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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.11 no.1-2-3-4 Brasília  1991

 

As regras do jogo psicanalítico - da ética e da política na Psicanálise

 

 

Marlene Guirado

Psicóloga, Psicanalista, Professora Dra. do Instituto de Psicologia da USP e Analista Institucional.

 

 

No início de 1991, o Conselho Federal de Psicologia cassou o direito ao exercício profissional de uma psicóloga. Os motivos e a proeza do gesto não serão, agora, alvo de nosso pensamento. Deteremos nossa atenção, sim, ao caminho pelo qual a ética da profissão passou a ser, por alguns meses, tema de domínio público.

Jornais e revistas de grande circulação no país, não sem as costumeiras notas sensacionais, divulgaram o fato e criaram os grupos a favor e contra. O quê? A favor da psicóloga e contra o Conselho Federal e vice-versa. No escuro e em voz alta, inflamam-se posições. Muitas vezes numa crítica que tomava a ética como o termo vazio ou, conotado de sentidos tão variados que o produto significava a mesma coisa: o sem sentido.

O importante, no entanto, é que uma discussão da prática psicoterapêutica veio à tona e à palavra. E, em ocasiões como esta, é necessário precisar melhor de que fadamos quando tratamos dos desvios ou dos acertos em relação à conduta profissional.

Essa conduta se faz conforme princípios que não se firmam apenas nas regras fixadas de um código (o Código de Ética Profissional dos Psicólogos) como também no que se acredita ser o trabalho que fazemos, o cliente, e as inserções de um e outro no conjunto das práticas sociais e da profissão.

Note-se que a amplidão é a desse território. E é evidente que se pode pisá-lo e olhá-lo a partir de regiões e/ou recantos e lentes diferentes. É evidente também que para fins de análise é desejável e necessário que se façam escolhas, especialmente no que tange a um ensaio como este.

Não vou falar, como já o fiz em outros momentos, das implicações sociais de uma ética profissional. Da mesma forma deixarei em suspenso a discussão sobre o papel dos Conselhos enquanto guardiões da ética.

Escolho um ângulo para pensar a questão: o das regras que se vão instituindo, não de forma aberta e direta-mente falada, mas de forma discreta a partir de umas tantas formulações teóricas e de uns tantos embates empíricos no âmbito das psicoterapias.

Como talvez já se possa dessas palavras inferir, estarei tomando, como ob-jeto de análise, alguns aspectos da instituição das psicoterapias: aspectos estes relativos ao lugar da teoria e dos desafios do cotidiano nesse fazer.

Para que possamos nos mover com maior folga pelos labirintos de um tal projeto de pensamento, vou me utilizar de um recurso extremamente útil de escrita: os tópicos. A cada um deles, não se iluda o leitor, estão sendo feitas passagens nem sempre evidentes, mas que tentarei, no limite em que me é possível, esclarecer.

 

Os psicólogos, as psicoterapias, a Psicanálise(1)

Uma primeira passagem que importa trazer à tona é aquela que nos leva de volta ao título: todo ele voltado para ética e Psicanálise.

Porque isto, se a psicóloga cassada não era psicanalista, se a Psicologia não é Psicanálise sempre e se o leitor deste trabalho, por exemplo, detesta a Psicanálise?

Do fim para o começo, as respostas. Primeiro porque a autora dele é aprendiz de feiticeira, ou seja, já há mais de uma década dedica-se a pensar o que é isto -análise -, o que tem a ver com as instituições sociais em geral, e o que se pode aproximar entre Psicologia e Psicanálise; dedica-se ainda tanto à análise de instituições concretas, quanto à clínica psicanalítica. Segundo, porque como a Psicologia é um campo extremamente diversificado enquanto conhecimento e atuação profissional e, por isso, oferece-se a uma possível aproximação que articule uma determinada concepção de seu objeto, ao objeto da Psicanálise (teórico e/ou institucional). Terceiro porque, muito embora alguns psicólogos posi-cionem-se contrários à Psicanálise, hoje em dia, é quase impossível dizer que as psicoterapias não estejam, em algum grau comprometidas com o pensamento psicanalítico, sobretudo o freudiano (salvo aquelas estritamente comportamentais); isto, da mesma forma que não se pode dizer da psicanálise francesa sem alguma referência a Lacan, ou do pensamento contemporâneo sem passar por Marx ou Foucault (preferências minhas à parte, é claro e pretendido).

