, mostraremos para que finalidades tais espaços foram criados e assinalaremos algumas das principais reformulações por eles sofridas. Não pensamos com isso esgotar o assunto, mas apenas contribuir para que um início do debate possa começar a ocorrer.

Nossos objetivos ao escrever sobre tal tema prende-se, principalmente, a dois fatos: a nossa implicação enquanto psicólogas desenvolvendo há anos trabalhos em distritos de educação e cultura. Isto é, a nossa necessidade de colocar no papel o que há algum tempo já temos repensado sobre nossa atuação sobre tais órgãos e seu significado político-ideológico. O segundo fato liga-se a uma tentativa de coletivizar tais reflexões, estendendo-se não somente aos psicólogos ou a outros profissionais que trabalham nos distritos de educação e cultura, mas a todos que têm o compromisso com uma educação transformadora que possibilite um efetivo desenvolvimento de nossa cidadania.

 

I. Os Distritos de Educação e Cultura têm uma História

No Rio de Janeiro os distritos de educação e cultura criados em 1975, na gestão da secretária municipal de educação Terezinha Saraiva (1), funcionam em nível intermediário, dando "apoio" pedagógico e administrativo às unidades escolares de uma determinada região administrativa, sendo responsáveis pela execução da política planejada pela Secretaria Municipal de Educação.

A criação dos distritos de educação e cultura inscreve-se num contexto histórico brasileiro em que a ditadura militar - instaurada com o golpe de 1964 - se exercia da forma mais feroz e violenta. Passam a estar presentes em toda a política educacional dois grandes eixos: o desenvolvimentista e o da segurança nacional (2). Daí, a organização educacional se estruturar para que um efetivo controle pudesse ser melhor exercido e não para que a produtividade - tão alardeada - fosse maior. Tal produtividade baseia-se, principalmente, em dois princípios: o tecnicismo e a divisão social do trabalho que tão "bons resultados" apresentaram nas fábricas. Assim, desde o início da década de 70 no Brasil, inicia-se um forte movimento onde são enfatizadas a "modernização" da escola e a "tecnificação" da educação.

A pedagogia tecnicista aponta para a necessidade de se redimir o sistema educacional de sua ineficiência e inoperância. Daí, importam-se principalmente dos Estados Unidos (3), técnicas que haviam produzido "ótimos" resultados no desempenho industrial. Também aqui, o "desempenho educacional" passa a ser visto da mesma forma; isto é, enfatizados os pressupostos positivistas da cientificidade, objetividade, racionalidade e neutralidade.

De tais pressupostos decorre o parcelamento do trabalho pedagógico com a hegemonia dos "especialistas em educação". Esses "donos do saber", considerados "iluminados" e "competentes" trazem a secundarizaçâo e mesmo a inferiorização do saber dos professores (4). O acesso às funções técnicas passa a ser vistas como ascenção profissional e mesmo como prêmio. Enquanto isso, a permanência nas salas de aula é vista como desqualificação e símbolo de inferioridade profissional. Por isso, a possibilidade de retorno para a mesma é percebida como punição e usada como tal.

Percebe-se que esta ideologia de competência e do mérito está fortemente interiorizada na maioria dos profissionais de educação. Ou seja, torna-se naturalizada e o poder tem feito um "excelente" uso disso.

Assim dentro de tal estrutura e burocratizados, os distritos de educação e cultura - ao serem criados - organizam suas equipes pedagógicas com os chamados "especialistas" que compulsoriamente passam a atuar nesse nível intermediário. Dessas equipes fazem parte os psicólogos que, como os demais profissionais deste nível, deveriam "garantir" que as diretrizes emanadas do nível central fossem cumpridas pela escola (5).

Portanto, os distritos de educação e cultura - importação de modelos educacionais norte-americanos - surgiram como órgãos de controle e fiscalização sobre as escolas, tanto administrativamente quanto pedagogicamente e em muito serviram ao momento histórico que o Brasil atravessava.