Permitam-me, então, que fale das coisas, diretamente, em uma de suas fontes: a Psicanálise. E só nela. As articulações possíveis com o pensamento e o trabalho quer o leitor concretamente desenvolve, vão ficar, sem restrição, a seu encargo...

 

Antes, umas palavras sobre ética e política

Dois termos que se tratam com cuidado e distância em alguns círculos "psi". Andam sempre associadas ao que não se deve fazer (ética) e... ao que não se deve fazer (política).

Algumas coisas não se devem fazer porque feririam um código regulador do exercício profissional. Outras, não se devem fazer porque são identificadas como autoritarismo e dirigismo face a condição humana do paciente em questão.

No fundo, os sentidos são aparentados mesmo. Muito embora o dirigismo e o autoritarismo nem sempre atinjam o estatuto de infração ética, ambos, no entanto, "assombram" o profissional e tem a função de reorientação de sua conduta.

Como sempre, porém, as assombrações têm a função de simplificar o que é complexo. Claro! Se é difícil discriminar os medos e as angústias, mas acreditamos em bruxas ou fantasmas, por eles trememos, suamos, e em relação a eles vivem nossos medos. Sem que sejam resolvidos ou tenham, desatados, seus nós e implicações.

Retirando a ética desse registro do "não pode", com efeitos imediatamente morais, podemos sofisticar sua compreensão, e isto é feito, inclusive, em boa forma, por alguns que se dedicam a escrever e a pensar. Na Psicanálise, a exemplo, já se tem falado em caráter de pano de fundo, derivado de certas postulações muitas vezes corporificadas no enquadre. Há, por certo, uma disseminação da concepção de ética aí. E, de tal maneira que desde o mobiliário e sua disposição, dever-se-ão seguir certos cânones de neutralidade possível, para que não se revelem preferências ou marcas estritamente pessoais do analista. Os consultórios tendem a ser sempre muito parecidos e, com cara de nada! Com isso, supostamente, estariam expostos a um preenchimento imaginário a partir das fantasias e estilos de percepção do cliente. Disseminam-se, ainda, princípios éticos, de forma mais sutil, numa nomotética daquilo que se espera seja o "caminho" analítico do paciente, seus passos para a cura: as "discriminações", os "crescimentos", a "movimentação do imaginário", os "acessos ao simbólico" (conforme a língua em que se diz a Psicanálise).

Ora, de forma mais ou menos intencionalmente ética, os terapeutas conduzem-se por parâmetros como esses. Mergulhados às vezes no discurso a respeito do que seja análise, processo e cura, constituem-se princípios éticos nascidos nesse mesmo discurso. Circularidade inevitável.

O caráter restritivo, o "não pode", seguramente está aí presente. Não, porém, numa expressa dimensão moral, mas por uma "moral" ou uma regra extraída dos credos teóricos.

Como disse antes, esse tema tem sido objeto de formulações elaboradas que situam o lugar da ética no processo analítico. A exemplo, recentemente, foram organizados no Brasil simpósios e congressos sobre ética, por grupos lacanianos.

Quanto à política, nem se fala. Ou pouquíssimo se fala. Encontra-se o termo, ainda, no limbo dos conceitos que, intocados pois já tão associados a certos sentidos como o de dirigismo, são expulsos do discurso, causam mal-estar quando pronunciados e, afirmamos todos "não cair em tentação".

Parece que a política está sendo colocada num lugar apertado demais, que não a define a contento.

Algumas tentativas no sentido de enfrentar a questão, no entanto, são feitas. Raras, porém existentes. Relacionam em geral política e processo de cura. Ou seja, tratam a política como estratégias que se traçam no processo analítico, tendo em vista as possibilidades de os pacientes se encaminharem para o cuidado de si. Fala-se, ainda, na implicação do analista, em determinados momentos, para que a análise prossiga no jogo que dispõe dois parceiros com papéis, por enquadre, formalmente definidos. Essa compreensão do termo política, em geral, associa-o à posição que o terapeuta ocupa, numa espécie de administração proposital dos meandros do processo.(2)

Parece haver, aqui, ainda que sérias e refletidas sejam essas concepções, uma relação de exterioridade entre política e análise.

Se tomarmos, no entanto, um conceito e um aspecto a que reincidem as falas de psicanalistas - a resistência -, poderíamos garantir que entre política e processo analítico se estabelece uma relação de interioridade.

Vejamos.

A resistência pode ser entendida como uma importante aliada do analista: enquanto se resiste, produz-se a i-magem daquilo que se quer ocultar, afirma-se o que está em jogo.

Aí, um ponto central para se pensar a política. Agora, como inerente a qualquer análise e, portanto, com a chance de ser considerada mais "nobre"...

Falar assim de política nos remete a pensá-la enquanto poder da maneira como o faz Michel Foucault(3): como exercício, como jogo de forças, uma dimensão constitutiva de qualquer relação. O poder é verbo, ação, algo que está aquém e além do Estado; não é substância, nem tem função unicamente repressiva; cria também; o poder é produtivo. Entre os poios de resistência e domínio, há movimento constante, equilíbrios e desequilíbrios. Há, inclusive, uma positividade no lugar da resistência, positividade de força, energia. Da mesma maneira que há positividade no lugar de domínio. Aquele que domina não apenas reprime mas recria movimento de força naquele que a ele se opõe. Numa frase: "opositores fortes dão a dimensão da grandeza de nossa força". O poder assim pensado não é transcendente: é imanente, não está localizado apenas no mandante, mas no trânsito e na relação entre o que se põe mandante e o que se põe mandado,porque o poder não é coisa, não é um bastão a achatar cabeças inimigas. É equilibração e exercício; é móvel. Essa postulação de Foucault revoluciona a concepção habitual, estática, de poder como propriedade de alguém ou de algum grupo. E, coloca-nos sempre, a todos, produzindo, reproduzindo, criando e recriando em relações de poder.

Com essa estratégia de pensamento posso tratar de um termo "caro" e, até certo ponto, pouco explorado na Psicanálise: resistência. Trago-o, agora, não apenas porque é o mesmo termo empregado na teoria foucaultiana do poder, mas porque é sempre mencionado como um dos componentes da relação analítica. Um componente em geral visto como impedimento.

Pode a resistência também ser considerada, entretanto, como aquilo que ao impedir, expressa a existência do outro no processo. Se pondero que a resistência ao surgir, desenha, pelo negativo, o que é que afinal resiste, possa tratá-la como o lugar de contraponto inevitável e até desejável para que a análise se dê. É atribuir uma conotação diversa à que correntemente se tem: a de bloqueio.

E a política passa a ter um caráter de irrecusável presença no processo analítico. Mais ainda, melhor considerá-la para que não se repita, sem perceber, um dos movimentos possíveis da relação de poder que é o dirigismo. Esse, por supostamente anular um dos poios da relação, se for até o fim, desastrosamente, impede o ato analítico.

Ora, porque falar de ética e política juntas?

Entre outras razões, primeiro, para retirar os dois termos do registro sobretudo moral em que habitualmente se encontram. Depois, para pensar que aquilo que normaliza pode fazê-lo por filiação a um conjunto de princípios teóricos e, por fim, para tratar de norma e teoria como fatores vivos no exercício cotidiano das relações, e portanto da relação analítica; relações essas sempre constituídas também como exercício de poder e de força.

Nem por teoria nem por decreto, o que se passa entre cliente e analista, se assim vemos, pode ser apolítico ou vivido fora de algum registro de poder.

Ainda, como dissemos, a maneira como se definem certos conceitos, a maneira como são entendidos, tem repercussões na prática clínica e vice-versa. Se posso entender resistência em sua condição de produção de sentidos dentro da análise e não apenas de repressão ou de restrição, não vou tratar de erradicá-la ou de dissuadi-la, como caminho da cura. Não seria ético...

Da mesma forma, outras articulações entre teoria-prática-ética-política poderiam ser buscadas de tal maneira a identificar o que acontece no interior dos processos de análise e nos cânones teóricos da Psicanálise; o que acontece que a conduta do terapeuta pode, às vezes, ser considerada como abusiva e eticamente comprometida.

A tentar entender esses "engates" nos dedicaremos a seguir.

 

A teoria, as regras e os mistérios no processo analítico

A análise, ou mais propriamente, a Psicanálise é uma prática social que tem seus mistérios... A começar pelo fato de lidar com vínculos, desejos, afetos, com a intimidade enfim.

Muitas vezes, tanto por parte dos clientes quanto por parte dos profissionais recém-ingressados no conhecimento e na clínica, surge a questão da espontaneidade x rigidez na condução do processo terapêutico. Há os que se queixam de que os "contratos", o enquadre, as supervisões e o estudo de textos funcionam como um "superego fortíssimo", a impedir que o terapeuta possa "ser ele" na sessão. Há os que, como clientes, queixam-se da distância e de alguns quesitos que parecem artificializar o humano.