 

II) Algumas Reformulações

Os distritos de educação e cultura desde a sua criação como órgãos fiscalizadores da política educacional emanada pela Secretaria Municipal de Educação, têm uma estrutura que espelha a deste nível central. Por isso, não lhe é facultado desenvolver um trabalho pesquisado e voltado para as realidades que ele abrange. Já em 1983, tal situação era questionada, quando se afirmava que desde a sua implantação cada equipe técnico-pedagógica ou administrativa do E-DEC está ligada a departamentos e assessorias correspondentes que lhe direcionam a atuação. E o que muito cedo se percebeu, é que estas direções chegavam isoladas, o que nos fez crer que as assessorias entre si e em relação aos departamentos integravam seus planejamentos e, muito mais, possuíam até ideologias e filosofias contraditórias. Desta forma, as diretrizes da SME chegavam às equipes do E-DEC fragmentadas, o que produzia trabalhos também fragmentados e estanques. Assim eram levadas às escolas e assim eram cobradas (6).

Diante desse quadro, posteriormente, algumas reformulações foram feitas numa tentativa de se romper com a fragmentação e o isolamento das diferentes equipes pedagógicas dos distritos de educação e cultura. A nosso ver ficou-se simplesmente na tentativa, pois. apesar da formação de uma única equipe pedagógica (7), as orientações da Secretaria Municipal de Educação e a prática dos profissionais ainda continuaram vinculadas a trabalhos que se referiam a atuações em campos específicos. Os discurso oficial da época passa a criticar os especialismos e corporativismos; entretanto, a nosso ver, mais uma vez se busca um culpado. Se antes eram o aluno e sua família os responsáveis pela inoperância na aprendizagem, a partir de 1984 passam os professores e, logo depois os "especialistas" a serem apontados como os principais fatores da ineficiência escolar.

Pensamos que a crítica aos especialismos é fundamental para um avanço na democratização das relações de poder dentro e fora da escola. Entretanto, o discurso oficial torna-se parcial, incompleto e cheio de lacunas, na medida em que ao culpabilizar os profissionais em si mesmos - individualmente - combatendo-os simplesmente, deixa de relacionar a prática desenvolvida como produto da própria divisão social do trabalho no interior da escola. Cria-se, com isso, mais resistência do que possibilidades efetivas de transformação de ação até então desenvolvida. Possibilidades de transformação que se dão quando os profissionais se percebem implicados politicamente com seu trabalho, rompendo não só com uma atuação corporativista como também com os pressupostos tecnicistas presentes no seu cotidiano.

Contra tais marcas e apesar dessa realidade, muitos profissionais que nestes últimos anos atuaram nos distritos de educação e cultura, orientaram seus trabalhos. Iniciativas no sentido de uma maior aproximação com os problemas e dificuldades encontrados no dia a dia da escola foram tentadas. Entretanto, o que verificamos é ainda um grande distanciamento entre os três níveis que compõem a estrutura da Secretaria Municipal de Educação. A escola - o chamado nível local - que deveria ser o grande palco, o espaço principal onde se planejariam e se executariam as tarefas pertinentes à educação, torna-se um local de mera execução, isolada em sua própria realidade. Os níveis privilegiados onde se planeja são outros: o central e o intermediário. Este, representado pelos distritos de educação e cultura têm a tarefa de retransmitir as diretrizes oriundas dos departamentos e assessorias do nível central, cabendo a este o papel principal dentro da estrutura. Privilegia-se aqueles que, "escolhidos" pelos que planejam e dirigem o processo, passam a constituir a esfera daqueles que "pensam de forma competente" e, por isso, têm o poder de dizer a primeira palavra e, na maioria das vezes, a última a respeito de decisões a serem tomadas.

No momento em que começamos a escrever este artigo, esteve em curso mais uma reformulação na estrutura dos distritos de educação e cultura. Ainda que sua publicação não tivesse saído no Diário Oficial do município, tais mudanças eram transmitidas pelas chefias aos profissionais que trabalham nesses locais.

O discurso oficial, buscando enfatizar a necessidade de diminuição dos técnicos que atuam nesse nível, propõe uma nova linha de ação (8) que, a nosso ver, não diminui o quantitativo desses profissionais. Simplesmente os redistribui - como é o caso dos psicólogos -rearrumando o funcionamento de tal espaço.

Tais modificações trazem em seu bojo sérias contradições: a principal seria a fragmentação do trabalho neste nível intermediário.