Não seria um contrasenso supor que seja possível tratar da intimidade e da intersubjetividade, assim, tão à distância?

Essa pergunta, que parece nascer das regiões de ignorância dos iniciantes, das incompreensões de candidatos a clientes bem como da má vontade dos opositores, é, no entanto, a mais pura expressão da ambiguidade que atravessa o cotidiano dos atendimentos clínicos.

Uma possibilidade, não de resolver a questão, mas, de melhor entendê-la, é pensar a Psicanálise enquanto uma instituição social, que, como qualquer outra, caracteriza-se pela equivocidade de seu objeto. Um objeto que se configura no interjogo das produções teóricas, das organizações técnicas e das relações concretas cliente/terapeuta.

Tratar a Psicanálise como instituição significa considerá-la como conjunto de relações que, embora nas diversidades, repetem-se e enquanto isto legitimam um corpo de conhecimentos e um campo empírico; os conhecimentos sendo crivo da escuta, reformulam-se e/ ou se repetem, servem de pano de fundo e de fonte para hipóteses; destarte, fortalece-se o crédito atribuído a concepções basilares da própria Psicanálise (inconsciente, desejo, fantasia, transferência e interpretação, por exemplo). Quando uma pessoa me procura em meu consultório, para "tratamento", ouço sua "queixa" e me ponho a pensar sobre sua demanda, já no registro do que entendo seja o lugar dele e o meu nesse início de contato, do que entendo seja a história que ele pode se contar de relação com seu desejo e assim por diante.

É interessante notar que se criam e recriam sentidos para o gesto e a palavra dos parceiros nesse processo. Com isso, o que ilumina arealidade, no mesmo ato, ofusca-a. E, para isto, não temos saídas. O ofuscamento é parte inelutável dos lugares que se ocupam nas relações.

Se tudo isto que ora afirmo, faz algum sentido ao leitor, peço licença para reconduzi-lo à idéia de mistério com que abrimos o presente item do texto. Mistério, em nosso caso, porque lidamos com aquilo que se supõe desconhecido de nós mesmos. Mistério também, porque o fazemos em meio ao fog da ambiguidade. Mistério mais ainda, porque, ao que temos notícia, a coisa funciona; quero dizer, análises acontecem; acontecem efeitos analíticos em processos terapêuticos.

Um quê de fascinação envolve tudo isso. A começar da proposta psicanalítica primeira: a desconstrução de estabilidades conhecidas e reconhecidas, para que se produza o desvendamento daquilo que, enquanto inconsciente, é determinante e não está sob controle da consciência. Depois, a consideração de que o ponto de partida para a desconstrução e o desvendamento sejam operadores conceituais ou pré-concepções, que direcionam o como e o o que se desvenda e se desconstrói. Finalmente, a constatação de que mudanças ocorrem e que só ocorrem porque, nesse campo assim psicanalítico.

Para que se possa falar de mistérios numa linguagem menos misteriosa que a dos parágrafos acima, tomemos uma situação exemplar.

Dá-se o nome de transferência à reedição/"encanarção" de cenas em que os personagens tendem a ocupar seus postos de origem, negando tempos, espaços, características físicas e até psíquicas da alteridade, e, por isso, produzem-se, em realidade, vínculos. Inclusive, e como condição básica, o vínculo cliente/analista.

Supõe-se, ainda, com apoio nesse mesmo fundo teórico, que, dessa rede de envolvimentos, não escape o analista. A neutralidade toma-se, desta feita, um mito, por mais que nos digamos neutros e, a rigor, para que toda essa mágica tenha alguma eficácia analítica, certas "regras" se impõem. Nada claras, mas certamente deduzidas das decorrências de vínculos transferenciais, condição de presentificação do desejo e seus efeitos. Aí está uma precisão. Pelo menos no nível dos conceitos: insere-se o analista na mesma condição humana de seu paciente (aquela, tal como se afigura à Psicanálise). Com isso, atribui-se uma notória "responsabilidade" a quem se dedique a esse trabalho.

Uma das condições capitais de possibilidade de uma análise acontecer, é que o terapeuta/analista funcione com "um olho que fita e o outro que se agita". Isto é, como parte da relação analítica concreta, "sintonize" o paciente: o olho que fita; e como parte das regras do jogo, num movimento oposto, garanta-se com a estranheza que é ocasião de análise para o cliente: o olho que se agita.

Eis o lugar que se apresenta como o do analista: na corda bamba do objeto desta instituição chamada análise. Até parece que um determinado elenco de defesas e, por tabela, de angústias e desejos, que uma espécie de sandice, é a investidura desse personagem. E, nesse caso, o que parece, é. Aquilo que se propõe mover pelo processo psicanlíti-co, como que num efeito iatrogênico, passa a constituí-lo em suas bases. Mas, se ao legitimar esse movimento que engata nas paixões e desejos do cliente, legitima-se uma dimensão fortíssima do vínculo que precisa existir para que exista análise, é necessário que se resgate, também, seu oposto: o engate se desfará pelo movimento mesmo de estranhamento daquilo que lá se passa. É esta, a marca da dissociação instrumental a que se refere Bleger num de seus escritos sobre a relação terapeuta/cliente.(4)

Não é fascinante isso de a análise poder acontecer, sempre e apenas nesse limiar inclusão/exclusão, envolvimento/afastamento?

Até porque se fosse até o fim, na configuração de seu objeto, ela caminharia para sua dissolução. Acabando os equívocos - e porque não dizer os mistérios, os desconhecimentos - onde se assentaria a Psicanálise?

Isto, diga-se de passagem, não é privilégio nem sortilégio de nossas práticas. Caracteriza as práticas sociais de um modo geral. Uma das regras de ouro das instituições é a contradição sempre presente na consecução de seu objeto. É no jogo de tensões que se afirmam e garantem sua existência.

Nesse sentido, e em nosso caso, os alvos de desconstrução, discriminação daquilo que se apresenta como uno, mesmo na fragmentação, atingem-se pelo tortuoso enveredamento de vínculos e pontos cegos, seus inevitáveis pontos de partida.

O "segredo" da sustentação nesse fio de navalha é poder operar com vistas à independência (autonomia), favorecendo as dependências (heteronomias) necessárias a qualquer processo de identificação e constituição de identidades. Uma empresa difícil, sem dúvida, mas, pelo que dizem a história e a teoria, sobremaneira analítico.

 

Da ambiguidade à ética

Como retomar, a partir de tantas e aparentemente tão dispersas considerações, a questão da ética?

Pede-se mais um esforço ao leitor (e à autora, sem dúvida).

Sabemos que ambiguidade e norma não combinam. Se uma dilui limites e discriminações, a outra, ainda que por arbítrio, exige-os.

Ao acompanhar o presente texto fomos também assinalando, que é exata-mente nesse terreno, desta feita movediço, que a prática analítica se dá.

O ambíguo tem valor de ouro para o trabalho de análise. Mas, impõem-se, por sua vez, restrições ou afunilamentos em nome da própria teoria ou de qualquer outra demanda humanista e/ou social. O equilíbrio de forças, dimensão constitutiva dessa relação, vai se produzir em meio a exigências assim complexas. A nós, analistas ou terapeutas, coloca-se a urgência de atenção constante a tais fatores. A urgência de uma política ética, portanto.

Ao mesmo tempo jogar com atenção e consciência, quando postulamos, com a Psicanálise, determinações inconscientes, é um exercício. E como tal, não se faz completo, nem se pode esperar que assim o seja, sempre. Este é o desafio.

A garantia da ética é, dessa maneira, nada mais que o esforço de se manter nesse desafio. Uma posição, a nossa, certamente nada confortável, mas por assentada que não é, sempre inquietante.                                           

 

Notas

1. O termo Psicanálise está sendo usado, aqui, no singular, não porque postulemos que seja uma prática una, mas para efeito de oposição à diversidade expressa de objetos teóricos e institucionais das psicoterapias, que vão desde as comportamentais até as psicanalíticas. Como se poderá notar no decorrer do texto, depois de uma determinada argumentação(p.3), passarei a empregar indiscriminadamente os termos terapia e análise ou, terapeuta e analista. Ciente dos riscos de generalização indevida, faço-o porque penso estar, assim, mais próxima de nossa realidade profissional, onde a maioria dos terapeutas trabalha com uma orientação psicanalítica ou, pelo menos, pretendem-no.

2. Herrmann, F., Clínica Psicanalítica: A Arte da Interpretação. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1991.        [ Links ]

3. Foucault, M., A História da Sexualidade I: A Vontade de Saber.Rio de Janeiro, Graal, 1984.        [ Links ]

4. Bleger, J., Temas de Psicologia. São Paulo, Martins Fontes, 1981.        [ Links ]