Desde 1983, oficialmente se criticava a dispersão e o isolamento das equipes técnico-pedagógicas dos distritos de educação e cultura e, por isso, instituiu-se - como já assim falamos -uma única equipe. Hoje, a nosso ver, ocorre um retrocesso, ou seja, separa-se o pedagógico do comunitário e dentro do próprio pedagógico diferenciam-se as atuações junto às escolas de 1º segmento e as de 2° segmento (9). Reforça-se a divisão que já em 1983 denunciávamos, ao apontarmos o profundo fosso que continuava existindo entre o funcionamento - tanto pedagógico, quanto administrativo - das escolas de C.A. à 4ª série (escolas primárias) e as de 5ª a 8ª séries (antigos ginásios), assim como suas relações com os distritos de educação (10).

"... Os antigos ginásios rejeitavam qualquer trabalho vindo do E-DEC, o que pode ser explicado pelo sentimento de perda da autonomia, enquanto que nas escolas primárias ocorria uma extrema dependência para com o E-DEC, e que era reforçada por este, o que gerou por vezes, um processo de infantilização.

...Nas escolas onde existiam os dois segmentos, via de regra passaram a existir também duas escolas, com os dois grupos de professores não se integrando..."(11).

Nesta reformulação as equipes são constituídas por diferentes profissionais, numa tentativa - segundo discurso oficial - de se formar grupos multidisciplinares. Entretanto, tal arrumação traz uma outra contradição - enquanto oficialmente se questiona os especialismos criam-se, na prática, novos especialistas. Ou seja, aqueles que trabalharão somente com os aspectos pedagógicos e os que se encarregarão do comunitário, como é o caso das assistentes sociais e outros profissionais.

O próprio tipo de trabalho a ser desenvolvido pela equipe pedagógica -acompanhamento às escolas -, através de "instrumentos" que são preparados pela Secretaria Municipal de Educação, nos lembra muito a pedagogia tecnicista e o tão decantado desempenho educacional.

Percebemos que as reestruturações citadas somente têm levado em consideração o aspecto burocrático-administrativo, embora venham calcadas em cima de avaliações críticas ao funcionamento da Secretaria Municipal de Educação e Cultura. O eixo político que sustenta a base de tais avaliações, desaparece quando da sua implantação, tornando-se predominante o tecnicismo, a crença na neutralidade e na competência.

Após um ano e meio desta última reformulação,constatamos que a integração desses serviços não ocorreu e, apesar do nível central da Secretaria Municipal de Educação colocar esse objetivo como uma de suas prioridades, a prática exercida pela SME não contribui para avançar nesse aspecto.

As análises feitas com relação "às dificuldades de integração", muitas vezes incorrem no "equívoco" de responsabilizar individualmente os profissionais, sem considerar que reformulações organizacionais não são meros instrumentos administrativos. Nesse momento (1991), a SME sinaliza com mais uma reformulação sem, contudo, discutí-la com o coletivo de seus profissionais.

Consideramos que, como psicólogos que somos, implicados com a educação e com a construção do "fazer" realmente coletivo, é nossa tarefa e de outros profissionais envolvidos com essas questões contribuir para a "desnaturalização" desses movimentos institucionais.

 

III) Algumas Conclusões

"Avaliar deve ser um processo na totalidade da prática escolar. Somente uma prática de avaliação que se abra para uma participação mais ampla poderá ser democrática. Torna-se necessário, então, uma atuação de todos os envolvidos na comunidade escolar, e que, ao avaliar seus alunos, o professor esteja avaliando o seu próprio trabalho. A instituição deve ser também avaliada e questionada de tal forma que cada momento da avaliação seja um momento de redefinição da ação pedagógica na direção dos objetivos que se espera alcançar."

(proposta curricular da SME, 1988)

Esta última reestruturação ocorreu no momento em que a própria SME tentava colocar em prática uma nova proposta curricular que tem como pressupostos filosóficos a construção de novos saberes através do debate coletivo em todos os níveis. Por que tantas contradições?

Acreditamos que tais lutas são inerentes a todas as instituições, que não são em si monolíticas. Diferentes correntes existem e, no embate, algumas mais conservadoras se sobrepõem e, no momento, pensamos ser isso o que esteja ocorrendo.

Pelo fato de não se analisar em profundidade os problemas, datando-se historicamente, enfatiza-se somente os aspectos burocrático-adiministrativos, passando-se a crença que tais reformulações possam servir a alguma mudança.

Entendemos que pela própria marca que os distritos de educação e cultura trazem em sua origem, voltada para a fiscalização e o controle, a luta daqueles que acreditam na transformação, será a luta por sua extinção. É politicamente conservador, num momento em que em nível nacional se rejeita todos os aparatos autoritários - criados para se exercer um poder mais eficaz - defender a existência dos distritos de educação e cultura. Acreditamos ser muito mais produtivo a atuação direta de todos os profissionais lotados nesse órgão nas unidades escolares. Aí sim, precisam-se de mais recursos humanos.

Defendemos que somente socializando-se tal debate, através de uma política de pessoal mais voltada para as necessidades da escola pública, se poderia enfrentar realisticamente a transformação do sistema educacional. Com isso, se poderia evitar casuísmos locais, como a simples dispensa e redistribuição de técnicos.

Caminharíamos, então, para que entre todos os profissionais da educação dos diferentes níveis houvesse uma maior democratização nas relações de poder; podendo-se coletivamente avançar no sentido de formar profissionais efetivamente implicados politicamente com seu trabalho.

Setembro/1991

 

Notas

(1)  - Ano em que houve a fusão do Estado do Rio de Janeiro com o Estado da Guanabara.

(2)  - Tal direcionamento torna-se oficial e hegemônico a partir da decretação do Ato Institucional n°5, em dezembro de 1968.

(3) - País onde o capitalismo monopolista se encontrava mais desenvolvido.

(4)  - Sobre o "discurso da competência" ver alguns trabalhos de Marilena Chauí como: "Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas" e "O que é ser Educador hoje? Da Arte à Ciência: a morte do educador."

(5) Psicólogos e Assistentes Sociais foram impedidos de permanecer atuando nas escolas. Supervisores e Orientadores excedentes, foram para outras unidades ou compor as equipes dos DECs.

(6) Coimbra, Cecília Maria B., Vasconcelos, Ceres D. e Travassos, Vera Lúcia de O. - "É Revendo que se Repensa" - Rio de Janeiro -pp. 2,3 - 1983.

(7) Em 1984, quando da reestruturação dos D istritos de Educação e Cultura e da própria Secretaria Municipal de Educação, as várias equipes técnico-pedagógicas foram agrupadas numa única: o Serviço Técnico de Assuntos Educacionais (STAE).

(8) A reestruturação (final de 1989) criou três Serviços separados: Serviço de Assuntos Administrativos, o de Assuntos Educacionais e o de Assuntos Comunitários.

(9) O Serviço de Assuntos Pedagógicos terá duas equipes: uma trabalhará com as escolas de pré-escolar à 4ª série e outra ficará com as de 5ª a 8ª sérias.

(10) Em 1975, quando se deu a fusão do Estado do Rio de Janeiro com o Estado da Guanabara e a criação dos DECs, os ensinos primário e secundário passaram a ser organizados da seguinte forma: 1º Grau, composto de 1º (pré-escolar à 4ª série) e2º segmento (5ª à 8ª séries).2° Grau

(11) Coimbra, Cecília Maria B., et alli - op. cit.p. 21

 

Bibliografia

1. CHAUÍ, Marilena - Cultura e Democracia: O discurso competente e outras falas - SP, Ortez, 1989.        [ Links ]

2.________ O que é ser educador hoje? Da Arte à Ciência : a morte do educador in Brandão, C. R.- Educador: Vida e Morte - RJ - Graal -1982.        [ Links ]

3.________ Conformismo e Resistência - SP, Brasiliense, 1986.        [ Links ]

4.COIMBRA, Cecília Maria B. - Os Anos 70 no Brasil e Algumas Teorias Educacionais Hegemônicas - Doutorada na USP, 1989, mimeogr.        [ Links ]

5. FOCAULT, Michel - A Verdade e as Formas Jurídicas - RJ Cadernos da PUC -1979.        [ Links ]